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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sábado, 28.01.17

VERGÍLIO FERREIRA

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«Há em mim uma falta essencial, pecado original cometido na eternidade. Mas não o sei. Não é assim a maçã que Adão mordeu por mim, é qualquer coisa de mais profundo e ininteligível e absoluto. Qualquer coisa que me viciou a vida toda e se manifesta na culpa e na vergonha que me embaraça em todas as situações e me diminui absurdamente aos meus olhos (e aos dos outros que dão por isso) e me retira toda a satisfação do que é para satisfazer como se o não merecesse, e restringe tudo o que era de supor-se dar-me uma pequena glória ou triunfo. Há uma nódoa que dessa eternidade se distingue e vem a ser mancha em tudo que faça e brilhe. É fácil talvez determinar as razões dessa enfermidade sempre presente e aflitiva, mas são razões que não servem, porque não embaraçam os outros e os deixam livres para serem por inteiro.

         Assim aquilo mesmo que era de contentar-me e os outros julgam que seria, encurta-se-me logo no ser contentamento, porque o seu negrume o escurece e o que me fica é quase piedade por essa irrisão, esse motivo de prazer que logo o é menos, não porque eu ambicionasse mais, mas porque isso fica sendo menos do que é. Há um olhar fito da distância absoluta que me julga sem me julgar e é julgamento e acusação com só fixar em mim a sua dureza e gravidade e o brilho imóvel do seu fitar-me. Fui mandado para a vida com esse ferrete, como ave que anilhassem e fosse largada em liberdade mas com o controle que fica atrás e a segue até ser morta e ser-lhe lida a anilha. Fui largado para a vida mas ficou atrás o olhar que me segue e me faz sentir constantemente uma culpa que cometi e não consigo identificar e esclarecer. Sei só em todo o instante e em cada acto e em cada situação que cometi essa falta de que me resta o vexame sentido em cada situação e em cada acto. É por isso que nunca estou à vontade, contente comigo, é por isso que nenhum acto meu meritório eu o julgo com merecimento, mas sinto antes que ele pouco significa em face de não sei quê que me diminui e confrange e quase faz sorrir de pena de eu poder pensar que não é assim. Toda a minha vida deste modo se me realiza por metade e mesmo o que é em mim faltoso se diminui em face de uma falta maior e mais grave e incognoscível e o que é de contentar-me eu o julgo pequeno para compensar essa falta longínqua e incompreensível. Assim me causa espanto que os outros se estabeleçam à vontade no mundo que é seu e triunfem com o seu triunfo e exerçam a sua importância como se tivessem nascido sem um pecado cometido antes de nascerem. Assim os admiro sem saber ao certo se são inconscientes ou se de facto não nasceram anilhados na sua pata de gente. Há uma falta na minha origem mas é duro que uma vida inteira não baste para a remir. E concentradamente olho os meus pulsos e tornozelos para decifrar as anilhas que alguém aí me pôs e não vejo e de que jamais conseguirei desembaraçar-me.»

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 4

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por Maria Almira Soares às 13:32

Sexta-feira, 27.01.17

O SOBREVIVENTE

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The Survivor 


Once more he sees his companions' faces
Livid in the first faint light,
Gray with cement dust,
Nebulous in the mist,
Tinged with death in their uneasy sleep.
At night, under the heavy burden
Of their dreams, their jaws move,
Chewing a non-existant turnip.
«Stand back, leave me alone, submerged people,
Go away. I haven't dispossessed anyone,
Haven't usurped anyone's bread.
No one died in my place. No one.
Go back into your mist.
It's not my fault if I live and breathe,
Eat, drink, sleep and put on clothes.»

Primo Levi

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por Maria Almira Soares às 14:57

Quinta-feira, 12.01.17

STEFAN ZWEIG E OS OLHOS ALUCINADOS DO KING JOHN DE BLAKE

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STEFAN ZWEIG, O MUNDO DE ONTEM

   A História é o nosso ontem. ONTEM, palavra letal, para quem, ignorando-o, dele vive irremediavelmente separado. Porém, a prevenção contra esse veneno, que é a ignorância da História, não se faz, se nos limitarmos a conhecê-la dentro de uma sintaxe grosseira e apressada de sujeitos e objetos, ondes e quandos e alguns porquês e para quês.

   Inseparáveis, palavra e pensamento dispõem, ambos, de modelos sintáticos diferenciados, com os quais podemos ler, com os quais podemos escrever. Desta escolha, decorrem poderosas consequências. Veja-se, por exemplo, como a sintaxe acelerada em que hoje vivemos é coisa estiolante que estrangula a complexidade da significação. Saber de sintaxe, saber dos meandros, das esquinas, dos desdobramentos que um ou outro uso da sintaxe possibilitam ao nosso olhar-pensamento, é importante e útil. A realidade e o pensamento manifestam-se e interrogam-se nas dobras dos textos.

   O livro de Stefan Zweig desvenda-nos um ONTEM dito numa sintaxe demorada e longa, plena de rumos, encontros, desencontros: adversativa, concessiva, consecutiva, disjuntiva, explicativa, condicional... Nesta sua teia de conexões, que aprofunda e ultrapassa o quem fez o quê, quando e onde, porquê e para quê, ele, o autor, é o sujeito cuja permanência e densidade — luz/sombra — se nos oferece como ponte sobre o nosso ONTEM. A sua vida, o seu percurso, é a ponte que ele nos dá, para que atravessemos o nosso ONTEM feito da sucessão dos seus hojes.

   O benefício cognitivo da leitura deste livro não é apenas um semântico acréscimo de conhecimento histórico, mas redunda também no acesso a uma rede sintática de leitura da História. Lê-lo não é apenas ser emotivamente submerso pelo dramatismo morfológico da substância narrada e respetiva qualificação. Lê-lo não é apenas saber da guerra, das guerras; é saber com que ímpeto adversativo a escuridão corta a luz, o atropelo corta o movimento, a guerra corta a paz, a queda corta a ascensão. Lê-lo não é apenas saber do curso dos dias no ontem de Viena ou no ontem de Paris; é saber do inesperado contacto em que a corrente dos dias se disjunta e um fio de energia nova começa a fluir. Lê-lo não é apenas saber desse buraco-negro de desumanização que industrializou a perseguição, a absoluta rejeição e a morte, como se o ser humano fosse mera matéria-prima de lucros morais, ideológicos, políticos, económicos; é ver esse buraco-negro como brusco e consecutivo desnível sísmico no pensar e no agir até aí rotineiros. Lê-lo não é só saber de entusiasmos, de triunfos, de renúncias, de amarguras, de tragédias, de desânimos; é conceder, à candura e à mansidão de um aparente modo de ser, os picos e os abismos de uma vida pessoal, cultural, pública. Lê-lo não é apenas assistir ao nascimento de uma era de indiferença, de volatilidade, de dispersão, de desorganização do tempo, de indecisão, de alisamento, de niilismo, de fragmentação, de pulverização; é ver esse dilaceramento explicado no contraluz da gravidade, da durabilidade, da hierarquização, da crença. Lê-lo não é apenas assestar um óculo certeiro por onde se vê o ONTEM; é ficar a saber que o recorte de um olhar se faz sob a condição de existência de uma multiplicidade de níveis de observação.

   Da sua amada e perdida coleção de significativos documentos e objetos culturais, a única peça que o dolorosamente apátrida Stefan Zweig conservou foi um desenho, «King John» de William Blake, o desenho dos «olhos alucinados» do rei. Talvez estes olhos alucinados sejam a imagem e o símbolo de uma negação interior, muda e impotente, perante prometidas vagas de caos... Talvez o conhecimento da História, do nosso ONTEM, seja um meio de desalucinar a consciência...

 

 

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por Maria Almira Soares às 14:49

Segunda-feira, 02.01.17

VOTO DE BOM ANO

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por Maria Almira Soares às 11:26


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