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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sexta-feira, 29.08.14

HELDER MACEDO, UM ROMANCE DE NATÁLIA

A COMUNIDADE DE LEITORES LERDOCELER LEU NATÁLIA DE HELDER MACEDO

 O quiasmo é uma figura de retórica. Pode ser episódico, ocorrente, meramente decorativo. Pode ser estrutural. Com consequências mais ou menos profundas, mais ou menos graves, o quiasmo é sempre o abismo, o sorvedouro que arrasta a leitura para um ponto médio onde a composição se afunda. Seja elemento frásico, frase ou texto inteiro, o quiasmo ameaça a pressuposta leitura linear. Conduz uma leitura que cruza duas direcções: da esquerda para a direita e da direita para a esquerda; do princípio para o fim e do fim para o princípio, em movimento isorrítmico até um ponto médio, de tensão máxima, onde tudo acaba. Todavia, no texto quiasmático, princípio e fim, apesar de centripetamente determinados, resistem equilibrados pela força do seu antagonismo semântico. Em vez da linha horizontal das sucessividades, a narrativa quiasmática desenvolve-se na linha vertical das substituições. Resulta de um projecto pensado e expandido em torno da vertical do aprofundamento e o desenlace da sua história situa-se algures no meio. O quiasmo é a figura apropriada à leitura de Natália de Hélder Macedo em que a inversão do sentido sequencial das conexões e interdependências narrativas não altera o valor semântico do conjunto; em que a relação sintagmática preferencial, quase estonteantemente dominadora, é quiasmática. Desafia-nos insistentemente a cruzar, a reciprocar as suas partes: maiores, menores, mínimas. Consciente e explicitamente, apelativamente até: «do fim para o princípio, que é como as histórias fazem mais sentido.» As histórias e talvez também os títulos dos livros na sua relação com os respectivos autores. Joguemos este jogo logo desde o primeiro olhar: Hélder Macedo escreve Natália vs. Natália escreve Hélder Macedo; ou Hélder Macedo escreve Natália para que Natália escreva Hélder Macedo. O escritor material escreve o livro material vs. a escritora ficcionada escreve o seu Avô parecido com o escritor ficcionado que um dia entrevistou e agora vai publicar o livro material. O leitor torna-se eixo desta simetria. Um eixo externo e incontrolável: «quantos ledores, tantas as sentenças».[1] E o modelo vai continuando, invadindo a história lida, onde tudo se revela reversível, substituível. Na história lida, sistematicamente defluem e confluem correntes contrárias que se neutralizam num nada aparente: contei, agora destruo; mas efectivamente não destruo porque contei. Sobra o dúbio vazio resultante da tensão dos dois ramos do quiasmo: «Tinha começado antes de apagar tudo» (1ª página)/ «Agora é só iluminar o texto e carregar na tecla delete» (últimas palavras). Se tudo é substituível, nada é substantivo. Entre os seus extremos, a história não decorre, vai sendo escavada. Não há decurso, há aprofundamento. É um narrar arqueológico, que se vai dicotomicamente interrogando sobre a fiabilidade de cada objecto que desenterra, e traz à luz da leitura várias camadas substitutivas no erguer da história. «Como o Avô [que] nunca pensava em linha recta». Cada núcleo é o eixo de uma simetria, dualidade geradora de hipóteses protagonistas de uma heteromaquia, na busca de uma cosmogonia sempre instável. O texto é atravessado por uma densa isotopia de dualidades, muitas das quais são pontos axiais da intriga, perturbando, assim, o estabelecimento de uma ordem semântica estável. Cada passo narrativo defronta a disjunção, impeditiva da progressão e, frequentemente, gera uma ordem inversa que conduz ao impasse. Só por substituição (funcional ou de valor) ou por morte de um dos termos, há superação, quiçá solução. A entrevista genética deste diário é ela também uma figura de reversibilidade que, à maneira de um arroseur arrosé, altera a relação entre função e significado, tornando-se matriz de instabilidade: cruza o jornalismo com a psicanálise e inicia um persistente jogo de equivalências, de correspondências. Há uma contínua emissão de uma hipotética segunda narrativa, pendendo ameaçadora sobre a decifração da primeira. Uma espécie de rede desencriptadora, transparência perfurada nos pontos cruciais, é lançada sobre a «vida», na tentativa de a corrigir. «A minha história alternativa». Engenharia ou engenho? A «vida» metida num engenho que se experimenta rodar num sentido ou noutro. Roleta, girândola, relógio, tempo, o «avançar silencioso do ser»[2]. «O Diogo decidiu que o meu aniversário é a 23 de Dezembro.» «Natália é um bom nome.» «What’s in a name? That which we call a rose/By any other name would smell as sweet»[3]. Datas e nomes, que coordenam a realidade, bóiam talvez ligados a enigmáticas raízes. Na ausência de certificação, tudo é trocável. Que nos propõe, enfim, este modelo narrativo? Que a vida acaba sempre por ser aquilo em que escolhemos acreditar, um jogo de aparências, de intenções encobertas, de dúvidas, de ambiguidades, de interesses subterrâneos, de resoluções infundadas, cortinas de fumo, simulacros? Que a vida é um meio ambiente muito pouco sólido e algo resistente a consolidações? Um jogo de interpretações, de enganos, de mentiras, de conquistas e perdas, de convicções e pragmatismos, de escolhas e cegueiras, de versões, de relativismos, de alternativas, de presunções, de traições? O quiasmo, em que cada termo polariza uma ordem inversa, é a figuração de que nada é o que é. Representa-nos como sendo personagem dos outros e, aos outros, como sendo personagens nossas, perante a dificuldade de entender o ser, a impossibilidade de «descascar a cebola» sem destruir a cebola. Explica-nos que a instabilidade caótica da vida só se supera pela substituição funcional. Por exemplo, de Paulo por Jorge, de Jorge por Fátima, de Fátima por Paulo, que configuram falsos dilemas cuja correcção é sempre possível. É com a entrada de Fátima em cena que começa a desenhar-se o apex do quiasmo. «Fátima era eu às avessas.» Num texto quiasmático o desenlace da intriga não corresponde ao fim do discurso. É o caso de Natália. O que temos no fim do discurso é tão só o fim da construção que produziu um desenlace medial. Numa simplificação técnica, no centro geodésico da mancha gráfica de 200 páginas, ou seja, na página 99, encontra-se o ponto de viragem. «Se ainda te odiasse como até ontem…». Aqui, na junção dos dois mundos (o de Natália e o de Fátima), jaz o desenlace: a filha dos terroristas e a filha do pide amam-se. No primeiro braço da cruz, os mistérios e as dúvidas; no segundo, as explicações, as soluções. Na página 111, Natália e Fátima estão rigorosamente, especularmente frente a frente. O pai de Fátima matou os pais de Natália/o avô de Natália protegeu Fátima. «Para o assassino dos meus pais, os meus pais eram os assassinos.» Neste quadro muito esquemático, acontecem coisas talvez espantosas, mas não movidas pelas personagens. Estas são peças de um jogo com índice de expectativa pouco subtil, como se o resultado estivesse previamente combinado. Natália, como personagem, é uma figura banal, um joguete, que se espanta do que lhe acontece, daquilo em que se mete, empurrada na corrente que outros movem, personagem dos outros. A relação entre Fátima e Natália, o idílio amoroso, cria-se num ambiente de sentimentalismo banal de sorrisos e olhos marejados, forçado a alterar-se em cenas de forte teatralidade, pretensamente projectadas a partir de desejos insondáveis, inverbalizáveis, invertendo à condição de real o que haveria de ser sonho psicanalisável: «arroubos de madona lactante»; «prosa delirante» — na hora de apagar o texto, parecem fúteis, patéticos como uma penitência. A tensão ominosa é propriedade de um narrar demiúrgico ao qual o leitor naturalmente concede a atemporalidade e a omnisciência que lhe permitem ir distribuindo pelo tempo narrativo indícios do desfecho, em função da tensão leitora que quer criar. Indícios não são hipóteses, são antecipações de quem já sabe, de quem possui o tempo todo, a história toda. O autor, porém, ofereceu o discurso a Natália. Natália não sabe senão escrever um diário que, ainda assim, mais transitivo do que reflexivo, se fica por ser um modo e não uma estrutura: um «corpo prosopopeico» do romance que poderia ter sido. Todos os diários são falsos e este mais do que outros. Somos informados do quadro genético fictício deste texto diarístico e o abrir desta fissura gera um intervalo por onde espreita o fantasma do autor. Este autor, porém, deixou-se possuir por Natália e o leitor sente-se, assim, como que preterido no seu direito a uma escrita da melhor qualidade que não é, por razões de verosimilhança, certamente a de Natália. Consequente com a idiossincrasia verbal da sua autora, o registo diarístico implica um protocolo narrativo de segunda que requenta a tensão expectante da intriga. A tensão relatada é como um elástico bambo: deixa cair, não projecta. Neste banho-maria próprio do diário e nesta inépcia verbal própria de uma Natália entrevistadora televisiva, os omina, os ecos, as citações são ainda a sombra probatória da presença do autor. Nesta assombração da lógica diarística pela tensão romanesca detectamos o autor. O autor, que parece ter cedido o seu lugar, acaba por ser protagonista de um acto fundamental: o delete de Natália não foi eficaz, porque alguém garantiu um save, talvez num gesto de generosidade vingativa do apagamento da entrevista inicial. Alguém salva este diário e, para os devidos efeitos, ainda que perversos, empresta-lhe a sua assinatura: o autor. Quiasmo vem do grego χιασμός que significa ‘cruzamento’ e tem como inicial o Χ, símbolo cristológico entre os romanos. A arte do quiasmo é uma arte retórica e daí simbólica. Preenche uma função feiticista, encantatória. É um filtro. Prende e organiza o olhar para a teatralidade pendular da história, cercando-o hipnoticamente. De Natália para Fátima, de Fátima para Natália, até à sobreposição de todas as cores numa mistura branca de todos os possíveis de Natália e de todos os possíveis de Fátima, a síntese: a morte e o vazio. O vazio, a banalidade da vida de Natália por sobre a morte de Fátima. A neutralização, porém, não é absoluta. Sobra o escritor da entrevista que afinal ainda não morreu e, publicou um romance chamado Natália.

Maria Almira Soares


[1] Sá de Miranda

[2] Heidegger

[3] Shakespeare

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por Maria Almira Soares às 14:52

Terça-feira, 05.08.14

COMO O SAGUI DOS ESTEIROS

Delimitam o campo. Tiram de cena quem não é de cena. Fazem-nos o filme.  E, aí, o que foi construído transforma-se em inevitável: a personagem que preferíamos vai mesmo morrer... a cidade que amávamos vai mesmo desabar... as palavras que nos fascinavam vão mesmo deixar de ser ditas, ouvidas... a não ser que... a não ser que, como o Sagui dos Esteiros, alguém se 'ponha de pé na cadeira e solte um berro, que se ouça em todo o cinema:
— Cuidado, Macacoi, que o gajo 'tá na esquina!'

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por Maria Almira Soares às 16:19

Sexta-feira, 01.08.14

A DILUIÇÃO DO PROFESSOR

 

Trata-se de uma escola que prefere não produzir atrito nem estranheza e reivindica a realização cabal e feliz da criança. Ao fazê-lo, a educação escolar concebe-se como se ela própria fosse o fim para o qual trabalha, como coisa que se cumpre no imediato e, por isso, logo gera satisfação, subtraindo à educação o desconforto de se fazer como um processo de resultado diferido. A deslocação do professor, nesta nova ecologia escolar, faz parte do episódio mais nomeado pelos críticos deste processo, o da facilitação, a que, frequentemente e pejorativamente, insistem em chamar «facilitismo». A dinâmica de facilitação, instaurada nas práticas educativas escolares, é convergente com a transformação do professor/mestre em professor/agente educativo entre outros agentes educativos; não deriva de princípios pedagógicos cientificamente sustentados e a sua natureza pragmática contribui para o reforço da sua consolidação. Não obstante este processo de pluralização, diversificação plana, naturalização da escola e das ações nela decorrentes, a aula, detentora de uma significação muito específica e muito formal, não perdeu o seu lugar na sua representação, positiva/negativa, quer no vocabulário quer no imaginário escolares. Há certamente razões para que estas transformações, tendentes a diluir o professor e a aula num conjunto alargado de agentes e de ações, não tenham logrado, na referência escolar, desenraizá-los do seu lugar forte.

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por Maria Almira Soares às 16:03


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