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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
E em tudo isto era o arruído tão grande que se não entendiam uns com os outros nem determinavam coisa nenhuma. E não somente era isto à porta dos Paços, mas ainda em redor deles, por onde pudessem estar homens e mulheres. Umas vinham com feixes de lenha, outras traziam carqueja para acender o fogo, cuidando queimar assim o muro dos Paços, e diziam muitos doestos contra a Rainha. De cima não minguava quem bradasse que o Mestre era vivo e o Conde João Fernandes morto, mas isto não queria nenhum crer, dizendo: «Pois se vivo é, mostrai-no-lo e vê-lo-emos!» Então os do Mestre, vendo tão grande alvoroço como este e que cada vez se acendia mais, disseram que fosse sua mercê de se mostrar àquelas gentes, que doutra guisa elas poderiam quebrar as portas ou lhes pôr o fogo e, entrando assim por ali dentro à força, não as poderiam depois tolher de fazer o que quisessem. Então se mostrou o Mestre a uma grande janela que dava para a rua onde estava Álvaro Pais e a mais força da gente, e disse: «Amigos, apacificai-vos, que eu vivo e são sou, a Deus graças.» E tanta era a turvação deles e assim tinham já em crença que o Mestre era morto, que tais havia aí que aporfiavam que não era aquele.
A ignorância é um obstáculo à mudança. Quanto menos se conhece um terreno, mais medo se tem de nele dar um passo. Fica-se agarrado ao pedaço de pedra onde se nasceu, com que se nasceu. Ignora-se que essa pedra faz parte de um vasto mosaico cujas pedras já dançaram várias vezes ao sabor dos inevitáveis movimentos tectónicos da comunicação. Movimentos de origens e naturezas várias, a profundidades várias. Crê-se, denegando o saber, que a pedra em que se nasceu é sólida como um princípio a venerar, a respeitar, a defender, a conservar. E tem-se medo de que se estrague. Ignora-se que ela própria, essa pedra, não é senão um estrago. A ignorância e o medo do ignorante são radicais. E reversíveis. O medo produz ignorância e a ignorância produz medo. E o medo alucina, fabrica cortinas que apagam o saber, chega a disfarçar de ignorante o próprio sabedor. A ignorância ata, amarra, prende e produz paralisias amedrontadas. Ou ameaças amedrontadas. E o denominador comum destas frações, cujos numeradores são a ignorância e o medo, é a confusão. Instala-se, aduba, viceja como vivaz erva daninha, a confusão. Sem mondadores expertos, a paisagem, ao sabor da confusão, alastra como um vasto campo de espontâneas e convictas asneiras. Asneira, a bela flor da confusão, filha dileta da ignorância e do medo!
Dizem que o pintor Apeles foi criticado por um sapateiro, por ter pintado os atacadores de uma das sandálias mais curtos do que os da outra. No dia seguinte, o sapateiro, satisfeito por ver corrigido o erro que assinalara, começou a criticar a perna. Apeles, indignado, lembrou-lhe que um sapateiro não deve dar opinião acima das sandálias.
(Traduzido de Plínio, o Velho)
Facilitar é criar um circuito em que as coisas giram sobre si próprias e se confortam mutuamente sem prova nem certificado. A casa do fácil é um jogo de espelhos em que todos os reflexos se estimam reciprocamente. Ecos e falas embatem numa blindagem surda à liberdade do ar onde cantam ventos de verdade. Facilitar é fácil, precário, não radica.
Palavras de uso pouco abundante, que exigem situações, objetos, sujeitos, factos, com um grau de intensidade semântica não rotineiro, entram em vigor diária e chãmente.
Talvez não haja nada mais estafado do que as palavras. Cozinhadas, costuradas, recortadas, coladas, boladas, descascadas, centrifugadas, desbotadas, maquilhadas, embrulhadas... as palavras têm peso e ocupam espaço no imaginário de quem as vê, ouve, olha, joga, veste, pisa, come, respira, aplaude...
O que de melhor e mais original Saramago criou foi a sua voz narrativa. Saramago inventou uma cultura verbal para um olhar escrutinador, radical, judicioso. Parabólica como a voz dos deuses, é o ícone do seu deus interior, esta fala reveladora do humano na sua miséria e no seu esplendor. Larga e densa, deixa que nela se enredem outras vozes como se a linearidade da frase fosse texto. Uma dessas vozes verdadeiramente pasmosa e portentosamente irónica é a da morte. Em cima de uma infinidade de versões sobre o mistério da morte, Saramago reinventa-a como um conhece-te a ti próprio, como uma viagem a Delfos para nos deixarmos tentar pelas verdades com que nos enganamos. Inventa-a e dá-lhe um papel, um guião minucioso que ela está disposta a cumprir violentamente. Mas eis que — depois de um longo arrasto e arresto das mil e uma escaramuças que a suspensão da morte desencadeia contra as necessidades encobridoras das linhas puras e duras da vida — eis que as palavras se lembram de inventar um violoncelista. «Com as palavras todo o cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas». E é então que a violência da morte se dissolve. Só no Violoncelista se dissolve a violência da morte. Saramago nunca nos revela a razão da incapacidade ontológica do Violoncelista para aceitar a carta violeta. Mas suponho que sabemos. Supõe que sabemos. A morte não tem antónimo, porque a vida é o seu caminho e um caminho é só um caminho. Mas tem contraponto porque, sobre o que num caminho poderá ir, há uma infinidade de escolhas. Algumas, como a Música, a Arte, o amor da Arte, o amor do artista, sobrarão da morte. E, numa rasteira à violência da vida, num ponto de fuga, obrigarão a morte a enfrentar o desconhecido. Perante uma violência radicalmente diferente da sua, a da arte, a morte suspende-se. A Arte é uma violência para a cegueira do algoz.
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