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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Quinta-feira, 30.01.14

TROCA DE PALAVRAS

 

A IDENTIDADE DA ENTIDADE

Beberricando uma bica, José Funcheiro falava ao telemóvel rindo de um riso que lhe enchia de rugas a cara envelhecida. Estava contente por se terem lembrado do seu nome que tão falado fora nos anos oitenta. Desligado o telemóvel, não conseguia disfarçar a impaciência. Esperava por Lúcia Bessa, a jornalista que tinha combinado encontrar-se com ele ali, na esplanada do quiosque do jardim da Granja. 

Lúcia Bessa trabalhava numa revista especializada em atualidades musicais e coisas afins e, de momento, ocupava-se  com um dossiê sobre antigas glórias de bandas-rock nacionais: procurava saber o que fora feito de nomes outrora famosos e como se tinham apagado da voz pública que um dia lhes repetira o nome incessantemente. Desta vez, ia entrevistar José Funcheiro, o músico que, um dia, fora amado pelos fãs sob o nome de John Frantic. Tinham marcado encontro para as 16 horas. — E já são quatro e meia! — remoía ele que,  excitado com esta momentânea ressurreição de tempos em que os media não o largavam, se antecipara à hora marcada. Lúcia Bessa estava atrasada. Tomou outra bica, entreteve-se a seguir o saltitar de um pardalito a bicar migalhas caídas das mesas e... — Finalmente! — suspirou. A mulher que se aproximava da sua mesa era muito jovem e apresentou-se imediatamente como Lúcia Bessa, pedindo desculpas apressadas pelo atraso. Conversaram sobre os termos da entrevista e, ligado o gravador, a coisa começou. De vez em quando a jornalista não disfarçava o seu espanto: algumas respostas do músico causavam-lhe verdadeira surpresa, talvez devido à sua pouca idade, talvez devido ao facto de não ter feito grande pesquisa preparatória. José Funcheiro, esse, ia ganhando balanço e era-lhe difícil suster a avalanche de memórias....

JF — .... e nessa altura, os discos da banda de John Frantic, os Flying Boys, mantiveram-se nos tops por várias semanas.

LB —E resolveu chamar-se Jhon Frantic, porquê?

JF — Era moda, tinham mais saída os nomes ingleses... E, sabe, nesses tempos, nesse ambiente das bandas, a gente às vezes metia-se em coisas que não queria ver associadas ao nosso verdadeiro nome... Éramos muito novos... a família... essas coisas... Jhon Frantic era uma capa...

LB — Escondia uma entidade secreta...

JF — Entidade?! Bem, eu não era propriamente uma entidade... era um rapaz do meu bairro que gostava de tocar viola e, enfim... de fazer outras coisas que não queria ver associadas aos Funcheiros lá do bairro...

LB — E, nos concertos, nunca ninguém o surpreendeu gritando o seu verdadeiro nome? Nunca ninguém gritou Ó Funcheiro! Não desconfiavam da sua verdadeira entidade?

JF — Mas já lhe disse que...

LB — É que é uma questão que mexe com o público... Querer conhecer a vida pessoal dos artistas... A curiosidade de saberem o seu verdadeiro nome...

Por momentos que pareceram uma eternidade, reinou o silêncio e o ar enfastiado da jornalista, enquanto o músico remexia o cabelo e coçava a orelha, tique antigo: Entidade?! Algo desconcentrado pela emoção da viagem mental aos seus tempos áureos, José Funcheiro não estava a ver bem que raio de confusão estava ali a armar-se. Calou-se a recentrar-se: — Que raio de conversa de surdos é esta?!Que é que esta quer com isto da entidade?

Iria morrer ali, a entrevista? 

Mas não. De repente, percebeu. Houvera uma troca de palavras. Lúcia Bessa, linguisticamente falando, metera os pés pelas mãos. O músico percebeu e simultaneamente apeteceu-lhe brincar um pouco: — Ah, és dessas que confundem o ‘tem a ver’ com o ‘tem haver’? Entremos no jogo. Alarguemos ainda mais essa confusãozinha. E, sem conseguir limpar completamente o tom trocista da voz e do olhar, como quem quer apenas adiantar mais informação sobre a sua carreira, pôs fim ao silêncio.

JF — Olhe, por exemplo numa altura em que a minha banda colaborou numa campanha eleitoral, tive oportunidade de trocar ideias com altas identidades. E sabe? Esses tratavam-me por Funcheiro! Esses conheciam bem a minha entidade!

E foi, então, a vez da jornalista, que era desleixada mas não destituída, ficar calada e parecer atrapalhada. Esta sarilhada de identidades e entidades, ainda por cima pronunciadas com ênfase e intenção, não era inocente.  Tinha topado. — Aqui há gato! ‘Tás-me a dar música, não ‘tás? Tinha topado. Só não sabia muito bem o quê. Nem se o equívoco era seu ou era dele. Certo, certo é que, de repente, não se sentia à altura de dar cartas. Pelo sim pelo não, resolveu desarmar e entrar  de mansinho.

LB —  Sabe, já que falamos nisso... assim a talhe de foice... essa coisa das entidades e das identidades sempre andou baralhada na minha cabeça... Arrasto esta dúvida desde a escola. Às vezes sai certo, outras, nem por isso... são palavras tão parecidas...

Foi a vez do músico desarmar. Riu-se. Enternecido.

JF — Deixe lá! Não é grave. Todos temos os nossos erros de estimação.

Riram-se os dois.

LB — Mas você nunca confunde? Por acaso, gostava de tirar isso a limpo duma vez por todas... Você tem mesmo a certeza de como é?

JF — Por acaso tenho. Uma entidade é uma personalidade reconhecida publicamente como inserida e atuante numa certa área... as entidades judiciárias, por exemplo...

LB — Ah, pronto, está esclarecido... não diga mais... e a identidade de uma pessoa é que é o conjunto de elementos que a identificam, a individualizam, a distinguem dos outros, o nome, por exemplo...

Riram-se os dois, desempertigaram-se, e a entrevista prosseguiu muito mais descontraidamente. Conheciam-se, agora, melhor. E não é que, depois de tudo isto, até ficaram amigos?!

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por Maria Almira Soares às 21:41

Terça-feira, 28.01.14

LEITURA & DOÇURA

A comunidade de leitores LerDoceLer — recebeu este nome quando se reunia numa oficina de chocolates e, daí, a associação entre leitura e doçura — vai trocar leituras de PORTUGAL, HOJE — O Medo de Existir de José Gil nesta quinta-feira, 30 de janeiro, na mercearia cultural «A Mimosa da Lapa».

 Reli o livro.

 

Com a devida vénia, tomo o título de uma obra de Óscar Lopes como entrada para algumas reflexões, coisas pensadas depois desta releitura.

LER E DEPOIS

O fechamento, antídoto do crescimento — seis notas.

1. Os dados que a voragem estatística não para de captar são sinais importantes para a modelação do exercício de poderes vários. Em função de contagens de audiências, de consumos, de acessos, de escolhas, de gestos, de acontecimentos, as práticas maioritárias, assim determinadas, caucionam decisões, atrofiando a afirmação de liberdade e adensando a massificação, a normalização, das atitudes.

2. A histórica experiência do custo negativo da inserção no espaço público é, talvez, a causa do não-reconhecimento, da não-assimilação  desse mesmo espaço público e da sua concomitante menorização, em prol da dimensão pessoal:

— constantemente, a dimensão pública de uma crítica é escamoteada, sendo esta recolocada no âmbito do que é pessoal;

— numa discussão cujo objeto deva situar-se na esfera distanciada própria do espaço público e institucional, as referências depreciativas são rapidamente assumidas como ataques pessoais e desencadeiam reações condicentes.

Este apagamento do espaço público deve-se mais à sua rejeição atávica, a um certo sentido da conveniência, a modos assumidos como princípios, do que ao medo. Assim, porque não colocamos os problemas na esfera pública e não acionamos dispositivos públicos (ou nem sequer os temos), servimo-nos de cadeias emocionais, vividas voluntária e pessoalmente: a famosa solidariedade portuguesa e o nosso «humanismo», demonstrados em ações, as mais das vezes pouco construtivas, limitadas, circunscritas a efeitos imediatos, que se não concretizam em mudanças de fundo. Se, mesmo assim, chegamos a inscrever-nos de modo institucional, logo nos apressamos a saber como contorná-lo. A «democracia afetiva» prolifera em cantos de louvor a um certo entendimento de «humildade», produz o nivelamento por baixo e gera repugnância pela via institucional, pelo espaço institucional da vida, pela visão institucional dos factos.

3. Eça dizia de Júlio Dinis (escritor representativo de um certo modo de ser português que, sob outras formas, ainda perdura): «viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve». Começa a tornar-se insustentável a leveza (leia-se leviandade que é palavra cognata) com que se diz e contradiz, se faz e contrafaz, como se nada tivesse peso ou preço. Nem o significado das palavras inscrito no dicionário se inscreve. Está em voga a irresponsabilidade do significado das palavras usadas no espaço público: ao debate, não respondem. O espaço público como lugar de debate é um círculo vicioso imprestável e improdutivo, um mero preenchimento de entradas pré-definidas: João que chora/João que ri; palhaço pobre/palhaço rico; polícia bom/polícia mau: um/dois, esquerda/direita. O debate anula-se numa mecânica televisiva movida por parelhas de ‘bonecos’ sediços que limita o pensamento original.

4. A recusa defensiva do risco — rosto do conformismo — dificulta o diálogo, o encontro de um plano em que o acordo entre discordâncias seja possível. Só por engano arriscamos e ironicamente somos facilmente enganados, porque, afinal, é fácil enganar os espertalhões: quem não marca sofre. Entre «o mais vale um pássaro na mão...» e a fábula A Raposa e o Corvo, a arrogância vai rimando com ignorância.

5. Porque, historicamente, à burocracia concedemos um importante papel existencial, recalcitramos medrosos da sua abolição, por insegurança e medo do vazio de pensamento crítico, que a sua inexistência abriria.

6. Cada português, cada grupo, cada corporação, muitas vezes sem sequer se dar conta disso, imputa responsabilidades, excluindo-se: acusamos o sistema, a instituição, a sociedade, o bairro, a família, os outros, como se, num cume de irracionalidade, fôssemos intocáveis pelo meio que tocamos e nos toca.

 

 

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por Maria Almira Soares às 21:43

Terça-feira, 28.01.14

VERGÍLIO FERREIRA (aniversário)

 

VERGÍLIO FERREIRA, CONTA-CORRENTE  1  

29 de Janeiro, 1975  

«Fiz ontem cinquenta e nove anos. Se mo não dizem, esquecia-me: o inconsciente a juntar-se à grande parca.»

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por Maria Almira Soares às 16:13

Segunda-feira, 27.01.14

QUEM É O POETA, QUEM É ELE?

 

Era uma vez um Poeta que não podia sair de casa, porque caíra do cavalo e tinha, por isso, ficado com uma perna doente. Para ficar curado e voltar a andar à vontade por aqui e por ali, passeando-se como tanto gostava, era preciso que a sua perna ficasse imobilizada durante algum tempo. E o Poeta lá se convenceu de que, durante as próximas semanas, tinha de ficar em casa. Felizmente, poderia continuar a fazer uma das coisas de que mais gostava: escrever! Foi então que uma história que, há muito tempo, trazia na cabeça começou a pedir-lhe para ser escrita: — Poeta, poeta, já que não podes ir ter com os teus amigos e falar com eles sobre as tuas ideias fulgurantes, escreve-me, escreve-me, por favor. E o Poeta, que gostava muito daquela história que até aí vivia apenas dentro dele no meio de muitas outras que tinha ainda para contar, disse que sim. Recostou-se numa daquelas cadeiras longas onde a sua perna doente poderia ficar confortavelmente estendida, absolutamente quieta para que o tempo a pudesse curar, e pediu que lhe trouxessem uma mesinha de pousar no regaço, o tinteiro, a pena e o papel e pôs-se a escrever. Era uma história muito triste, mas o poeta descobrira uma maneira muito bela de a contar. Desde criança que a conhecia. Quando era pequenino, o Poeta ouvia muitas histórias maravilhosas, contadas por velhas senhoras que ele amava. E olhava encantado para os retratos dos heróis que andavam a lutar pela liberdade. E sonhava. Sonhava com lutas e mistérios e com as belas palavras que os podiam contar. Num desses dias antigos, em que era uma criança sonhadora, o Poeta foi ao teatro. Era um teatro de feira em que os artistas saíam de uma barraca para, vestidos de cavaleiros nobres, porem fogo a palácios. E velhos prisioneiros resgatados, gritavam por vingança… E em que nobres senhoras altivas fugiam espavoridas. E o Poeta nunca mais se esqueceu desse teatrinho de feira em que as figuras, negras sobre a cor fulgurante do fogo, fugiam gritando. E não se esqueceu também do mistério que era a causa de toda aquela tragédia. Na altura mal o compreendeu! Mas, depois, já crescido, interessou-se, procurou saber, leu muito e ficou a conhecer em pormenor aquela história triste que agora estava a escrever. Amava cada personagem que o raspar do bico da pena sobre o papel ia fazendo viver. Vestia-as, dava-lhes gestos e palavras, movia-as, fazia-as rir e chorar. Entusiasmado, esquecia a sua perna doente, os passeios a cavalo e até os amigos que mandavam bilhetes a saber da sua saúde. Tinham saudades de o ouvir a proclamar belas ideias sobre o povo e sobre a cultura que o havia de salvar de ser ignorante e pobre. Durante duas semanas, o Poeta quase mais nada fez senão escrever. Se o pudéssemos ver, parecer-nos-ia uma estátua dos tempos antigos a que um poderoso mágico fazia mover imparavelmente a mão. Mas não havia mágico nenhum! Toda a magia estava dentro do pensamento imaginativo do Poeta donde borbulhavam as palavras que lhe agitavam o braço, ao escrever incessantemente, em sucessivas folhas de papel, aquela história que lhe pedira para ser escrita! Às vezes, o Poeta parava e punha-se a imaginar as cenas que ainda haveria de escrever. Fechava os olhos apoiava a cabeça na seda macia da almofada e sonhava. Foi durante um desses sonhos criativos que o olhar inteligente de uma menina esguia e pálida lhe apareceu e o começou a fitar insistentemente com o brilho de quem sabia coisas importantes que queria, ela também, contar. O Poeta tinha uma filha e, curiosamente, esta menina do seu sonho lembrava-lhe tanto a sua filha! Talvez porque sentia saudades dela, que vivia longe, num convento, que era também uma escola e para onde fora mandada depois que a mãe morrera. O Poeta tinha saudades e pena da sua filha que só via muito de longe em longe e lhe lembrava tempos passados de amores felizes. Talvez fosse por isso que ele sonhava com a menina de olhar inteligente e a ouvia, em sonhos, a dizer: — Deixa-me entrar na tua história! E o Poeta deixou. Quando de novo estendeu a mão para a pena que repousava de bico mergulhado no tinteiro, depois de delicadamente sacudir a tinta em excesso, emocionado, começou a contar de umas flores… Eram papoilas, que tinham murchado nas mãos de uma menina que andara a colhê-las num jardim… Chamava-se Maria.

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por Maria Almira Soares às 22:00

Segunda-feira, 27.01.14

SINAIS DE FOGO DE JORGE DE SENA

Retrospetiva de leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:   

 

 

Desde a delirante visão da «alma do gafanhoto», captada por Puigmal, o adolescente em estado puro, até ao «entusiasmo triste», compensador das coisas perdidas com a entrada na idade adulta, Jorge mergulha numa corrente de experiências fundadoras, sempre em estado de interpelação: — Tem algum sentido, a morte? — Que sentido faz sobreviver? — Os encontros e as descobertas fazem que sentido? Percurso este que o leva até à consciência da palavra poética, traduzida pela grande metáfora dos SINAIS DE FOGO, a grande e perene metáfora do fogo.

Enquanto isso, nós, os leitores, vamos vivendo a grande metáfora da LEITURA: conhecimento; confronto; reflexão; perturbação; nostalgia; enternecimento; consciência do tempo; consciência antagonista do roubo do tempo;  procura perplexa, imperfeita, irresolúvel, da difícil (impossível?) integridade, da verdade; dimensões adormecidas de que a pura atualidade lisa nos anda a espoliar. Este romance é uma viagem a três, triplamente diferenciada: a viagem da escrita literária do Jorge (autor); a viagem da busca existencial do Jorge (personagem); a viagem (que cada um saberá qual) do leitor de muitos nomes. Todos os temas essenciais estão neste romance. Não, dedilhados como quem quer seguir uma pauta prévia, mas amarrados no nó do problema que é estar vivo no mundo, sobretudo estar vivo adolescente/jovem-a-ser-adulto. Narrativa na primeira pessoa. A pessoa de Jorge. Dos Jorges: do que é de cena e do que é de Sena. Nem um nem outro deixam ficar, para a nossa leitura, um trabalho acabado, fechado, mas esta construção em aberto diz-nos que o tempo soberano nunca se fecha totalmente sobre a vida, ainda que se trate de um tempo fechado, morto. Da leitura deste romance, não trazemos apenas a lembrança de um cadáver que ficou na praia. Não. Muito além disso, estão os vivos sinais de um fogo mais vivo que o tempo: a dor e a alegria de ser-se humano sempre em construção. São, hoje, outros os ventos com que o ADN da História incendeia o fogo do nosso desenvolvimento existencial? Por certo. Mas sempre «lançando ao mar os barcos da vida». Da vida com os antes e os depois, as causas e as consequências, a instabilidade dos impulsos, o lícito e o extravagante, as tentativas e as tentações, sem mapa nem legendas. Jorge de Sena começou por chamar a este livro Aparição da Poesia. Depois, trocou o nome pela metáfora-substância poética: Sinais de Fogo. Trocou o nome pela rosa. Fez bem.

 

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por Maria Almira Soares às 18:35

Domingo, 26.01.14

O CEMITÉRIO DE PRAGA DE UMBERTO ECO

Retrospetiva de leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:

 

Esta é uma história erguida sobre o gosto profundo de Umberto Eco pelo colecionismo de textos e livros raros e antigos, sobre a sua entranhada bibliofilia, mas também sobre a sua grandeza como estudioso da leitura, pensador da receção do literário, e até sobre o seu gosto pela gastronomia, cúmplice da vida e da morte, como uma espécie de vitalidade cega guiada pelos sentidos, pelo corpo. Como numa iguaria sublime, o segredo deste livro está no ponto e na mistura. O ponto e a mistura são obra da memória, da recuperação e do apagamento da memória do capitão Simonini enquanto refaz o caminho: o rasto de uma vida vivida e de vidas testemunhadas.

Tudo começa com a transposição de uma porta. Cruzamos uma porta para lá da qual se vai desenrolando o fio enredado das histórias. Seguimos, atrás de um movimento narrativo (uma vis narrandi) por vezes semelhante a um travelling, um caminho em busca do destino, da identidade de uma personagem, Simone Simonini, como se fôssemos a sombra a que é permitida uma aproximação intrigante e reveladora. À porta do romance, está um ente trifauce: o indivíduo idoso que escreve, personagem transformadora da memória em escrita; o guia dos labirintos, narrador que nos conduz; e nós, os leitores que, uma vez aceite o convite da descida ao mundo obscuro da sua leitura, somos parte do romance. Esta porta romanesca, como os cofres dos tesouros antigos, abre-se com várias chaves semeadas no chão ladrilhado de histórias que vamos pisando. Uma delas é a chave psicanalítica da escrita como desvendamento, mise en abyme de quem, no seu escrever, se revela através da duplicação, da criação do outro e responde às grandes perguntas: — Quem sou? — Sou o que fiz? — Sou resultado da agregação dos outros eus que deixei pelo caminho? Nesta pesquisa, o passado, olhado com uma pluralidade quase-infinita de pensamentos, de interpretações, glosado em diferentes versões, umas ingénuas outras profundas, é uma paisagem sem fim. Nela se procuram as fundas raízes do que se fez, do que se foi e ainda se é e, assim, se desnuda uma rede de impulsos em expansão: — Onde está a minha memória-identidade, quem sou eu, quem é Simonini/Dalla Piccola?  — Onde reside o sentido da História?

O material diegético deste romance é livresco: a literatura, a ficção, o livro, como catalisadores do real. Os textos antigos com suas descrições museológicas, taxonómicas, do que já foi vivo, são o substrato de culturas posteriores. O diálogo entre os escritos colhidos de uma vastíssima cultura oitocentista é a ação do livro de Umberto Eco que, num mundo de duplicidade, de simetria, de espelhos, de cruzamentos, de subterrâneos, de luzes, de raízes, canta um hino à verdade literária acompanhado pelo fascínio das cidades antigas, das leituras antigas. São as leituras que medeiam o olhar arqueológico sobre o homem e a cidade, escavam as suas camadas temporais numa arte suprema de manipulação do mistério.

Nenhuma história se conta a si mesma, é contada por um ponto de vista. Neste livro, há um ponto de vista sobre a cultura europeia do século XIX, sobre os cruzamentos de tendências culturais e dos seus conflitos, sobre os grandes movimentos históricos e suas manipulações, sobre a liberdade, a república, o comunismo, o catolicismo, os judeus. Visão dos tempos em que as guerras eram religiosas, porque a finança era religiosa. Linhas ou frescos da Comuna de Paris, das guerras da unificação da Itália, das eras de caos civil, dos segredos e dos mitos da História: o mundo dos serviços secretos, dos espiões, da informação e da contrainformação; o cinismo político; o terrorismo bombista; o crime; as modas; as teorias racistas; os padres; os políticos; os escritores; os maçons; os hebreus; as mulheres; a crença e a memória; as seitas; a demonologia; o ocultismo; o antissemitismo; a Igreja, os papas — os bastidores da História. Há, neste romance, um gosto acentuado pela história do falso, do falsário, da mentira, do poder maléfico da mentira, do poder do disfarce: a História, como uma sotaina com que vamos vestindo e despindo a nudez inicial e final, como um trajo que é marca deixada pelo caminho. Nas mãos impróprias de Simonini, estão depositadas as respostas para os grandes espantos: a amoralidade radical, a volatilidade da razão, a transformação de coincidências em causas. A História é, afinal, movida por patifes que se alimentam dessa pulsão profunda que é a necessidade de inimigo.

O modo arcaizante da escrita, que a tradução procura manter, combinado com a ilustração, cria uma leve patine de coisa antiga, ao estilo e ao gosto oitocentistas do folhetim farfalhudo, rocambolesco, numa mistura bem conseguida de erudição, humor e intriga. O tom oscila, por vezes, do folhetim para a balada, a saga, tornando-se mais lírico e até poético. Épico nas descrições de batalhas. O diário cumpre a sua natureza e fins, criando uma dimensão metatextual. Hibridismo, montagem de entes literários diversos como nos primórdios do romance. Fantásticos retratos individuais. A grande arte narrativa de saber ir semeando aqui, personagens que florirão além. Modalizações criadoras do efeito ilusionístico que paira entre a verdade e a mentira. O vocabulário pejorativo exorcizante de um passado escuro. A metamorfose fundidora da forma no conteúdo. Uma tremenda visão da História gizada pela liberdade romanesca.

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por Maria Almira Soares às 22:24

Sábado, 25.01.14

O SONHO DO CELTA DE MARIO VARGAS LHOSA

 

Retrospetiva de leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:

 

A LerDoceLer leu mais um livro de Mario Vargas Lhosa: O Sonho do Celta. Muito diferente da Conversa na Catedral? Talvez nem tanto! Muito diferente na sequencialidade da escrita que é, aqui, a tradicional e sem aquele constante reticulado de alternâncias próprio da conversação. Aqui a organização do discurso é linear. Aparentemente, também diferente na temática de superfície: lá, o Peru e as gentes peruanas (a América Latina); aqui, a Europa (germânica, britânica, céltica) e as suas possessões coloniais (quadrante de interseção com a América Latina: a selva amazónica peruana). Lá, uma época mais próxima da atualidade; aqui, maior distanciamento histórico. Lá, uma relação mais próxima com a experiência vivida do autor; aqui, maior poder de investigação, de reconstituição, de documentação. Lá, uma figura, Zavalita, que se acomoda (para não usar outra palavra mais forte), cuja narrativa é a do acomodado, do desistente, do sobrevivente; aqui, uma figura heróica, idealista até ao fim, vítima do seu idealismo. Mas há um ponto de ligação temática fortíssimo, tema transversal em Llosa, que podemos referir com as palavras usadas para fundamentar a atribuição do Nobel: ambos «fazem a cartografia do poder.». É uma questão fulcral neste livro: o poder colonial; os excessos generalizados do poder colonial; um poder criminoso à luz das próprias leis coetâneas e a dificuldade/impossibilidade de o criminalizar e justiçar dentro do quadro legal. Os crimes coloniais execráveis sobre os quais se fez a riqueza da Europa (o ciclo da borracha, do marfim, o tráfico de escravos, e muitos outros…); o poder colonial e a sua perda: a Europa, uma vez libertadas as suas vítimas coloniais, tende a voltar a ser pobre; a relação poder/trabalho… o poder patronal. Vargas Llosa escreve este livro motivado por uma figura histórica — Roger Casement — cuja vida é plena de virtualidades romanescas: pela sua história pessoal mais íntima; pela sua biografia aventurosa; pela própria história do seu corpo doente; pelas suas ideias; pelo seu perfil psicológico.

Casement é a figura polarizadora, um lugar distributivo de vários tópicos: o nacionalismo irlandês; a conjuntura geopolítica da 1ª Grande Guerra; o ciclo da borracha na colonização belga do Congo e a exploração da borracha na selva peruana (e aqui lembramos A Selva de Ferreira de Castro, outro livro extraordinário); as fraquezas/grandezas dos círculos intelectuais britânicos e irlandeses…mas também questões éticas, morais, sentimentais — toda a complexidade do humano como é próprio das grandes obras. Senhor desta temática poderosa, o que faz Llosa? Verdadeiramente não faz um romance. Um romance puro. Mas uma coisa bastante aproximada de uma biografia. Há uma fidelidade aos factos e uma linearidade cronológica da narrativa, dentro de cada segmento que a constrói, que são próprios da biografia. Embora romanceada, dramatizada através da criação de personagens, da invenção de diálogos e cenas, do desenvolvimento da psicologia das personagens, dos seus sonhos, dos seus pensamentos. Um livro que, entre a ficção e a História, talvez esteja mais próximo desta do que daquela. A sua espessura ficcional não é grande. Talvez seja mais difícil escrever um bom livro sobre um argumento pré-existente tão sólido, do que uma pura ficção em que tudo é, à partida, instável e manipulável. Neste livro de temática tão sólida, a escrita continua a ser arrebatadora, a fazer-nos ver e sentir na pele e em todos os sentidos os mundos narrados. É grande literatura. Não é apenas uma transparência lançada sobre a História, uma janela sobre um Casement historicamente documentado, mas tem a espessura de uma escrita que nos dá uma visão, que nos interpela, que nos coloca em situação. É uma leitura cheia de motivos de interesse: dá a conhecer factos que possivelmente ainda não conhecíamos; revela outros ângulos, pormenores, de figuras que eram para nós nomes conhecidos a que associávamos uma imagem; aborda a história do nacionalismo irlandês e o tema da Grande Guerra; mergulha no Humano e nas suas obsessões, fraquezas, crimes, mentiras, cobardias; retrata a enormidade de crimes contra a Humanidade; constrói a figura de um homem, Roger Casement, o celta que tinha um sonho e que morreu por causa desse sonho. É perigoso ter um sonho radicalmente obsessivo que tudo ultrapassa, que se sobrepõe a tudo, um sonho nascido num momento de lucidez ou de loucura, o momento da revelação da criminosa exploração colonial da borracha e da criminosa dominação britânica da cultura celta, do apagamento da cultura do negro e do índio como do apagamento da cultura celta. SER RADICAL É MORTAL? O excesso é perigoso, porque, em última análise, imperam as leis da sobrevivência. Há uma razão, legitimada pelos denominadores comuns dos juízos maioritariamente aceites, que não aceita, condena irremediavelmente, o excesso: perante a razão patriótica, até a razão particular da amizade soçobra, pelo menos em público; perante a moral familiar publicamente aceite, um comportamento que se singulariza é sentido como prejudicial e denegado. A leitura llosiana de Casement articula o excesso, o idealismo, a obsessão com a perda. Narra uma dimensão do Poder que é a das vítimas individuais das grandes ironias da História. Afinal, Casement vinha desaconselhar a Revolta da Páscoa, mas foi apanhado nas voltas da História. Afinal, havia uma boa dose de fantasia no que Casement escrevia nos seus diários, mas Casement esqueceu-se de os esconder ou destruir, permitindo que fossem tomados como verdade. Roger Casement é uma figura trágica, cuja grandeza não resistiu aos seus pequenos erros e fraquezas. Os heróis trágicos serão obrigatoriamente ingénuos?

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por Maria Almira Soares às 16:02

Sexta-feira, 24.01.14

TROCA DE PALAVRAS

 

OS DEFENSORES DA LÍNGUA

— Bem, vamos lá ver que novidades há hoje por aqui. Esta coisa do facebook  é bem divertida! Vê-se cada uma... Deixa cá espreitar o mural da Nené! É sempre muito animado. Eu não disse? Um post com cinco minutos  e já com tantos comentários... Deixa ver:

NÉNÉ “Estou farta de calinadas. Então os nossos    brilhantes comunicadores televisivos... Deitam cada uma da boca para fora! É de estarrecer. Por isso, proponho-me criar aqui, no facebook, uma página de proteção da língua portuguesa (PPLP), onde todos os erros detetados poderão ser denunciados e corrigidos. Aceitam-se os contributos de todos os que amam a nossa língua e lutam em prol da sua pureza.”

Gosto. Comentar. há 5 minutos.

 

 

 

 

 

 

 

 Pois claro! Está-se mesmo a ver. Quando o assunto é a língua portuguesa, vêm todos a correr. Sentem-se chamados para a guerra. Convocados para a defesa da pátria. Só que, depois...  Vejamos os comentários:

Ai, quer defender a língua portuguesa?! É pra já. Olhe, sabe? Pela boca morre o peixe. Grande ditado do nosso povo! Com que então, minha senhora, “propõe-se criar”?! Não se terá esquecido de uma preposiçãozinha? Assim, não vai lá.  “Proponho-me a criar” é que está certo.

 

 

 

 

 

Olha-me este! Isto não começa bem, não senhor! Continuemos:

O comentador anterior veio a correr e tropeçou logo. Foi pior a emenda do que o soneto. A Nené escreve bem. “Proponho-me criar” está perfeito.

 

 

 

Isto está a aquecer.

Então? Em que é que ficamos? É com o a ou sem o a?

 

 

 

Eu acho que pode ser das duas maneiras.

 

Quais duas maneiras, qual carapuça! Só há uma forma correta: “Proponho-me criar”.

 

 

 

Deixem-se lá de picuinhas. Com a ou sem a, vai tudo dar ao mesmo. O que é preciso é que a gente se entenda.{#emotions_dlg.smile}

 

 

 

 

Pois claro! E a língua está sempre a evoluir, não é?

 

A evoluir está esta conversa, mas é para o lado da asneira.{#emotions_dlg.blushed}

 

 

 

Então, Nené, perdeu a língua? Não diz nada?

 

 

 

Isto, agora, com o novo acordo, vale tudo!

 

 

 

Já cá faltava o acordo!

 

 

 

Realmente é lamentável: querer defender a língua e começar logo a dar erros... Está mal!

 

 

Está mal?! Está, até, muito bem. “Proponho-me criar” está corretíssimo.

 

 

 

Parem de dizer disparates. “Proponho-me a criar” é que está bem.

 

 

 

Então, Nené, está tão caladinha?!

 

 

Olá! Até que enfim alguém verdadeiramente sabedor... Vamos ver o que diz:

“Proponho-me criar uma página” está correto. “Proponho-me a “ não passa de um erro comum, tão generalizado que acaba por parecer correto. Mas não. Trata-se de uma construção semelhante a, por exemplo: “Impus-me andar três quilómetros, todos os dias.” A Nené não cometeu nenhum erro.

 

 

 

 

 

 Aposto que, deste, ninguém vai discordar. Tem credenciais na nossa praça. O seu saber linguístico é respeitado. Ah! A Nené finalmente acordou.

NENÉ Meus amigos, tenham calma. Tudo está bem quando acaba bem. {#emotions_dlg.happy} E, para começo de defesa da nossa língua, esta discussão acabou muito bem. Vamos para a frente com a nossa PPLP.

 

 

 

 

 

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por Maria Almira Soares às 22:41

Sexta-feira, 24.01.14

DEIXEM PASSAR O HOMEM INVISÍVEL DE RUI CARDOSO MARTINS

Retrospetiva das leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:

 

 

Entre o céu azul e os subterrâneos da cidade, a realidade conspira abrindo um buraco. Um episódio insólito? Uma fábula com sentido? Protagonistas: o cego e a criança. DEIXEM - o imperativo que pede uma atitude passiva, um licenciamento, uma tolerância, um levantar de barreiras para - PASSAR - um movimento transitório, um acesso aos caminhos necessários a - O HOMEM - não um, mas o - INVISÍVEL.

 

DEIXEM PASSAR O HOMEM INVISÍVEL.

Como?! O quê? Mas… se não se vê?! Como deixá-lo passar, se se não vê?! Absurdo? Ah! Afinal era engano. Troca de palavras. Inversão de 180º. Não se trata de não ser visto; trata-se de não ver. Será? Será de anedotário do uso da linguagem que se trata? Ou há verdade no engano? Não vemos, ignoramos, aquele que não vê? Tornamos invisível o que não é como nós? Pode ser. A história do cego e da criança, tecida por uma necessidade de resposta a interrogações várias. Sobre a cidade. A cidade dos homens e das crianças e das mulheres. A cidade do asfalto e dos canos e das casas e das ruas. A cidade das ordens e contra-ordens, dos recursos, das burocracias, das repartições, dos poderes. A cidade das notícias, das imagens, dos depoimentos, dos directos, dos imprevistos, do insólito, do ridículo, dos encontros e desencontros… Resposta ao uso da linguagem que não é inócuo. Ao desleixo que toma o que não vê pelo que não é visto. Aos criadores de metáforas que, embalados pelos fluxos da sua inventividade, esquecem a dor real, a dor que deveras se sente e inventam cegueiras brancas como metáfora de denúncia e salvação dos homens. Esquecendo que ser cego é só não ver, sem metáforas nem alegorias. Um livro que quer dar muitas respostas e que, para as dar, abre buracos no cenário e torna o real invisível: a pequena nesga de luz no olho cego, o buraco no chão da cidade, o buraco da morte. A pior, a mais certa conspiração da realidade, é a morte: sempre insólita, sempre inesperada. Buracos e ramificações, muitas ramificações. Algumas oportunistas. Um livro criador de oportunidades de dizer, criador de coincidências para a significação. Um livro que quer significar. Um livro graficamente muito desenhado, cheio de sinais, de divisórias, de placas indicadoras. Tanta sinalização! Muito dividido em capítulos. Muito claramente titulados. Muito claramente separados. Muito referenciados em índice. Muito epigrafado. Dedicado. Vestido por um azulejo cegado pela incúria. Cheio de sinais! Um livro muito conduzido, como que para leitores com dificuldade de orientação. Graficamente muito visual. Um pouco trôpego, um pouco às apalpadelas, mas com recursos explícitos para orientação. Gestos de chamada de atenção: «António com o menino ao colo», António Vicente…

Para nos conduzir ao milagre, à magia, à realidade?

 

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por Maria Almira Soares às 14:11

Quinta-feira, 23.01.14

O RETORNO DE DULCE MARIA CARDOSO

 

Retrospetiva das leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:

 

A tragédia. O caos violento. A fuga. A guerra. O retrato do colono português em África: pobre, pouco instruído, esforçado no trabalho, com ambição de subir na vida, conservador, racista... A dupla difícil adaptação: a África (o clima); à metrópole (“Isto é que é a metrópole?”): as memórias perdidas e achadas e perdidas, estranhadas. A fuga real e a fuga mental (“mandar no pensamento”). A teia das posições políticas num momento de radicalismos ideológicos.  Os retornados, seiscentos mil, feridos de um pecado original que não assumem, sentindo-se antes vítimas. A complexidade humana de uma situação violentamente crítica. A arte de manter a tensão e a coerência da voz adolescente que narra, evoca, sonha, em linha cronológica/em linha associativa desde o medo até à afirmação e, assim, faz o retrato social e íntimo de um quadro da nossa História recente. Com as suas raízes no real, na História próxima, implicando as memórias dos que o viveram, o retrato de um momento que o país viveu: o do regresso daqueles que ficaram conhecidos como retornados. Tema denso em que cabem a rutura, o desenraizamento, a morte dos sonhos, no contexto dramático das independências em África e da revolução em Portugal. A urgência da mudança em ambiente de insegurança, de violência, de instabilidade geral. O ponto de vista de Rui, um adolescente, um ser em mudança desregrada, é um olhar cheio de medos, de interrogações, de dúvidas, de inseguranças. O adolescente enclausurado na ilha familiar rodeada de desconhecido, de incertezas, de ansiedades. O olhar adolescente — que seleciona uma visão muito própria, uma atenção, uma curiosidade, juízos, registos de pormenores — implica uma sabedoria inexperiente mas desperta, giza uma estratégia de sobrevivência, de salvamento do naufrágio geral. Assim, desenha uma geografia dos lugares, dos climas, dos ambientes, dos sentidos, das cores, dos espaços, das vozes. E um humor sobre as coisas: sombrio, desesperado, rebelde, desorientado, mas crítico, cáustico, por vezes violento. Um outro olhar, mais distante, consegue insinuar-se no olhar adolescente sem lhe afetar a coerência. Uma visão reflexiva e até irónica (na criação das situações) que não é só o presente, a urgência, a aflição, o inevitável pragmatismo, a necessidade de adaptação. Um olhar sobre (e não de) o que é pontual, as peripécias, a corrente do acontecer que condicionam o universo narrado. Não propriamente uma visão política, mas uma visão humanamente interessada que ordena a sequência das ações e das reações, que escolhe as palavras. Esta visão não se manifesta; antes revela o essencial para lá dos pormenores: o sofrimento, o roubo dos sonhos, a ausência, os silêncios, a violência. Foi esta perspetiva humanista que escolheu a visão desarmante do adolescente sem condições para expandir o seu ser e a quem é mais difícil o conformismo e, deste modo, se reforçou. Não se detetam grumos, estranhezas, corpos espúrios, no fluir das palavras vividas, pensadas, ditas, temidas, de um adolescente apanhado na voragem da História. E, no entanto, nesta massa narrativa de uma só voz, são bem nítidas as várias personagens, as íntimas experiências humanas, as situações tensas. Este difícil mas bem conseguido equilíbrio revela a segurança e a firmeza da construção deste romance.

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por Maria Almira Soares às 22:51

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