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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 30.06.14

A REVOLTA DAS FRASES

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por Maria Almira Soares às 18:10

Sábado, 28.06.14

MÁRIO SOARES

 

A mordaça impede a fala, o grito, e soa a coisa que apetece morder. É uma palavra com força suficiente para se instituir em metáfora com múltiplas aplicações: pessoais, coletivas, psicológicas, existenciais... Pode, até, amarrar-se sobre as falas de um país inteiro. O livro de Mário Soares, testemunho-pensamento sobre o Portugal de 1926 a 1972 é, desde o título, atravessado por uma ideia-mestra: o coagir e o coartar da intervenção dos cidadãos é uma forma de supressão da liberdade fatal para os países; a intimidação e a censura das falas havidas e desejadas, durante esse período da história de Portugal, foi a causa magna da desgraça do país e a arma magna dos que o desgraçaram. Esta é a tese que atravessa as 728 páginas do livro, a última resposta para todas as perguntas que, nele, nos estremecem a leitura: Como foi possível uma castração tão durável? Como foi possível um isolamento tão duro, em meio de tão vivas mudanças e acontecimentos tão decisivos na Europa e no mundo? Como foi possível forjar uma imagem e uma identidade nacional tão miserável perante os olhos indiferentes do mundo? Como foi possível fazer do país o charco onde coaxavam algumas rãs logo apedrejadas? Como é possível o esquecimento da vergonha de termos sido, no século XX pós 45, o país da miséria, da emigração, do analfabetismo, do conformismo? Do livro de Mário Soares, salta, viva, a ideia de que o poder da palavra e a garantia da sua ampla e livre receção é um poder vital para os povos, um inalienável direito cidadão sempre a ter em conta. Pensar na censura e nas nódoas, feridas, entorses que ela lançou sobre a sagrada capacidade de, em língua portuguesa, falarmos uns aos outros livremente faz doer; pensar na perversão, arregimentação, negação, do uso livre da língua portuguesa durante mais de quatro décadas faz doer. À profundidade e intensidade dessa dor, Mário Soares mete escalpelo e traz-nos, em factos, em pessoas, em datas, o pormenor das suas origens, da sua evolução, da sua duração: por isso, esta sua escrita, mais do que historiográfica, é lírica e contadora de histórias. Trata-se de um escrito do eu, estremecido por todos os frémitos destes escritos: o picaresco, o pitoresco, o emocional, o evocativo, o nostálgico... E, dele, saltam sementes de múltiplas histórias que a literatura poderia ficcionar, algumas já ficcionou. Em livro e em filme. Lemos as páginas 268/269 e, de repente, a mão romanesca de Cardoso Pires detém-nos e ficamos suspensos a lembrar a leitura da sua intensa Balada da Praia dos Cães... Lemos, presos à sua trama policial, os episódios que Humberto Delgado protagoniza na vida e na morte e somos assaltados pela visão do thriller de Bruno de Almeida. Na luminosidade comovente de um escrito deste teor, narrativa muito personalizada, desenhada com todos os nomes e fazendo as movimentações políticas respirarem o sangue do caráter dos seus protagonistas, estampa-se a negro a horrenda figura: Salazar. Salazar: o medo, a desconfiança, a reserva, a habilidade mesquinha, a crueldade, a ordem pré-determinada pela vontade de um sobre todos. Salazar, o dono da mordaça e dos tratadores que açaimam o seu cão-país, não vá ele lembrar-se de que tem sangue e alma e gosto de morder. Salazar, a alma de pigmeu projetada em ogre ameaçador pela posse da luz negra da mentira e da manipulação. A mentira modelando gente grande em meninos vencidos pelo medo. Este livro conta-nos as forças e as fraquezas do povo que fomos nesses anos fundamentais sem deixar de fazer perguntas mais sombrias. Onde estavam as mãos que poderiam ter desamarrado a mordaça, onde as bocas que poderiam ter soprado para o nada a vacuidade do gigante de papel? Atadas. Enleadas no choque de estratégias grupais e pessoais, enfraquecidas por escolhas menores e hesitações maiores, motivadas tão-só pelo seu próprio prestígio público, por jogos mesquinhos e ódios pessoais,  cegas e distraídas de um Portugal real, humilhado, ofendido, submetido, esquecido pelos cérebros-arquitetos de movimentações, de ações, de representações... Este lamento também vibra neste livro. O lamento dos erros, hesitações, desistências, divisões, conformidades, conveniências... dos que sempre foram falhando o momento, sempre esperado, do desatar da mordaça. Nos dias de hoje, em que muitos parecem sentir-se interpelados por essa época sombria, em que pulula o interesse pela figura do seu despótico ‘dono’ e pela  pesquisa dos seus fundamentos, este livro de Mário Soares ocupa o lugar particular do testemunho do vivido, carregado por um discurso muito pessoal. Na época da sua primeira publicação, teve um papel denunciador.

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por Maria Almira Soares às 17:38

Sexta-feira, 27.06.14

A LÍNGUA PORTUGUESA

– Uma cousa vos confessarei eu, senhor Leonardo (disse a isto D. Júlio), que os Portugueses são homens de ruim língua, e que também o mostram em dizerem mal da sua, que, assim na suavidade da pronunciação como na gravidade e composição das palavras, é língua excelente. Mas há alguns néscios que não basta que a falem mal, senão que se querem mostrar discretos dizendo mal dela; e o que me vinga de sua ignorância é que eles acreditam a sua opinião, e os que falam bem desacreditam a ela e a eles. 

– Bravamente é apaixonado o senhor D. Júlio (acudiu o Doutor) polas cousas da nossa Pátria, e tem razão, que é divida que os nobres devem pagar com maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura. Para falar é engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com um certo sentimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé de sua antiguidade. E se à língua Hebreia, pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.

 

Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia

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por Maria Almira Soares às 11:55

Terça-feira, 24.06.14

CÂNDIDO OU O OTIMISMO

Depois do tremor de terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para prevenir uma ruína total do que oferecer ao povo um belo auto-de-fé; foi decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande cerimonial, era um infalível segredo para impedir que a terra se pusesse a tremer. Tinham, pois, prendido um biscainho que casara com a própria comadre, e dois portugueses que, ao comer um frango, lhe haviam retirado a gordura: vieram, depois do almoço, prender o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado e o outro por ter escutado com ar de aprovação: foram ambos conduzidos em separado para apartamentos extremamente frescos, onde nunca se era incomodado pelo sol; oito dias depois vestiram-lhe um sambenito e ornaram-lhe a cabeça com mitras de papel: a mitra e o sambenito de Cândido eram pintados de chamas invertidas e diabos que não tinham cauda nem garras; mas os diabos de Pangloss tinham cauda e garras, e as flamas eram verticais. Assim vestidos, marcharam em procissão, e ouviram um sermão muito patético, seguido de uma bela música em fabordão. Cândido foi açoitado em cadência, enquanto cantavam; o biscainho e os dois homens que não tinham querido comer gordura foram queimados, e Pangloss enforcado, embora não fosse esse o costume. No mesmo dia a terra tremeu de novo, com espantoso fragor.

Voltaire

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por Maria Almira Soares às 22:08

Sábado, 21.06.14

À LEITURA, DISSE NADA

 

— Não, livros desses não são das minhas relações. Livros simultaneamente encantatórios e portadores de conhecimento, mas feitos de tropeções sintáticos, em que as imperfeições da progressão do discurso avançam e se multiplicam empurradas pelo desleixo ignorante, não são das minhas relações. Penso, até, que a associação entre o encantamento e o erro é muito perniciosa, sobretudo para aqueles que ainda estão a apurar o gosto e a construir o critério.

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por Maria Almira Soares às 20:51

Sexta-feira, 20.06.14

O CÍRCULO

[...] Percebo que estão à espera. Vai passar o desfile. Estão à espera de entrarem na carruagem certa, para que não haja confusões. O que é da sua companhia está inscrito no que é da sua vida, artigo 1º: do que deve ser. Olha, estas não sofrem do mal da hesitação! Fizeram-se devedoras-credoras das suas companhias e só com elas hão de desfilar. Pelos ouvidos, acrescento coisas ao que delas, por as olhar, já sabia. Enquanto o meu corpo acalma a sua rejeição do movimento e se repõe numa inércia de descanso. Sou uma pedra à beira da qual há marulhos. Por dentro da pedra da imobilidade em que estou há água e fogo e algum ar. Por necessidade, sentada bem juntinho às três irmanas que não bailam debaixo de um castanheiro que não é avelaneira e haveria de estar florido mas não está, não tenho rancho nem armada. Sou uma one woman sem show. Estou por minha conta e muito incomodada com o constante movimento deslizante das coisas umas sobre as outras que chega a enjoar-me. Será que tenho de ir ao oftalmologista? Comprar uns óculos novos para a alma que não está a conseguir focar decentemente o eterno desfile da vida? Olha já ali vêm — diz uma das amigas ao avistar um letreiro elevado no ar que diz Setúbal. A do crochet arruma calmamente  o trabalho ou passatempo numa mala velha e baratucha e as outras já sacodem a traseira das saias que se tinham colado ao rabo. De pé, esperam o exato momento de gritarem, agitando o braço: ó Zulmira estamos aqui, e avançarem para o minuto da sua entrada no rio de gente avenida abaixo e para o zumbido grosso e modulado que o acompanha. Eu fiquei mais à vontade no banco. Ainda penso e se eu fosse também? Vou? Não vou? O que faço aqui? Quis saber quem sou... Cometimento desgraçado que me tem emaranhado os passos da vida. [...]

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por Maria Almira Soares às 22:25

Sexta-feira, 20.06.14

O SALEIRO E O SALÁRIO

 

 

     Um dia, quando o meu pai, durante o jantar, disse «chega-me o salário», eu levantei para ele uns olhos risonhos e ligeiramente críticos, mas nem me passou pela cabeça até onde este microepisódio me poderia levar.

     A minha mãe riu-se e chegou-lhe o saleiro. Ele sacudiu a cabeça como quem apaga um erro momentâneo. Mas eu fiquei com o «saleiro» e o «salário» entalados na minha indomável vontade de decifrar os mistérios das palavras. Estas duas eram tão parecidas! Porque seriam assim tão parecidas, se significavam coisas tão diferentes!? Nesse dia à noite, enquanto não adormecia, pus-me a inventar uma brincadeira com elas, assim como se fossem duas marionetas dum teatro de fantoches. Começavam as duas às turras uma na outra e dizia o Salário para o Saleiro:

— Mas que abuso de confiança! Tu não és salário. Tu és saleiro. Salário sou eu.

— Que é que queres, pá? Ora, agora! Vires pedir-me meças a mim, que não tive culpa nenhuma! Quem me chamou salário foi o pai do Luís.

— Olha que tu tem cuidado Saleirinho refilão! Olha que eu sou uma palavra de estirpe muito antiga.

— Qual estirpe nem meia estirpe! Sei lá eu o que é estirpe!

— Sou uma palavra muito antiga e de muito boas famílias.

— Olha o vaidoso! O que é que estás para aí a inventar? Como se eu acreditasse nisso… Vê lá se queres levar uns burrifinhos de sal para te acalmares.

E foi neste momento do duelo que o Salário apontou para mim e disse:

— De ti depende a recuperação da minha honra de palavra antiga, ofendida por este ignorante. Se não descobrires a minha origem e não a conseguires provar aqui ao zé-ninguém do Saleiro, também a tua honra de detective ficará para sempre manchada.  

Claro que tudo isto se passava no palco da minha imaginação, mas, imaginação ou não, o facto é que me senti investido numa missão: a missão de ajudar o Salário a provar, ao Saleiro, que tinha razão. No fundo, eu nem percebia bem o motivo daquela zanga. Cá para mim, eles até eram bastante parecidos. Não no significado. Mas no som e na escrita: saleiro/salário. E este, insisto, é que era o mistério: porque é que, sendo tão parecidas, tinham significados tão diferentes?

[...]

 

In O Detetive das  Palavras (inédito)

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por Maria Almira Soares às 20:43

Quarta-feira, 18.06.14

‘FAÇA, NÃO...

 

Encostados aos muros que os protegem da queimadura viva do sol aberto, vicejam tufos de prosa laboriosamente jardinada. Enfeitados por um vocabulário exoticamente erudito e ecoando versões vulgarizadas de sentenças antigas, luzem na sombra da ignorância reinante e arrogante que os incensa. Empertigam-se ou curvam-se ao respirar dos insetos veneradores que lhes sorvem os preciosos adjetivos. Definitivamente não são Agustina Bessa-Luís, a sibilina:

......

........................

 

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por Maria Almira Soares às 11:02

Quarta-feira, 18.06.14

OUÇA UM BOM CONSELHO

 

 

 Atenção: — Não se confundam as geniais invenções de Garrett, por exemplo, «o garbo teso e aprumado da perpendicular miss inglesa», com as aranhices de quem se põe a calcetar histórias com as pedras que tem à mão e toma por aplauso os gritos de entorse dos leitores!

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por Maria Almira Soares às 02:51

Sexta-feira, 13.06.14

PESSOA POR SARAMAGO

 

 

ao fundo brilha tenuemente a chapazinha do número duzentos e um, é então que Ricardo Reis repara que por baixo da sua porta passa uma réstia luminosa, ter-se-ia esquecido, enfim, são coisas que podem acontecer a qualquer, meteu a chave na fechadura, abriu, sentado na sofá estava um homem, reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tantos anos, e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à sua espera Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que ele lhe responderia, nem sempre o absurdo respeita a lógica, mas o caso é que respondeu, disse Viva, e estendeu-lhe a mão, depois abraçaram-se, Então como tem passado, um deles fez a pergunta, ou ambos, não importa averiguar, considerando a insignificância da frase. Ricardo Reis despiu a gabardina, pousou o chapéu, arrumou cuidadosamente a guarda-chuva no lavatório, se ainda pingasse lá estaria o oleado do chão, mesmo assim certificou-se primeiro, apalpou a seda húmida, já não escorre, durante todo o caminho de regresso não chovera. Puxou uma cadeira e sentou-se defronte do visitante, reparou que Fernando Pessoa estava em corpo bem feito, que é a maneira portuguesa de dizer que o dito corpo não veste sobretudo nem gabardina nem qualquer outra protecção contra o mau tempo, nem sequer um chapéu para a cabeça, este tem só o fato preto, jaquetão, colete e calça, camisa branca, preta também a gravata, e o sapato, e a meia, como se apresentaria quem estivesse de luto ou tivesse por ofício enterrar os outros. Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois da longa ausência, e é Fernando Pessoa quem primeiro fala, Soube que me foi visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei, e Ricardo Reis respondeu assim, Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá saísse, Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade, explicou Fernando Pessoa,

 

José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis

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por Maria Almira Soares às 22:08

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