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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Domingo, 22.02.15

SOBRE ESTE RIO EU NÃO VOU

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Até porque não o encontrei. Ao rio. Se fosse um rio, a corrente hipnótica das suas águas arrastaria o meu olhar levado pelas linhas contínuas do seu movimento. Mas mesmo que houvesse o rio, que eu não encontrei, a sua superfície juncada de detritos, de desvairados objetos desirmanados, encobriria a luz fascinante da água que corre, desviando o meu olhar, contrariado e interrompido por insistentes estímulos, distraindo-o com mais uma cor, mais um formato, mais a dúvida de uma identificação, de uma bizarria. Mesmo que houvesse rio, o meu olhar não se afundaria. Saltitaria de um par de botas para um pingo no sapato, de uma boina para uma bola, de uma bicicleta para um jornal, um comboio, uma harpa… Distração inconsequente, dispersão abrangente, destrutiva do mistério, do rio negro e subterrâneo, do náufrago da dor e da doença, talvez da morte, do fim no grande mar. Alimentar-me-ia a distração de passeante de margens que augura a feliz surpresa da descoberta de mais um objeto, estranho ou familiar, boiando, coisa leve, ocultadora do volume denso e negro das águas da dor. E eu, guarda-margens, poderia entreter-me com o jogo de associações, repetições, sobreposições, encaixes e, em vez de seguir um rio, entraria num bazar, numa loja de quinquilharias, espicaçada — e, às tantas, cansada — por trânsitos de compra e venda que igualizam ao sofrimento o desejo de um par de botas. Não fluiria, giraria. Nada me impulsionaria ou me arrastaria. Giraria, eixo de um carrossel habilmente manipulado para exibir as girândolas preferidas do manipulador.

Mas não.

Se não é filosófico, se não é corrente — de pensamento e de sofrimento — não é rio, não é camoniano, não é sálmico.

É uma arte privada de quem possui as figuras para as ir distribuindo na paisagem. Um diaporama de instantâneos risonhos, mesmo quando profundamente tristes. Pessoas e objetos pontuam e repetem. As palavras não são pedras a cortar a água e a levantar ondas. Não são barcos carregados de mistério. São cartões de um jogo demasiado pessoal para ser LEITURA. Não é rio. Talvez comboio. Talvez a paisagem fractada. A acelerada sequência quebrada de imagens, vista de um comboio em andamento. E, na paragem final, uma espécie de encolher de bicho articulado que, por inércia, entrechoca e chocalha tudo o que foi sendo lançado borda fora. E todos saem. Todos, objetos, porque, vítimas de sinédoques constantes, as pessoas são objetos. Não há transporte do sentido para a dimensão do imaginário revelador. Há a atribuição aos objetos de um poder imanente que vulgariza, como se, por si mesmo, um pingo fosse… um poço fosse…. uma metáfora. A metáfora é uma palavra preguiçosa, que não quer abrir o seu cerne, mas florir efemeramente tocada por uma luz ocasional. Se as palavras perdem o seu poder de avanço exploratório, revelador, ficam fixas como estampas num álbum da infância. Submetem-se à sobreposição habilidosa de jogos de transparências. Uma instalação: na loja de quinquilharias, pendem, do teto, das paredes, objetos, vidas, pessoas, lugares, algumas falas, alguns gestos; um bazar, em que, espalhadas pelo chão, vão ficando coisas. Uma instalação dividida por um pano de cena entre o hospital e a memória. E de que serve tudo isto? Está ao serviço de quê? De quem? Tudo serve a PERSONAGEM. O centro, a referência. Mãe, tio, mulher, barbeiro, guarda-linha, professora, criada, avó, avô, pai, amigas da mãe, bicicleta, botas… E para? Para o ajuste das contas. Das contas do mal julgado, do mal amado, do mal enganado. As contas da ausência. E as do medo de ficar ausente donde se esteve sempre ausente. As contas da queixa de si e não da construção de um mundo. Não hipotético testamento, dádiva, mas recolha, inventário dos trastes. Refluir. Não fluir. Refluxo sentenciador.

Não há viagem para. Há refluxo a um buraco negro. Contrário polar do rio.  

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por Maria Almira Soares às 16:30

Sábado, 14.02.15

O AMOR TRANSIDO

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 A noite passada,

à hora em que a Ursa

mais perto discursa

da mão do Boieiro;

e o sono profundo

no grémio fagueiro

por todo esse mundo

restaura os mortais,

em meio era a noite;

o exemplo dos mais

no leito eu seguia;

sereno dormia...

À porta imprevisto

Cupido me bate!

À pressa me visto;

redobra o rebate;

acudo a correr.

«Sou eu» — diz de fora —

«não tens que temer;

«sou um pequenino

«que vaga a tal hora,

«molhado e sem tino,

«perdido no escuro,

«pois lua não há!»

Ouvi-lo gemendo

de mágoa me corta;

a lâmpada acendo,

franqueio-lhe a porta…

em casa me está!

Descubro (em verdade

mentido não tinha)

gentil criancinha

com arco e carcás.

Remexo nas brasas

da minha lareira;

restauro a fogueira;

as mãos, que são gelo,

lhe aqueço nas minhas,

lhe espremo o cabelo,

lhe enxugo as asinhas;

já frio não faz.

«Vejamos se a chuva»

(dizia e sorria)

«a corda do arco

«me não danaria!»

Levanta-a do chão;

recurva-o, dispara

no meu coração.

A frecha que o vara

parece um tavão.

Eu, dores danadas,

e o doudo às risadas,

de gosto a pular!

«Meu caro hospedeiro»,

(me diz prazenteiro)

«agora é folgar.

«Permite me ausente;

«meu arco está são...

«Quem fica doente

«é teu coração!»

 

Ode anacreôntica (tradução de A. F. Castilho)

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por Maria Almira Soares às 17:46

Sábado, 14.02.15

Claros raios ao Sol, luz às estrelas.

 

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Quando Amor nasceu,

Nasceu ao Mundo vida,

Claros raios ao Sol, luz às estrelas.

O Céu resplandeceu,

E de sua luz vencida

A escuridão mostrou as coisas belas.

Aquela, que subida

Está na terceira esfera,

Do bravo mar nascida,

Amor ao Mundo dá, doce amor gera.

Por amor se orna a terra

D’águas e de verdura,

Às árvores dá folhas, cor às flores.

Em doce paz a guerra,

A dureza em brandura,

E mil ódios converte em mil amores.

Quantas vidas a dura

Morte desfaz, renova:

A fermosa pintura

Do Mundo, Amor a tem inteira, e nova.     

 

Ninguém tema seus fogos,

E chamas furiosas.

Amor é tudo, amor suave, e brando,

Sujeito a brandos rogos,

As águas amorosas

Dos olhos com brandura está alimpando.

Douradas, e fermosas

Setas n’aljava soam

À vista perigosas;

Mas amor levam, dos amores voam.

Amor em doces cantos,

Em doces liras soe,

Torne seu brando nome este ar sereno.

Fujam mágoas, e prantos,

O ledo prazer voe,

E claro o rio faça, o vale ameno.

No terceiro Céu toe

D’amor a doce lira,

E de lá te coroe,

Castro, de ouro o grã Deus, que amor inspira.

 

António Ferreira, Castro, Lisboa, Ed. Ulisseia, s. d., págs 178 -179.

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por Maria Almira Soares às 11:54

Terça-feira, 10.02.15

A GALINHA

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Minha mãe e minha tia foram à feira. Minha mãe com o meu pai e minha tia com o meu tio. Mas todos juntos. Na camioneta da carreira. Na feira compraram muitas coisas e a certa altura minha mãe viu uma galinha e disse:

- Olha que galinha engraçada.

E comprou-a também. Estava agachada como se a pôr ovos ou a chocá-los. Era castanha nas asas, menos castanha para o pescoço, e a crista e o bico tinham a cor de um bico e de uma crista. Nas costas levara um corte a toda a volta para se formar uma tampa e meterem coisas dentro, porque era uma galinha de barro. Minha tia, que se tinha afastado, veio ver, estava a minha mãe a pagar depois de discutir. E perguntou quanto custava. A mulher disse que vinte mil réis, minha tia começou aos berros, que aquilo só se o fosse roubar, e a mulher vendeu-lhe uma outra igual por sete mil e quinhentos. Minha mãe aí não se conformou, porque tinha regateado mas só conseguira baixar para doze e duzentos. A mulher disse:

- Foi por ser a última, minha senhora.

[..........................................................]

 

Vergílio Ferreira (Contos)

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por Maria Almira Soares às 13:15

Quinta-feira, 05.02.15

HERA E O TEMPO

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 Alguma vez alcançarei a sabedoria de Hera, a que enganou o poder destrutivo de Cronos? Descobrirei a pedra com que lhe saciarei a fome? Alguma vez conseguirei compreender que coisa é essa, o tempo? Alguma vez, alcançarei o poder de o manipular? Aprenderei a colocar alguma racionalidade na utopia faustiana?

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por Maria Almira Soares às 14:11


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