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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
OS LIVROS QUE A LERDOCELER JÁ LEU:
(De A a Z e de 1 a 74)
Todo o escritor recria literariamente um território privilegiado, interior e exterior. O território literário exterior de Carlos de Oliveira é a Gândara, recriação da geografia biográfica em que não nasceu, mas onde a sua tenra vida de dois anos foi plantada, até que, pelos meados do século XX, se transplantou para Lisboa, para os cafés, para as tertúlias com os seus confrades, para a vida literária. Mas a Gândara permaneceu. Permaneceu percecionada, também, como território interior.
A Gândara, entre o Vouga e o Mondego, zona de Mira, feita de dunas e pinhal, de areias, de lama, de barrocais e de chuva, cinzenta, insalubre, pantanosa, infértil, é, em Uma Abelha na Chuva, «Paisagem e Povoamento» (subtítulo de Finisterra, último romance publicado durante a vida do autor). A Gândara, topónimo que transporta a semântica da infertilidade, é, em Uma Abelha na Chuva, o território-retrato do país, num dado Espaço/Tempo: a pobreza, a miséria, o desconforto, a falta de horizontes, a divisão social, a opressão, o conservadorismo, a falta de soluções, a infelicidade, o convencionalismo, a hipocrisia, o mundo parado, a morte, a ausência de cores, de vitalidade, o medo, a ignorância, a cupidez, a doença mental, a obsessão, o fechamento, o provincianismo, a proximidade doentia entre os seres. A Gândara é, em Uma Abelha na Chuva, um enxame de seres cegamente agarrados uns aos outros, uma colmeia de seres boicotados pela vida e recolhidos nos seus inconfessáveis e doridos mundos interiores, habituados, conformados, ancorados no medo do inferno, presos numa prega parada da História. Terra que, como um ser, como uma testemunha-cúmplice, projeta e absorve uma luz crepuscular, melancólica, outonal, apodrecida, mortal.
Uma Abelha na Chuva é um romance escrito por um poeta. Carlos de Oliveira é poeta até quando escreve romances. Não se trata de lirismo, mas de oficina. Carlos De Oliveira trabalha os seus romances como se de oficina poética se tratasse, ele, para quem, a poesia é trabalho oficinal que não cessa de apurar. Desde o título às palavras finais, a significação metafórica prevalece, sobrepondo-se à explicação descritiva. Os estados psicológicos são-nos dados através da plasticidade das metáforas e não discursivamente. Dizer por metáforas, por imagens, abre e encerra este romance em que uma história, assim significada, se expõe à decifração pela leitura. E isto é próprio da linguagem poética. Isto e os trâmites da construção narrativa, depurada em planos densos, concentrados, recortados como estrofes, harmonizados como ecos, retornos, alternâncias, contrastes, progressões, contraposições — trâmites usuais da construção poética. A história escreve-se, equilibra-se, numa sucessão de planos que não carecem de explícitos elementos de ligação. Trata-se de uma sequencialidade formalmente paratática e semanticamente depurada, trabalhada à maneira de um poema. Uma primeira estrofe, perdão, um primeiro começo: o homem. Uma segunda estrofe, perdão, um segundo começo: a mulher. Depois, o encontro. A paisagem. O povoamento. Está lavrada a primeira leira, estão lançadas as sementes. Chove e, de tais sementes, o fruto, ou seja, a história de uma relação homem/mulher, ameaça ser maligno. Cresce e a ameaça concretiza-se em crime e em suicídio. Todavia, quase nada se altera nem na paisagem nem no povoamento, amortecidos como uma abelha apanhada pela chuva.
A história vai-se revelando pela ação e pelo pensamento/memória: dois percursos a decorrerem, a cruzarem-se, a desfasarem-se, a coincidirem, para nos irem deixando perceber o que ali está em causa. Começamos a saber nomes, condições sociais, indícios emocionais. A névoa e a noite dos quadros iniciais abrem-se para a revelação de desejos e estados emocionais decisivos, de contrastes, de conflitos.
As sequências narrativas são magistralmente compostas: Álvaro Silvestre a pé, pela lama, até Corgos; a jornada de charrete na grande chuvada noturna; a violenta discussão doméstica na arena de uma cultura conjugal minada pelo despeito, pela cobardia, pela humilhação; a histriónica e triste bebedeira de Álvaro Silvestre; o velho cego, o rapaz servente e o burro, sob o céu relampejante da tempestade; o grotesco, o primitivismo da cena de um assassínio à cacetada, grosseiro, sem nenhuma sofisticação, sem nenhuma inteligência.
E um narrador ousado, original e pleno de mobilidade, única voz livre numa teia de submissões.
Na vida humana representada em Uma Abelha na Chuva, misturam-se o machismo em estado puro, a aproximação à bestialidade, a condenação sem ressalva, a frustração, a humilhação. A vida é morte, porque não sabe e não pode transformar-se, abrir-se, desenclaustrar-se, libertar-se. A vida é arena de luta de emoções primárias, arquetípicas: o orgulho, a vingança, o medo, a cólera, o desespero, o remorso. O seu palco, físico/psíquico/moral, são inesquecíveis personagens, magistralmente compostas.
Álvaro Silvestre: a feiura, a disformidade, a grotesca bebedeira, o atordoamento, o desleixo, a decadência, o medo, a parte fraca de uma cultura conjugal feita de submissão e poder.
Maria das Mercês Pessoa de Alva Sancho (Silvestre): a fidalga, a «joia de família» investida no negócio-casamento de «sangue por dinheiro», o fogo enérgico e álgido, instigador, dominador, o trágico grito-ferroada, abafado pela chuva do hábito e da vergonha social, o nojo e a rejeição soterrados pela conveniência.
Leopoldino: o fantasma e o sonho, o contraponto longínquo, ameaçador, a sombra, a ausência presente.
Na trama deste romance sobre a culpa e o medo, a vertente psicológica transcende a visão material e todos os fios estão tão densamente ligados que, perante o desfecho, é lícito perguntarmos:
Quem é a vítima?
— Jacinto, o que é assassinado?
— Marcelo, o boçal e ingénuo de que fizeram um assassino?
— O velho oleiro a quem roubaram um sonho?
— Maria das Mercês humilhantemente negociada e afetivamente sonegada?
— Silvestre, o aleijão gerado socialmente, o palerma, jogado por forças culturais e sociais poderosas?
Quem é o criminoso?
— O servente Marcelo, o autor material, o que desfere a cacetada?
— O velho mestre António que é o mandante e o prometido pagante, o manipulador?
— Álvaro Silvestre, o autor moral, que cobardemente fornece a motivação e instiga, transferindo o seu móbil para outro?
— Maria das Mercês que é um polo gerador de apetites, de humilhações, de frustrações, de desequilíbrios, de desejos e emoções violentos?
— Nesta teia, só uma personagem escapa ao jogo de culpas/inocências: CLARA?
— Ou não: ela que, através do amor, desafia o que é conveniente, o que está estabelecido?
Se olharmos este romance como representação social, poderemos ainda perguntar:
— Neste quadro de forças e submissões, o que faz o Povo?
O Povo é um zero à esquerda facilmente varrido de cena e confinado a um papel de inútil palrador, que troça, que atira pedradas, mas que rapidamente baixa a cabeça e segue um destino sobre o qual nenhum poder de escolha lhe cabe.
E tudo acaba em nada, nenhuma justiça, nenhuma verdade, são repostas. Aquelas mortes, aquelas vidas, aquelas gentes, não valem nada. A abelha, o ser quente, solar, detentor do mel, é apagada pela chuva perene sobre a qual não há esperança de que cesse. O dr. Neto, consciência distanciada da teia mortífera, o cultor das abelhas, o sonhador do sol, o pintor do mundo em cores diversas, assiste. Assiste à abelha dizimada pela chuva cinzenta. Ao apagamento da luz clara de Clara. Desânimo? Impotência?
Logo na abertura do romance — depois de dois curtos parágrafos iniciais em que, a propósito do apuramento da escrita, já ronda a vontade de destruir a ideia da linearidade qualitativamente progressiva do tempo — o olhar de lince de Agustina ocupa-se a retirar opacidade à imagem de «independência e gosto» de um estudante atual e a vê-lo como transparência, nada mais nada menos, do que do Werther de Goethe descobrindo Carlota «na sala de jantar, pelas quatro da tarde». Nesta perspetiva como que arqueológica mas paradoxalmente enfraquecedora do tempo, Agustina serve-se de marcadores temporais aparentemente irrisórios — objetos, vestuário, predileções várias, a geografia das casas — como modos de localização e de definição. Por exemplo, As Tartarugas Ninja servem-lhe como uma espécie de carbono 14 na ordem cultural para, numa pincelada, definir e datar a educação de António Clara, o Cravo Roxo. Ou, outro exemplo, neste caso de demarcação de uma origem geracional, através de um modismo procedimental: «a geração dos currículos». Ou ainda outro, o da clarificação de uma dada faixa temporal à luz da aquisição e do uso de um termo verbal neológico: «Foi no tempo de Joana que o stress entrou em Portugal.» Deste modo, Agustina faz deste romance um belo fresco da debandada de modos e de objetos culturais e sociais perdidos na voragem do tempo. Ora isto, este mergulho constante nas profundezas do tempo, esta como que caça submarina aos destroços do tempo, tem as suas consequências. O caos memorialístico, em que vão fervendo as várias histórias que se ligam na história axial, institui-se em método que regula, apesar de tudo, o avançar da narrativa. Agustina escolhe narrar solta de amarras normativas, mas não deixa, no entanto, de, num momento ou noutro, experimentar modos canónicos de contar, nem deixa de apreciar, com a ironia de quem se sabe diferente, um modelo narrativo que segue o preceito sem descarrilar: «Ele era um narrador de grande porte, sabia contar histórias, dar-lhes calor e entretenimento, prender o ouvinte, revelar o personagem, fazer progredir o enredo, obter um final inesperado e que adoçava de pequenos ingredientes da sensibilidade.» Agustina, pelo contrário, assume uma liberdade sem esquema, empenhada não na clareza narrativa, mas no afã de revelar a contiguidade dos elementos corresponsáveis pela produção da essência de um sentido. Não sacrifica à musa da técnica narrativa, mas às divindades que habitam o sentido radical dos lugares, das personagens e dos seus atos. Ou seja, quebra, interrompe, enreda a linha do tempo, sempre que lhe parece oportuno — ou antes, necessário — fechar relações, completar desenvolvimentos, especificar referências, contemplar lembranças, espessar asserções e proposições, apurar, aperfeiçoar, vincar linhas filosóficas. Agustina não busca a perfeição de tipo geométrico. É desmedida. Não lhe interessa o número no sentido original em que Camões ainda o usa.[1] Nem a numeração que estabeleça uma ordem cronológica. Não lhe interessa essa ordem. Agustina desordena genialmente. Sem vertigem. Com gozo. E sem nuvem sobre os momentos de singular limpidez. Uma clareza, por assim dizer, irregular. Agustina atinge a lucidez pelo descompasso, pelo desalinho, pelo desconcerto. Tem a perícia da manobra do tempo. Molda-o sem precauções de crítica nem excessivo respeito pelos modos de atenção de quem a há de ler. De cada coisa, não diz tudo de uma só vez. Vai acumulando traços e pinceladas de cuja sobreposição emerge o desenho. Nas múltiplas voltas da sua (des)ordenação narrativa, Agustina acaba por, certeira mas despreocupadamente, recuperar a essencialidade do objeto do conto. A este propósito, cita Montaigne: «Eu acrescento alguma coisa, não corrijo.»[2] Digamos que, nos seus grandes romances, Saramago ruraliza/oraliza a sintaxe discursiva, mas não a sintaxe narrativa que, nele, é muito racional, planeada, geométrica, quase-estrófica. Já Agustina, se alguma coisa de um certo modo oraliza, é precisamente a sintaxe narrativa tornando-a muito livre, turbulenta, lacunar, gustativa, caótica, sujeita a intempestivas lembranças e a insensíveis esquecimentos, independente de esquemas, casual. Já o discurso, nela, tem o poder da erudição. É, neste caso, um canto, uma elegia, um treno, não em intenção das vítimas de um crime, mas velando um mundo que fenece. Ao contar a história de Camila, Agustina conta-nos várias histórias. O crime noticiado foi o toque de alerta para a invenção de Camila e da sua história, mas também o pretexto que pôs Agustina a cavar na sua leira preferida: as gentes, as casas, as terras, as genealogias, as alianças, as origens e os desfechos das gentes do Douro, o «sentimento do Douro», num processo de pluralização que remete para uma alma coletiva.
[1] «Em versos divulgado numerosos», ou seja, ‘harmoniosos’, in Os Lusíadas, I, 9.
[2] Michel de Montaigne, nos Ensaios, Livro III, capítulo IX, «Da Vaidade», escreve: «Laisse lecteur courir encore ce coup d'essay, et ce troisiesme alongeail, du reste des pieces de ma peinture. J'adjouste, mais je ne corrige pas.» (‘Deixa correr, leitor, mais este lance de ensaio, este terceiro prolongamento do resto das partes da minha pintura. Eu acrescento, não corrijo’). E Agustina Bessa-Luís, na sua coluna «As Sete Chaves de Agustina Bessa-Luís», no jornal O Independente, escreve: «Eu acrescento alguma coisa, não corrijo, como diria o mestre Montaigne».
A razão do apego à leitura da história de um crime, narrada em A Sangue Frio de Truman Capote, ultrapassa o domínio do voyeurismo, da catarse de instintos inconscientes, do sentimento de horror perante o impensável, do espanto contido na pergunta «Mas como é que isto foi possível?».
O interesse por esta leitura centra-se, sobretudo, no facto de este romance, ao tomar um crime como assunto central, fazer, desse crime, um lugar de confluência/dispersão de uma série de vidas. Com variável intensidade emocional. Muito mais do que o espaço narrativo dado aos pormenores da cena de um múltiplo assassínio, o escritor representa e, daí, o leitor “vive” a intensidade emocional dessas vidas: trágica, para as vítimas e para os assassinos; tensa, opressora, preocupante, para os polícias, os juízes, os familiares, os amigos, os vizinhos, a opinião pública; desafiante para a arte narrativa do escritor.
Trata-se de ler sobre comportamentos humanos e as condições de vida em que se manifestam; ler sobre vidas que se revelam, que se transformam, que se anulam, em momentos tremendamente críticos como o de sofrer ou perpetrar um crime; o de ser interpelado pela inesperada e enigmática ocorrência de um crime; o de sentenciar e condenar; o de temer, o de chorar, o de se compadecer; o do tormento ou da indiferença perante a consciência do bem e do mal. Neste romance, o encontro entre a frieza violenta dos assassinos e o medo, o espanto, o sofrimento das vítimas é, sobretudo, um revelador de seres humanos inteiros nas suas forças e fraquezas, na sua capacidade de bem e de mal. Mais importante do que dar a conhecer pormenorizadamente um crime acontecido, é abrir-nos, a nós, leitores, os mundos pessoais que, aqui, se cruzam, se sobrepõem, se inter-relacionam. A paleta das emoções humanas meticulosamente narrada é tão próxima da experiência real, quanta a mestria de Truman Capote para alcançar o equilíbrio entre os factos e a sua representação literária.
O crime abre-nos o conhecimento de uma certa América perdida num povoado ignorado do Kansas, nos anos 50 do século XX, Holcomb. Um aglomerado populacional sem nenhum sinal distintivo, vivendo em concordância com parâmetros e estilos de vida estabelecidos, aceites; ausente do espanto e da espetacularidade; sem revolta, sem cansaço, sem tédio; com aceitação/integração total; com sucesso autorreconhecido — é brutalmente confrontado com uma impiedosa exposição. Gente, uma comunidade humana, que para sempre ficaria fechada no seu pequeno círculo de inter-relações pessoais, vicinais, negociais, mesmo criminais, se a literatura não se tivesse apoderado dela. Se um poderoso romance que, esse sim, foi e é notícia internacional — reveladora de muito mais do que o fait-divers, que é o seu núcleo original — a não tivesse contado genialmente.
A genialidade deste romance está sobretudo na suprema arte com que Truman Capote entabula sucessivos contrapontos suspensivos, a partir de duas linhas de desenvolvimento: a das vítimas e seus contextos/a dos criminosos e suas origens, seus mundos, seus caminhos, seus móbiles. Truman Capote tece, entre estas duas linhas, um espaço simultaneamente de vazio tenso e de aproximação gradual, que só o absurdo do crime vai preencher. Antes do crime, em crescendo; depois do crime, em decrescendo. Primeiro somando factos; depois, somando explicações. Até ao esgotamento da matéria narrativa.
A descrição do quadro específico da perpetração do crime revela pateticamente que ali está a decorrer a única forma possível de relação entre dois mundos abissalmente distantes: o da dupla Perry Smith/Richard Hickock tomada de um quase-automatismo assassino irreversível; o da tranquilidade familiar dos Clutter. Uma única fórmula torna resolúvel o aparente ilogismo, o aparente absurdo, do violento encontro entre esses dois mundos, uma fórmula constituída pelas três palavras do título: A Sangue Frio.
Desfeito o nó de interrogações e expectativas que, desde o início se fora atando e apertando progressivamente, exposto o crime, todo esse tempo anterior à sua perpetração se torna fantasmático. Agora, as linhas de desenvolvimento são outras: a da investigação/fuga; a da condenação/defesa. A expectativa continua a ser a da morte, mas a morte agora é outra: não a que irrompe abrupta e absurdamente sobre a vida; mas a que, numa absoluta lógica condenatória, reivindica o cumprimento de um reequilíbrio: vida por vida; morte por morte.
E o romance fecha-se numa impecável arquitetura de cuja resolução nada sobra: a sangue frio.
Se, à partida, a motivação e o cuidado referencial são jornalísticos, nem por isso a obra acabada deixa de ser profundamente literária. Difícil, mas brilhantemente conseguida, é a síntese entre jornalismo e literatura. Assim se dá o passo inicial e inédito para aquilo a que Truman Capote chama, e justamente, o género da não-ficção e a temática do true crime. Criação iniciadora de um novo tipo de romance. Talvez porque nada retira às exigências de cada uma das duas escritas, o rigor jornalístico e o esplendor literário, Truman Capote cria uma coisa nova.
Em mil novecentos e sessenta e quatro, Roland Barthes, nos seus Essais Critiques, usou o mito de Orfeu e Eurídice para estabelecer que a literatura, mesmo sabendo que o real está por detrás dela, não pode olhá-lo de frente sob pena de perder a sua essência de literatura. Em mil novecentos e sessenta e seis, Truman Capote publicou um romance genial em que o real e a literatura estão frente a frente, sem perda da natureza nem de um nem de outro: A Sangue Frio. É assim a invenção literária: um caminho de originalidades sem fim.
Maria Almira Soares
Maria Almira Soares
Palestra proferida na Biblioteca Municipal de Ovar, no âmbito de «LEIA —Livros, Encontros, Ideias, Autores» — Jornadas da Rede de Bibliotecas de Ovar, em 30 de junho de 2017.
LER É MAÇADA?
«Ler é maçada»
Fernando Pessoa, «Liberdade»
«chegou a vender algumas terras para comprar livros [...] passava noites e dias sem dormir, a ler [...] Assim cansou o cérebro de tal maneira que podiam tomá-lo por tolo.»
Cervantes, Dom Quixote
Estou aqui para vos falar de leitura. No entanto e uma vez que leitura é uma palavra de significado amplo e variado no uso que dela se faz, quero começar por esclarecer em que sentido vos vou falar de leitura e que recorte estou eu a fazer na amplitude e variedade do seu significado, quando vos falo de leitura.
Então...
... falo-vos de ler como algo que faça parte da consistência da vida de alguém. Falo-vos, também, de ler como ler literatura: contos, poemas, romances, novelas, etc. Em qualquer idade. E existem leitores consistentes, ou seja, aqueles para quem a leitura é uma necessidade vital, em várias idades. Existe literatura, ou seja, o texto que é fruto da criação do imaginário de um autor, para todas as idades.
Escolho este sentido e este recorte, porque considero que é, nesta aceção de ato consistente de ler o literário, que a leitura atinge a qualidade de factor fundamental de humanização, de reconhecimento próprio e íntimo e de crescimento cultural.
Quando falo de leitura é, pois, este o tema, que tenho em vista.
Sobre este tema, muito tenho pensado e refletido, quer sobre a minha própria experiência e a memória que dela tenho, quer sobre os discursos vigentes maioritariamente acolhidos ou qualitativamente chancelados por figuras de autoridade nesta matéria. E alguma coisa tenho lido também. Fruto de tudo isto, têm-me nascido algumas ideias. Nem todas pacificadoras ou imediatamente entusiasmantes. Algumas que me perturbam, até, mas que, achando-as legítimas, penso que devo partilhar. Por isso, a partir dessas minhas ideias, construí este texto que aqui vos estou a ler, um pouco temerariamente confesso.
Então...
Fernando Pessoa, num poema intitulado LIBERDADE, diz que «ler é maçada». Fico perplexa? E, na minha perplexidade, exclamo qualquer coisa como isto: — Ah! — Não é possível! — Não é possível que Pessoa tenha escrito isto... Então, mas afinal... ?
Não, não penso que seja esta, a minha reação.
É que nem por um momento duvido do currículo de leitor de Pessoa e da importância que teve a leitura para que ele tenha sido quem foi. E nem por um momento penso que Fernando Pessoa foi quem foi por obrigação entediante.
Não foi.
E é, precisamente por isso, porque foi tão genial a ler como a escrever, que pôde, sem má consciência, proclamar, num poema tão exultante como um hino à liberdade, a maçada de ler. Pessoa sabia ver com extrema lucidez a pluralidade de contrários que uma só coisa em si encerra.
A afirmação de Pessoa «ler é maçada», ao confundir-nos por um instante pouco atento, logo ilumina, certeira, o cerne da questão que até aqui me traz e a pergunta importante que me suscita é esta:
— Como chegarmos, e fazermos outros chegarem, a este plano, a este estatuto de leitor, tão livre, tão seguro de si e tão natural, que nos permita, sem medos nem preconceitos, fazer da leitura a metáfora do que é maçador, num poema em que se canta uma liberdade tão radical?
— Como chegarmos aí, a esse estatuto de leitor, nós os que lemos, e levarmos connosco outros, outros que não leem, outros para quem ler ainda não seria outra coisa senão maçada? Ou seja: como mostrar a leitura como um bem tão seguro e tão natural, um gosto tão necessário, uma coisa tão impossível de não ser nossa, que até nos podemos dar ao luxo de a associar à ideia de maçada? E, sobretudo, como enraizar a leitura em camadas profundas da nossa maneira de ser e estar, como coisa tão necessária, segura e natural, que não se perca, apesar dos contextos que teimam em fazer com que a percebamos como uma maçada?
Estou convicta de que só encontraremos respostas satisfatórias, ainda que incompletas, para estas perguntas, se formos sempre refletindo muito atentamente sobre a forma como nos empenhamos em atingir estes desígnios.
Certamente que todos que aqui estamos — professores, bibliotecários, pessoas leitoras enfim — queremos fazer amadurecer em nós e nos outros — sobretudo nas crianças e nos jovens com quem, neste âmbito, deliberadamente interagimos — um gosto da leitura que seja perdurável, uma vontade de ler que fique connosco, que não se restrinja a ser, nas nossas vidas, um episódio ou uma fase. E assim o fazemos, mas...
Talvez valha a pena darmos alguma atenção a um mas, a alguns mas, que aqui vou interpor como matéria para reflexão.
Já sabemos que tudo em nós começa na infância e, bem assim, a nossa educação de leitores. Sabemos, também, que numerosas atividades educativas das crianças leitoras têm vindo a ser desenvolvidas. Fruto da minha experiência e do que vou testemunhando, não tenho dúvida de que é intensa a vitalidade do envolvimento das crianças nesse tipo de atividades.
Mas...
Sendo intensa, essa vitalidade, será, em muitos casos, perdurável?
Para tentar responder a esta questão, de ter ou não ter consequências perduráveis, essa crescente pujança da leitura na educação infantil, talvez valha a pena refletir um pouco sobre o que seja educação:
A educação (em todas as áreas e na área da leitura também) é um processo que se desenvolve por etapas de sucessivas aprendizagens. Para que não seja efémera mas efetiva, a educação vai sendo sempre um processo de resultado em parte diferido, de resultado não cabalmente imediato; em cada momento, deixa sempre em aberto algo de ainda não-aprendido que aponta para o futuro. É isto que a torna perdurável. Não será perdurável, se uma autossatisfação cabal encerrar cada etapa da sua prossecução, como acabada em si mesma sem fermento de futuro. Para ser perdurável, há de deixar em aberto uma margem de insatisfação. Em educação, a sensação-experimentação-memória de que sobrou alguma coisa de que ainda não sou capaz é preciosa para o meu desenvolvimento futuro. Esta sensação de dificuldade não significa rejeição, mas promessa e desafio. Assim, também, no que diz respeito à educação do leitor.
Ou seja, em palavras mais simples e diretas: — se, cheios de boas intenções de obtermos sucesso imediato, fizermos com que a leitura seja, perante as crianças que queremos educar como leitores, apenas aquilo de que elas imediatamente gostam, aquilo que se integra, sem diferença nem atrito, no seu natural mundo sensitivo de criança, teremos o sucesso imediato garantido. Elas vão gostar. Elas vão querer.
Mas...
Serão, esse gosto, essa vontade, perduráveis?
Eu sei que, com estas implicativas dúvidas, em tudo pareço ir contra a estimulante corrente das múltiplas atividades de educação de leitores infantis, em vigor e em voga. Mas não. Espero não aparentar que estou contra a ideia de que a cultura do apego à leitura deve começar na infância. Que, aí, se deve apostar e muito. Não, de modo nenhum. A minha intenção não é essa, mas a de ir contra o que me parecem ser alguns equívocos. Uma vez que, como disse atrás e todos sabemos, é na infância que tudo começa e a leitura também, o que verdadeiramente me preocupa é que comece bem para que continue bem.
Preocupa-me, por exemplo, verificar a existência de casos, talvez muitos casos, em que infâncias aparentemente conquistadas para a leitura dão em adolescências de abandono brusco ou progressivo e em juventudes que desembocam na aridez de vidas adultas que não leem nem um livro por ano. Entristece-me verificar, durante encontros que tenho tido com jovens, em escolas, a complacência, a aceitação de braços caídos de inevitabilidade, perante a realidade de muitos e muitos, quase todos, desses que foram crianças leitoras muito animadas senão entusiasmadas com a leitura, se revelarem quase fisiologicamente incapazes de ler... Os Maias. E tento articular entre si estas duas realidades exemplificativas: gostar de ler em criança e ser, em jovem, incapaz de ler Os Maias. E saltam-me algumas perguntas a que procuro responder: — Que gostar era esse? — Que incapacidade é esta?
Sou, então, tentada a encontrar respostas como estas: Ler foi para eles apenas uma coisa da infância. Naturalmente, crescer foi, neles, deixar para trás as coisas da infância, entre as quais, esses livros, lindos, em que quase tudo era desenho, objetos nostálgicos de que se lembram com um sorriso, como doutros brinquedos que tiveram, e que, para eles, nada têm a ver com a vontade, a curiosidade, que poderiam ter, de ler um livro como... Os Maias. E que leitores triunfantes muitos deles foram na infância! Os triunfos imediatos esgotam-se em si mesmos e tornam-se, talvez, mais coisa de registos estatísticos do que de ganhos humanísticos.
Conheço muitos casos destes. Fui e vou conhecendo. Pessoas que, na infância leram os seus livrinhos, mas, agora, não têm tempo, não têm dinheiro, não têm oportunidade. O que têm é muitas desculpas. Desculpas para não ler, para ler muito pouco, quase nada, para estarem desatentas dos livros, para só lerem livros breves, leves, muito iguais a si e à sua vida, muito escritos a correr, e, o pior de tudo, para não terem vontade de ler, não sentirem necessidade de ler, não sentirem a falta da leitura quando não leem, para enfim, não poderem falar, como Pessoa, dessa fantástica «maçada» que é estar e simultaneamente não estar quieto com um livro entre mãos e sob o olhar. Muitas delas, são pessoas para quem a leitura ficou cristalizada na bela prateleira dos livros de infância. Ficou aí fechada. Como a arca nostálgica onde guardaram os brinquedos.
Mas, de facto, a leitura, não sendo maçada, também não é um brinquedo.
Ser leitor em criança é muito bom, ter livros por perto em criança é muito bom, mas tem de ser uma coisa que se enraíze e produza sementes de futuro.
Penso nisto, procuro razões e atrevo-me a perguntar: — Será que isto acontece porque, um dia, quando eram crianças, no intuito bem intencionado de se corresponder à cabal satisfação do seu desejo infantil, a leitura lhes foi apresentada demasiado como um brinquedo, como um jogo? E, por isso, não chegaram a experimentar a razão daquela poética coerência de Pessoa, ao atirar a leitura como metáfora contra uma certa ideia radical, e até um pouco caótica, de liberdade? Não chegaram a experimentar suficientemente isso a que a metaforização pessoana chamou maçada? Que maçada era, essa, que não experimentaram e que talvez fosse, afinal, o verdadeiro domínio do truque necessário, a face sonegada da magia? Não foi suficiente que tivessem assistido aos passes da magia da leitura que outros tão bem para eles prepararam; teria sido necessário que tivessem tido a repetida maçada de, uma e outra vez, tentarem eles próprios fazer o truque, mesmo que — ainda atrapalhados, ainda pouco destros — a coisa não corresse na perfeição...
Penso que a montagem de um cenário excessivamente lúdico, intencionalmente facilitador da adesão à leitura, pode correr o risco de encobrir a descoberta desse outro prazer nem sempre fácil, o do contacto pessoal com a autenticidade de um livro.
Outras formas de facilitação da leitura na infância poderão ser também causa do problema que estou a considerar: a escolha da excessiva simplificação do próprio livro... a restrição do seu vocabulário àquele que é garantidamente já conhecido das crianças... a retirada total da frase longa cujos meandros exigiriam percursos de atenção mais complicados... a negação de lugar, na intriga, a mais uma ou outra personagem que viria complicar o acompanhamento da história... a invenção de um caminho excessivamente curto para o desenlace... ou até de desenlace nenhum, em prol da opção por um contínuo enfileiramento de situações engraçadas e coloridas... Em suma, a opção por um esforço de simplificação excessiva na composição de histórias infantis.
Todos sabemos que, com as crianças, esta coisa da leitura, pura e dura, pode não ser fácil, pode nem sempre correr bem. Todos estamos conscientes de que não há, no contexto nem no histórico da vida portuguesa, grandes factores propiciatórios da leitura. A consciência destas realidades pode levar-nos a desistir de, improdutivamente, tentar ainda forçar esse contexto e esses factores, passando, pelo contrário, a adaptar-nos a eles, passando a fazer algumas cedências. Somos sensíveis à agressividade da competição com tantos outros objetos de desejo por parte das crianças; somos tentados a entrar em competição com tantos focos de entretenimento que por aí andam e, até, a inseri-los no seio de atividades de leitura.
Mas a verdade é que ler é uma coisa muito diferente de assistir à projeção de um vídeo, de jogar um jogo de computador, de manipular outros objetos de entretenimento semelhantes, reais ou virtuais. E, sobretudo, a leitura não é puro entretenimento. A leitura precisa mais de nós, pede-nos mais. Tem, a mais, esse tal quid da «maçada» pessoana de precisar profundamente de nós. Não apenas para saber distinguir os botões em que carregar e, depois, manter os olhos abertos e os ouvidos focados. Ceder a estas realidades contextuais poderá levar a muitas batalhas ganhas, na infância, mas sou muito levada a pensar que, em muitos casos, essas vitórias darão numa futura guerra perdida, no que à leitura de clássicos fundamentais da literatura universal diz respeito.
A boa intenção de evitar às crianças a experiência da tal maçada, as bem intencionadas estratégias motivadoras, determinadas pela antecipação de um temido fracasso, o receio de que um livro menos facilmente acessível ou, só por si, fisicamente modesto, composto quase só de letras negras sobre o branco do papel, seja liminarmente rejeitado, pode levar ao uso excessivo da ornamentação da leitura com coisas mais vistosas, mais agitadas, mais coloridas: coisas cénicas, audiovisuais, gestuais, lúdicas, muito originais como ir para a biblioteca de pijama dormir com os livros, fazer livros com cheiro, fazer livros sem palavras, livros com feitios estranhos, com aspetos exóticos, que sei eu... E, quando se trata de idades mais avançadas já com outras necessidades, desejos e angústias, esse mesmo tipo de estratégia pode levar a estranhas sloganizações prometendo que a leitura é a cura para todos os males...
Parece-me haver um excessivo e, por vezes, pouco ponderado proselitismo, no afã atual de divulgar e propagandear a leitura. Eu não digo que se desista do desígnio fundamental de incrementar a leitura. Eu não digo que não se possa relacionar a leitura com a fruição de outras artes. O que eu temo é que, neste pedido de socorro a outras artes (e muitas vezes não são artes), para chamar a atenção para a leitura, haja uma excessiva tendência para esbater o que de facto é ler e uma certa perda de critério de exigência de qualidade e de sentido de responsabilidade para com o futuro dos pequenos leitores que nos empenhamos em motivar.
Por vezes, (muitas vezes?) olha-se um livro, que poderíamos ir ler a ou com crianças, e interiorizam-se ou exteriorizam-se apreciações como: tão grande, tão volumoso, sem figuras, com tantas palavras, sem cores... E, daí, procuram-se sucedâneos, companhias, que o tornem ligeiro, colorido, agitado como achamos que as crianças gostam...
Mas...
Será que nunca ninguém leu uma história lindíssima num livro que não devia lá muito à formosura? Eu, já.
Desculpem, mas tenho de perguntar, ainda que a pergunta seja tão-só retórica: — Alguém se lembra de opinar sobre um filme, a partir do aspeto da película ou do disco, de reagir ao aspeto da película ou do disco como se isso fosse reagir ao filme? Isso seria tolice tão evidente que nem mereceria ser dita. Só o digo por causa doutra hipotética tolice: a de reagir ao aspeto físico do livro como se fosse a história que lá está dentro e, daí, tratar de enfeitar, de ornamentar, de substituir o aspeto pressupostamente desanimador de um livro. Ou de o rejeitar: ou porque é volumoso ou porque é graficamente denso ou porque não tem muitos espaços brancos separadores dos diálogos e dos parágrafos ou porque não tem cor, ou não tem ilustrações.
Isto resulta, talvez, da interiorização, ainda que pouco consciente, da falsa ideia de que o livro (físico) é a história. É e não é. A película/o disco é e não é o filme. O livro é e não é a história.
Quando a Alice foi atrás do coelho aquilo ainda não era o país das maravilhas; aquilo era só um buraco na terra sem graça nenhuma. Ninguém o tinha pintado de muitas cores nem polido com muito brilho para atrair a Alice. Ninguém fizera dele um irresistível motivo de atração. Ninguém? E deixamos de fora o imaginário de Alice? O imaginário de uma criança que viu um coelho tirar um relógio do bolso e o ouviu falar. As crianças, — as crianças? pensando melhor, as pessoas em geral — parece-me, andam é a ser demasiado convencidas a só valorizarem o gosto do que é, exterior e imediatamente, colorido, movimentado, sonoro, sensorialmente agitado e feitas esquecer de que têm mundos por dentro de si, por dentro das suas cabeças.
Somos nós, os leitores, somos nós com o nosso imaginário que transformamos os livros em histórias. Ao deixar-me escorregar, ao deixar-me cair pelas palavras de um livro acima ou abaixo, simultaneamente eu experimento acionar um mundo paralelo. Sou eu o “projecionista” daquela fita contínua de palavras e simultaneamente o seu espectador e, até, participante, pois nelas me projeto. E com uma liberdade insuperável de fazer avançar, recuar, acelerar, demorar, parar, contemplar, intervalar, adormecer e acordar; e em plena luz para escrever ou desenhar o que me passar pela cabeça, sem precisar de óculos especiais para o 3D, 4D, ou os DD todos que quiserem, porque todas as dimensões tenho-as eu, até as que não tenho, mas ganho, ao projetar-me numa nova ou de uma nova história contada num livro. Valorizamos muito o livro, achamos que, nesta história da leitura, o livro é a personagem mais importante — e, sim, está muito bem, os livros são parte fundamental desta história — mas é muito importante também, é, acima de tudo, importante, valorizar o leitor, fazer com que cada um aprenda a ser leitor, ou seja, esse tal “projecionista”.
Para que a leitura seja, nelas, uma coisa perdurável, têm de ter sido elas, as crianças, a experimentarem, tem de ter sido cada uma delas, com o seu imaginário, a detentora desse livre poder de transformar as letras sobre papel — não esquecer nunca as letras sobre papel — em gente, em cenas, em sonhos, em gargalhadas, em sustos, em histórias, em perguntas, em coisas que nem souberam bem nomear, mas cuja descoberta deixou inscrição profunda. Mais do que inventar essa plétora de estratégias motivadoras, temos de insistir em fazer essa coisa simples e complicada, que tantas vezes também fazemos, que é ler. Ler com eles livros escolhidos com um critério de que não esteja ausente a ideia de que estamos a semear para o futuro. Ler com eles e, pressentindo o momento certo, passarem a serem eles a ler connosco, passarem a serem eles a ler sozinhos. Acompanhá-los de perto e conhecê-los como leitores ou como futuros leitores e dar-lhes o momento de se tornarem leitores.
Isto, que é ler, tem de ser, num dado momento, uma descoberta pessoal e solitária, um encontro íntimo entre alguém e as palavras de um livro, sem mediações e interposições. Este prazer de ler tem que ser descoberto como um prazer solitário, que se multiplica na posterior partilha, sim, mas que para que fique verdadeiramente entranhado, tem de resultar de ser eu a transformar um livro em história. Tenho de aprender, eu, a projetar-me nas palavras e das palavras, fabricando coisas com o meu imaginário a partir das palavras que aprendi a descodificar.
Ler é muita coisa e resulta de muitas capacidades e competências, sabemos, mas ler é, sobretudo, um ato de imaginação, um ponto de encontro entre aquilo que um livro permite à minha imaginação e aquilo que a minha imaginação permite a um livro.
Um livro começa por ser história no imaginário do seu autor, depois é só papel pintado com tinta numa livraria, numa biblioteca, e eu, leitora, eu com o meu imaginário faço-o de novo ser história nem sempre totalmente coincidente com a do autor, diga-se, e é essa a minha eufórica façanha. Não posso apenas ficar sentada no lugar que me deram a assistir ao que outros com os seus imaginários projetaram do livro para me servir, para me aliciar. Há um momento fundamental em que tenho de ser eu a sós com aqueles bichinhos sobre o branco do papel como o Tarzan chamou às letras quando as viu pela primeira vez.
Peço desculpa, mas não resisto a que todos leiamos ou releiamos, aqui, um pequeníssimo extrato do 1º vol. dos livros de Edgar Rice Burroughs, respeitante ao primeiríssimo encontro entre Tarzan e um Livro, porque, para mim, este textinho é uma lição:
«Inicialmente tentou tirar das páginas as pequenas figuras, mas logo compreendeu que não eram reais, embora não soubesse o que poderiam ser e não tivesse palavras para descrevê-las. Os barcos, comboios, vacas e cavalos, não tinham qualquer significado para ele, mas todavia não lhe pareceram tão intrigantes como as estranhas figurinhas que apareciam abaixo e entre os desenhos coloridos - deviam ser insetos, talvez, porque muitos tinham pernas, mas não encontrou um só que tivesse olhos e boca. Era o seu primeiro contacto com o alfabeto e tinha mais de dez anos. Evidentemente que nunca vira, antes, caracteres impressos, nem falara com qualquer criatura viva que tivesse a menor ideia sobre a existência de linguagem escrita. Não sabia que fosse possível ler. Por isso não admirava que não pudesse fazer qualquer ideia sobre o significado daquelas estranhas figuras. A cerca do meio do livro, descobriu a sua velha inimiga, Sabor, a leoa, e mais adiante viu Histah, a serpente. Aquilo era maravilhoso e absorvente! Nunca antes, nos seus dez anos de vida, encontrara uma coisa que lhe desse tanto prazer. E tão absorvido estava que não notou a aproximação da noite senão quando a escuridão já não lhe permitia ver. Pôs o livro no armário onde o encontrara e fechou-o, porque não queria que outro encontrasse e destruísse o seu tesouro.»
Edgar Rice Burroughs, Tarzan dos Macacos, vol I
Receio que haja quem pense que esta narrativa da descoberta da leitura por um Tarzan de dez anos é pura fantasia. Que isto não é senão ficção. A história é fictícia, sim. Porém, a emoção é verdadeira. Haverá quem pense, que não é de fantasias, mas de estudos científicos e técnicos, que se deve tirar lições. Será assim, será, mas quanto a isso sou um caso perdido. Aprendo imenso com a arte literária. Não é que não aprenda também com esses estudos, mas sei que, muitas vezes, a literatura vai beber a fontes mais profundas e mais perduráveis que as do conhecimento científico.
Pois... o textinho de Edgar Rice Burroughs acompanha-me na convicção de que ler é cá uma coisa entre mim e as palavras e que, como lá diz, o mais intrigante de tudo eram aqueles desenhinhos, ou seja, as palavras. Penso que o que temos de valorizar num livro são precisamente as palavras e resistir à ideia de as disfarçar por trás de biombos que pensamos mais atrativos.
Tem de ser, a criança, insisto, a projecionista daquele escuro desenrolar das letras pretas sobre o papel branco que é o livro. Porque isto, por mais que invoquemos coisas paralelas e complementares e lhes chamemos livros e lhes chamemos ler, isto de papel e letras — ou de letras num ecrã, se quiserem, mas isso seria todo um outro debate — é que é o essencial de um livro. Se assim não for, que ninguém espere que um dia ela não olhe Os Maias como uma grande maçada, e não metafórica, que quer evitar.
A descoberta da leitura, às vezes, fazêmo-la mais sozinhos; outras vezes, dá-se em momentos como que de interação entre um mestre e um aprendiz, momentos de oficina.
De facto, aprende-se a ler, educam-se leitores. E nesse sentido que, de início, defini. Como coisa consistente e como coisa literária. Há mestres e aprendizes da leitura. É possível abrir a nossa leitura como quem abre a porta de uma oficina. É possível ir para o pé de quem lê como quem vai para a beira de um mestre-artesão vê-lo nas tarefas das suas artes: vê-lo/ouvi-lo a ler; conversar com ele sobre o que lê; interrompê-lo; pedir para também deixar fazer; pedir para nos dar um bocadinho do que está a fazer; ouvi-lo a ler em voz alta; recontar; ler aos bocados; folhear; entrar em rodas de leitura; responder a perguntas; fazer perguntas; deixar as crianças sozinhas com um livro, estando por perto, para que ela nos diga, ou não diga, o que quiser. Coisas simples. As crianças gostam de estar ao pé de quem está a fazer coisas, de imitar, de pegar nos utensílios, de fazer — mesmo sendo ainda incapazes — o que um dia farão sendo capazes. Assim, poderá ser com a leitura. Gosto da expressão: Oficinas de Leitura. Da expressão e da sua prática.
Não duvido, e digo-o outra vez, de que, há uns tempos a esta parte, estamos, cada vez mais, a fazer as crianças gostarem dos livros, falarem sobre os livros, aderirem e participarem com gosto e imaginação nos mundos que as histórias que estão nos livros lhes abrem. As iniciativas, as práticas, de promoção da leitura junto das crianças multiplicam-se. Mas, volto a perguntar (e esta insistência é certamente sinal de preocupação) será que estamos a conseguir ir a camadas mais fundas do que as do prazer temporário que as crianças tiram dessa panóplia de sessões? Será que a bem intencionada preocupação de associarmos à leitura aquilo que de imediato agrada às crianças, não provoca, nelas, uma espécie de erro de perceção, não desfigura o que verdadeiramente é ler? Será que o gosto que nelas se inscreve e cria memória é verdadeiramente o do encontro íntimo e solitário com letras estampadas num livro ou iluminadas num ecrã, que nos pedem atenção e imaginação? Será que, bem intencionadamente e em prol de objetivos indiscutíveis, não estaremos a chegar ao excesso de desfigurar a leitura aos olhos de crianças que, mais tarde, perante a densidade e austeridade do preto e branco das letras em páginas e páginas parecem nem saber nem sonhar do gosto de, a partir delas, projetarem histórias, curiosidades, aventuras, loucuras, devaneios, surpresas, espantos, perplexidades, aflições, angústias, risos, sei lá... Será que estamos a exceder, em inventiva motivadora, o que a leitura, pela sua natureza de coisa tecnicamente pouco vistosa, permite e, assim, de certo modo, a contrafazê-la? Será que era de fazermos o esforço de nos aproximarmos, ainda mais, da experiência do confronto da criança com a simplicidade, a modéstia, das letras de um livro, ao longo das suas páginas? Será que não estamos a evitar ouvir, a procurar defender-nos de, em algum momento, ouvir: — Que maçada! Ou o equivalente mais natural : — Que chatice! — Que seca! com que teremos de saber lidar?
Será que nos é difícil colocarmo-nos, nós, como prova, em espécie e em leitor presente, de que sabemos fazer o tal truque de soltar a nossa imaginação e a deixarmos impulsionar as palavras de um livro? De que é esse o truque, o da imaginação, que magicamente transforma a tal maçada de LER numa outra espécie de liberdade, no poder de, pelas palavras, estarmos noutros mundos? Sermos nós a prova e, ao sê-lo, fazermos nascer em outros a vontade de experimentar, de também serem... leitores? E será que, porque fazer isto nos é difícil, optamos pelo recurso a coisas substitutivas, visuais, plásticas, musicais, gestuais, lúdicas, que de imediato agradam às crianças?
Abrir, aos outros, às crianças, a nossa relação íntima com as palavras, abrir-lhes o que vemos, o que ouvimos, o que sentimos, enfim, o que vamos fabricando enquanto lemos, pode aparecer-lhes como uma coisa intrigante, cheia de suspense, instigadora da sua curiosidade, altamente motivadora.
De facto, sobre a motivação para a leitura — e pensando, agora, mais em leitores adultos e jovens — tenho pensamentos simples. Tão simples, que poderão suscitar um sorriso de complacência suspeitosa. Penso coisas como: ler é ler. (ponto) E outra: demonstrar a valia da leitura é mostrar a leitura. Com autenticidade. Talvez esta minha defesa da simplicidade seja espicaçada pelo testemunho de uma deriva sloganizadora das mil e uma maravilhas de ler, que me parece correr o risco de perder o pé relativamente àquilo de que falamos quando falamos de leitura. A minha experiência de leitora ao longo da vida, a minha história de leitora, a minha constante reflexão sobre o que é ler, dizem-me que a leitura não é, nem precisa de ser, nem pode ser, essa panaceia para todos os males que, tantas vezes, vejo e ouço apregoar. É muito mais do que panaceia, do que uma coisa terapêutica. Atua numa outra dimensão, a dimensão existencial.
Temos de dizer e mostrar aos jovens que a nossa existência é muito pobre sem a dimensão do imaginário e sem a interpenetração entre real e imaginário; que a leitura ativa em nós e multiplica a sede de imaginário; que ler literatura é ter a experiência da arte literária, de que precisamos para fruirmos a vida nas mais elevadas e fascinantes dimensões do humano. «A arte é um antidestino.» — disse André Malraux — naquele sentido em que nos interrompe o determinismo das rotinas e nos abre horizontes que nos fazem ver. O tempo das nossas vidas em que estamos a ler as grandes obras literárias não se encaixa na mera categoria de divertimento, distração, lazer. E isto distingue a leitura de outras ocupações de tempos livres que, por vezes, por inércia, colocamos ou deixamos que coloquem no mesmo plano. Temos de dizer e mostrar aos jovens que nenhum desses objetos de distração maioritariamente audiovisuais que, por aí, constantemente atuam sobre o nosso imaginário, nos garantem tanto a liberdade de sermos e de nos imaginarmos como a leitura.
Temos de o dizer e de o mostrar, de o demonstrar, aos jovens que não leem. Não basta colocar-lhes um livro na mão com o qual não sabem o que fazer. Não basta. É preciso dizer-lhes e mostrar-lhes que dentro daquele livro há um segredo, ou vários segredos, e dar-lhes as dicas que encaminhem a sua imaginação para o roteiro de descoberta desses segredos. A ler, ensina-se, e ensinar a ler não é só ensinar a juntar as letras como se dizia dantes. Ensina-se a ler um dado livro. Para o fazermos, precisamos de ser leitores desse livro e de muitos outros. Ser leitor é uma responsabilidade; ser leitor e simultaneamente professor ou bibliotecário, ou as duas coisas, enfim gente dos livros, é a responsabilidade de, perante jovens que não leem, não facilitarmos em termos de qualidade, de atenção, de reflexão. Sabemos que, em muitos casos, a leitura feliz de um dado livro que nós achamos essencial não acontece de imediato, como um milagre, mas não podemos guardar só para nós a experiência que tivemos a ler esse livro. Temos de a abrir, de a mostrar, de abrir a porta da nossa oficina de leitores, maçadas incluídas; de fazer com que — através de toda a curiosidade e de todo o poder de interpelação de que forem capazes ou de que nós formos capazes de lhes despertar — se intrometam e se apropriem da arte de transformar esse quantum da metafórica «maçada» pessoana num prazer tão idêntico a essoutro de «não cumprir um dever» a que Pessoa, no seu poema, chamou LIBERDADE.
Num desses dias da sua infância, quando a criança lia em voz alta uma tradicional história de fadas, pronunciou a frase: — E a bruxa estourou como uma castanha! A criança, sabendo-aprendendo a reconhecer a leitura como surpresa-espanto, interrompeu-se e perguntou: — E queimou a princesa? Leu mais um pouco e soube-aprendeu que não; que, nessas histórias, a palavra princesa é, geralmente, um índice-garantia de sucesso.
Nesta cena de leitura, uma criança está a aprender a ler, naquele sentido de dominar o fluxo textual em proveito próprio. Talvez esteja a ler sozinha e talvez seja a primeira vez na sua vida de leitora que depara com o estourar de uma bruxa na presença de uma princesa. Talvez histórias de bruxas e princesas tenha já lido muitas, mas este é o momento de enfrentar a novidade, a estranheza. E fá-lo reflexivamente e com repercussão no progresso da leitura, movida pela curiosidade.
Assim se lê e, assim, lendo, a criança está a aprender a ler: cria e guarda um dispositivo de domínio da durabilidade sequencial do texto, que lhe assegurará atenção/proficiência/maior domínio/maior satisfação, em outras leituras que hão de vir, mais densas e complexas: articula o alarme da surpresa («estourou como uma castanha») com a procura, ou não, de pacificação (a princesa não se queimou?) e aprende a garantia de imunidade de certos elementos, em certo tipo de histórias (as princesas têm de se manter belas e vivas para serem felizes no final).
Em outras cenas de leitura, a criança estará já mais apta a moderar o impacto de uma passagem com a espera do seu desenlace mais à frente, sabedora que vai ficando de que ler não é uma soma de momentos, mas um tecido de harmonização de tons, espessuras, desenhos. A criança aprende a não esgotar a leitura em cada momento do livro; a moderar reações mais cabalmente apropriadas a outros momentos, futuros; a gerir intelectual e emocionalmente a leitura. Esta aprendizagem é fundamental para a sua capacidade de, à medida que cresce, ir sabendo ler histórias e linguagens cada vez mais complexas.
Para que assim seja, é necessário que essa aprendizagem seja garantida pela presença, na cena de leitura, de elementos fundamentais:
— a construção sábia da trama da história posta em livro;
— a disponibilidade/atenção/concentração do leitor.
Nem todas as histórias nem todos os livros permitem ao leitor esta atitude.
Livros, em que as palavras correm como um rio manso sem obstáculos, ou jazem como águas de um lago, deixam, talvez, a criança parada, dominada pela fruição da beleza como que de uma paisagem, mas não a preparam para os movimentos mentais-emocionais de futuro leitor de grandes e complexas histórias, em livros com os quais só temos duas hipóteses: ou os dominamos e é a exaltação; ou eles nos dominam e é o abatimento, o cansaço, a desistência.
Se nos limitarmos à idade da infância sem perspetiva de desenvolvimento, pode, até, esta disjunção não ser muito notável, dado o carácter genericamente simples dos livros infantis e as características ainda pouco estruturadas dos leitores. Mas, se olharmos a infância como raiz do futuro, teremos consciência de que a disjunção infantil entre desistência e exaltação poderá vir a desenvolver-se segundo uma linha de inversa proporcionalidade. Ou seja: se uma criança larga, antes de o acabar, o livro que lhe pede mais atenção/reflexão, não deixou, no entanto, mesmo se pela negativa, de ganhar experiência de ler, útil para uso futuro; se outra criança abarca a totalidade de um livro que só lhe pede a paragem do encantamento, não ganhou experiência para leituras futuras que lhe exigirão muito mais movimentação mental e emocional. Uma desistiu; a outra leu tudo. E, não obstante, a que desistiu tem mais futuro como leitora do que a que globalmente absorveu o livro como quem engole de uma vez uma saborosa gulodice.
Como se resolve este paradoxo?
Garantindo os tais elementos na cena de leitura: ambiente de disponibilidade/atenção/concentração e, sobretudo, livros mais complexos do que aqueles cuja história, no momento em que floresce logo se acaba como um balão efémero ou lucilante fogo de artifício. Cabe ao adulto leitor trabalhar na composição de cenas de leitura propiciatórias.
Como é evidente, a realidade material de grande parte dos livros para a infância que aqui considerei negativa tem causas. Tem causas e aproveitamentos que derivam da opção pela facilidade. São muito apetecíveis, senão irresistíveis, para o olhar, esses livros. E, se vivemos em tudo genericamente sob o privilégio concedido ao olhar, o livro não deixa também de ser afetado por essa predominância visual aproveitando-se dela como um atalho capaz de abreviar o seu caminho até às mãos de um possível leitor. Neste caso, consideramos o leitor que é uma criança. Não será sempre uma criança, mas de momento é-o. O que se espera, aliás, é que naturalmente o deixe de ser. Já leitor, não. Não se deseja que deixe de ser leitor, quando deixar de ser criança. Mas os amigos dos atalhos e da rapidez desacautelada, esquecem, na criança o caminho para o jovem e o adulto e apressam-se no afã de facilitar a adesão ao livro sem deixar raiz para estádios futuros. Partindo da vista de olhos que lançam aos universos de desejo das crianças, em voga, pressupõem — sem muita ponderação nem aprofundamento, sem pacientar ritmos de adesão que poderão ser mais lentos mas mais frutíferos — que a relação imediata e a facilitação é um valor. Ou, em palavras mais simples: se querem isto, damos-lhes isto, sem um momento de análise do que é o querer de uma criança e no esquecimento do que deve ser a responsável transcendência temporal e experiencial de um adulto. Pressupõe-se que o melhor para a criança é aquilo que, disparado à sua sensitividade sem o amparo da reflexão, a atrai, a fascina. Daí, o deixar-se no esquecimento a experimentação de outros caminhos. E acerca desses outros caminhos mais lentos e maturados, ouve-se, por vezes, dizer: «Coisas do passado.» Mas nem sempre as coisas se tornam passadas por metamorfose ou evolução; neste caso, o passadismo das coisas é impositivamente construído por uma espécie de ganância do novo.
Falemos, então, um pouco, de passado.
Se, há sessenta anos, me tivessem posto à frente um livrinho em feitio de boneca que, em todas as cores, fosse abrindo, página a página, as suas roupagens de princesa, eu desenfrearia na sua direção de olhar preso aos chapelinhos, aos toucados, aos sapatinhos de cristal, cega para as duas dúzias de palavras por ali semeadas. Por algum tempo o brilho fátuo do cor de rosa vivo dos folhos do aventalinho e o opalino das pérolas entrelaçadas no ouro dos cabelos, haveriam de me ofuscar. Quem sabe, até, se, deixada à minha sorte de criança, eu não esqueceria... Quem sabe se eu não esqueceria o encantado ritmo das palavras «Não vi velha nem velhinha nem velhão/ Corre, corre cabacinha, corre, corre cabação», ecoando no desenho expressivo a preto e branco de uma grande cabaça (dentro da qual eu ‘via’ a espertalhona de uma velha) a rebolar caminho afora, deixando para trás o focinho agudo do lobo, voraz mas estúpido. Quem sabe se eu não votaria ao esquecimento as histórias impressas nas correntes de palavras, naquele grosso livro artesanal em que o meu pai cosera, com um cordel, os vários livros fininhos das histórias que nos comprara...
E, então, o presente, o presente dos índices de adesão e rejeição infantil, teria sido ontem sem dialética temporal.
As escolhas de livros fáceis que, muitas vezes, são feitas para a leitura infantil, não são consequência da dialética histórica. Trata-se, sim, de dialética preferencial em prol da aceleração da aquisição, do forçar do contacto, da alimentação do movimento. Trata-se de concentrar, de amalgamar os elementos que garantem um mais rápido efeito de atração, mesmo que aconteça — e muitas vezes acontece — que esse efeito se esgote em si mesmo e não entesoure nenhuma descoberta. O que não é bom. Não é bom que seja tudo tão liso; não é bom que, nas cenas de leitura, não existam os degraus de uma escada-descoberta, em que, quando se tropeça, se cai num mundo imaginário por virtude das palavras. E se fique a gostar desses tropeços tão compensadores!
Espantosa, é, muitas vezes, a desproporção quase-ridícula entre o cúmulo de energia investida nos aspetos plásticos e visuais do livro e a anemia do texto encaixado na paisagem. Espantosa e prejudicial, porque faz a criança ter uma aprendizagem-memória inicial de que a leitura é aquilo; de que as palavras são o parente pobre na construção da história. Prejudicial, porque contribui para a desaprendizagem do que é a leitura. Prejudicial, porque se torna cúmplice da preguiça intelectual e não cava, na criança, o lugar fértil para as lavras mais complexas das cenas de leitura do jovem e do adulto, em que reinará, em absoluto, a palavra.
Encerra-se a génese do leitor na experiência de uma plétora plástica e visual, numa quase-ausência da palavra e, deste modo, corta-se, interrompe-se, em vez de impulsionar, a sua história de leitor. E os leitores, muitos leitores, são incapazes de saltar sobre esse abismo e ficam para sempre bifrontes a olhar atrás nostalgicamente os livros da infância e de olhos baços, à frente, para o zero, o nada-leitores em que se tornam.
E é, então, que encontro muitos jovens e jovens-adultos em estado de incapacidade de ler um romance longo.
A biblioteca que o Livro veio habitar no outono de mil novecentos e cinquenta e oito ficava numa pequena vila provinciana não muito longe do mar. Arranjaram-lhe um lugar num único e atafulhado armário-estante e lá ficou a sua lombada a ver-se através de uma das vidraças por que se dividia a porta do grande móvel de onde saíam os livros que os leitores requisitavam. Era uma biblioteca benemérita de uma fundação que, naquela vila, encontrara abrigo numa das salas da Câmara Municipal. Em vez de bibliotecário, havia alguém que tinha a chave e acorria à vontade declarada de algum leitor de levar consigo algum dos livros que ali repousavam. Tinha a chave e fazia o registo das saídas e das entradas. Não obstante já ter tido e haver ainda de vir a ter outros formatos, outras letragens, outros espaços de respiração, outras capas, outras línguas, o Livro apresentava-se ali, naquela biblioteca, numa edição de formato vulgar, tamanho médio, sem nenhuma característica especial, legivelmente tipografado no espaço da página que largas margens enquadravam, escrito em língua portuguesa. Vestia-o uma capa de um aguado tom cinzento em que se desenhava um ralo perfil citadino por trás de uma figura esquálida e por baixo de autor e título, este bem mais saliente, em azul. À vista, a impressão que o Livro dava era, de qualquer modo, de um cinzento deslavado nada atrativo para o olhar. Tirando a promessa azul do título, claro!
Aquela biblioteca parecia uma casa de repouso e, nela, de tão quietos, os livros chegavam a ganhar bolor. Certamente também devido à humidade provinda da proximidade do mar. Apesar da diminuta procura, mantinham-se, no entanto, ali, os livros, não fosse alguém, de repente, lembrar-se de sair de casa em busca de uma leitura que lhe trouxesse novidades aos dias silentes da vida na pachorrenta vila. E, um dia, assim aconteceu com aquele Livro.
Já não era outono, o arco do tempo tinha já rodado quase um ano inteiro desde que o Livro ali chegara. O tempo rodara, mas o livro não. Permanecera no mesmo sítio em que o tinham depositado, mas, em breve, a sua espera por um ansiado leitor iria, enfim, terminar.
E assim foi. Nesse verão, alguém, depois das alegrias da praia e do campo, e das conversas e dos passeios, e das festas e lembranças, lembrou-se do armário dos livros que sabia existir na sala da Câmara. Tratava-se de uma rapariga.
A Rapariga olhou a correnteza das lombadas e escolheu aquele Livro. Era um primeiríssimo encontro cego. Nada sabia do título e do autor, nem da coleção, nem do editor. Escolheu-o porque sim. E trouxe-o para casa.
A casa era antiga e estava fresca. Respirava-se bem na casa da avó em que o silêncio poderia escolher o quarto em que se instalar. Era uma casa grande onde harmoniosamente conviviam lugares de silêncio e lugares de algazarra sem se incomodarem mutuamente. A Rapariga escolheu um lugar de silêncio: o quarto onde, nessas férias, dormia. Escolheu uma cómoda posição sobre a cama e pôs-se a ler.
Ao princípio, no decorrer das primeiras frases, um bem-estar profundo ia-lhe acompanhando a leitura dessa história escrita numa linguagem macia a que se ia aconchegando o ouvido interior da leitora.
Animada pela felicidade do começo daquela leitura, a Rapariga continuou a avançar. À medida, porém, que ia conhecendo gente de dentro do Livro, começou progressivamente a levantar-se-lhe da leitura uma atmosfera perturbadora feita de suspeições de intrigas ameaçadoras, de temor quanto à sanidade mental da personagem pela voz da qual tudo era contado... A aguda sensibilidade da leitora estremecia já, como a de quem faz um caminho antecipando a desgraça a cada esquina. A Rapariga era estudante, dava os primeiros passos num curso de História e tinha como tema de sua preferência o da história das instituições. Era estudante e bastante idealista, crente na sua vontade de tornar melhor a vida futura. Quando a leitura a mergulhou na visão profundamente cínica e cética, por parte da personagem narradora, quanto à bondade e à seriedade dos mecanismos supostamente garantísticos da aplicação da justiça, a Rapariga suspendeu um pouco o seu ler, sentindo-se perturbada pela acutilância de uma tal desmistificação. Respirou fundo e continuou. Continuou, mas já sem a sensação de navegar num rio largo e manso que o contacto inicial com o livro lhe dera. Somavam-se, agora, incongruências continuadas que deveriam ocultar alguma causa misteriosa, mas que, a seu desprazer, a enervavam.
Naquele verão sem escola, a tarde era longa, larga, luminosa, a preguiça consentida, e certamente haveria, dentro em pouco, o tempo certo para um qualquer volte-face na história que lhe devolveria a calma leitora: por isso, continuou. O dentro em pouco, porém, começava a demorar excessivamente para o desejo da leitora. Não surgia. Pelo contrário, a voracidade da espiral conducente, talvez, à loucura e ao crime, cada vez mais se lhe enroscava nos nervos. Mudou a sua posição sobre a cama, alteando as pernas até ao limite da cabeceira, o livro comodamente recostado na dobra natural do seu corpo. Continuou a leitura. Na sucessão das páginas pairava sempre a suspeita de fortes angústias futuras. Crimes? Infelicidade profunda? Mas, então, porque haveria nas palavras do título aquele tão notório índice de felicidade? Malhas tecidas pela perversa imaginação do autor? Ou, senão perversa, pelo menos, irónica? Com o dedo entalado a marcar o ponto em que deixara a leitura, pôs-se a olhar de novo a capa... Realmente, vendo mais atentamente, havia ali um contraste ameaçador entre o azul do título e o pó cinzento tintando escorrências pálidas que preenchia toda a capa. Realmente, a figura plantada sobre este fundo triste tinha uma expressão facial e um descair de ombros que nada de bom augurariam... reparou, agora, melhor. Sinais de quê? A vontade de, naquele risonho dia de verão, não se deixar imaginariamente entristecer começava a tolher-lhe a leitura. É que não lhe apetecia mesmo nada angustiar-se.
Fosse como fosse, não obstante este nascente somar de resistências, o seu ouvido interior de leitora não conseguia ainda negar-se ao desafio de vir a deslindar as revelações que haveriam de fazer desabar aqueles muros de incongruências e ambiguidades que começavam a assombrá-la. Virtude do autor. Virtude da sua arte de contar. Leitora jovem, ainda não muito experiente nos caminhos da leitura, sentia-se numa encruzilhada: queria saber, mas não queria sofrer. Queria saber como é que tudo iria acabar, mas não queria sentir a dor fictícia quase tão concreta como uma dor real, aquela, a propósito da qual, o poeta que não nos larga dissera «Sentir, sinta quem lê!» A Rapariga não era, não era mesmo nada, especialista em distanciações reflexivas que a salvassem de ficar presa nas malhas emocionais.
Prosseguiu, menos quieta, remexendo-se mais, mudando mais vezes de posição, sinais de nervosismo crescente. O seu corpo que lia parecia imitar os ziguezagues da história, as contradições indomáveis da personagem que a contava, a falta ainda de um caminho claro para um desenlace. Onde ia já ela, a distensão corporal, a respiração tranquila na clara luz e no silêncio macio daquele seu quarto de férias cheio de sorridentes memórias fotografadas sobre os móveis antigos, com que começara, pela leitura, uma desafiante investida no desconhecido? Desaparecera. A luz exterior estava cada vez mais doce e cada vez mais coalhava, de um morno afável, a atmosfera do quarto. Mas a luz trémula e sombria, que do livro cada vez mais irradiava, estava a vencer. Como era possível? Como era possível a luz negra de uma história dentro de um livro apagar a dourada luz do sol? A angústia crescente com que lia subia-lhe nos nervos, trepava-lhe até às mãos, punha-lhe insegurança no virar das páginas e, às tantas, num piparote desabrido, descolou-se do livro que, sacudido com força, cruzou o ar do quarto num voo rápido e foi aterrar sobre o antigo psiché. A Rapariga, com um «ufa!» libertador, distendeu o corpo, espreguiçou os braços e acendeu de novo a luz e o calor do sol apagando o negrume da leitura. O Livro não foi lido até ao fim. Dele, a Rapariga guardaria para sempre a lembrança de um insustentável peso opressivo sobre o seu inato e pouco maturado desejo de alegria, desembocando naquele caricato arremesso.
A vida do Livro, porém, nem sempre correra assim, tão acrobática. A história que, dentro de uma capa triste, depois de algum tempo jazer, repudiada, no quarto da Rapariga, foi devolvida à biblioteca, tivera já outras vidas. O Livro fora, vinte seis anos atrás, um jovem livrinho recém-editado num pequeno formato, apresentando-se, ao primeiro olhar, em tons fortes de negro e vermelho. Na sua capa, derramavam-se estas cores fortes vertidas sobre um grande rosto enigmático. Título e autor abaixo, no limite do corte, em negro maciço. Estava-se, então, no já longínquo ano de 1932, ano esse em que aquela história, excessiva para a Rapariga de 1958, conseguira, pela primeira vez e não sem alguma dificuldade, emergir para a luz da edição. Suscitara, desde logo, entusiasmo ledor de quase todos os recetores profissionais de literatura, críticos e afins, e até o bem abonado aplauso de alguém como Hernâni Cidade que, sobre ela assim escreveu: «Considero este livro a mais notável revelação de romancista da nova geração.» Tal não significou, porém, uma corrida à sua leitura por parte dos leitores anónimos. Um ou outro, sim. Ia aparecendo nas montras das livrarias consagradas que então havia e nas mãos de alguns leitores que a liam sentados nos bancos de jardim que, então, também havia ou nas suas cadeiras de descanso, em casa, depois do trabalho.
Ora, numa manhã de chuva miudinha, passava, numa rua da Baixa lisboeta, um homem dos seus trinta anos, a caminho do emprego. Era num escritório de uma dessas antigas ruas retilíneas que o Homem se sentava todos os dias em frente à máquina de escrever. Datilografar era o seu principal ofício. Passava, na rua, o Homem e, na montra da livraria que então ali havia, lá estava o Livro que, mais de vinte anos depois, haveria de voar das mãos da Rapariga angustiada. O vermelho e o negro da capa fazia-se notar entre os outros livros predominantemente pardos ou de cores esbatidas. O Homem ia com tempo e resolveu entrar. Cumprimentou elevando e inclinando o chapéu, mudou a pasta de mão e, depois de olhar em volta, pediu com decisão o livro pequeno de capa vermelha e negra que vira na montra. O livreiro disse muito bem e ainda acrescentou é um bom livro, saiu há pouco tempo. Enquanto o livreiro rasgava um quarto da folha de papel pardo com que, a seguir, embrulhou o Livro, o Homem fazia saltar do porta-moedas para a palma da mão duas moedas, uma de cinco escudos e outra de um escudo com que o pagou. Ouviu-se ainda, quase simultâneos, o tilintar da máquina registadora e o estalar do fecho metálico da pasta em que o Homem guardou o Livro. De novo fez inclinar o chapéu em jeito de cumprimento e saiu agora apressado e como que sentindo-se acompanhado pelo mistério que guardara na pasta. Cada livro ainda não lido é um mistério! Pelas dezoito horas, escuras de inverno, o Homem, já em casa, sentou-se na sua cadeira de descanso perto da janela e junto à luz do candeeiro de pé. Tinha nas mãos o Livro. Era o caminho pelas suas 166 páginas que agora ia iniciar. Começou. À medida que o recorte da personagem narradora ia emergindo nas suas facetas de luz e sombra, suscitando-lhe tanto pensamentos conclusivos como dúvidas, tanto sensações de reconhecimento como de quase-absurdo, o Homem ia-se sentindo agarrado quase como se estivesse ao leme de uma viagem que queria por força terminar. Que fim? Que fim iria ter tudo aquilo? Era a pergunta que latejava nos seus dedos de cada vez que moviam mais uma página. Tratava-se de um leitor muito racional, sempre a pensar nas causas dos comportamentos e muito blindado para influências emocionais desprevenidas. E, depois, havia no ambiente de vida daquela personagem alguma semelhança com o da sua, mas, curiosamente, um antagonismo perfeito quanto ao modo como o viviam. Era como se ali, naquela história, estivesse pintado o outro lado da sua Lua. Que esperava nunca vir a pisar, mas gostava de ver ali narrado. Era um lado obscuro, tingido de sentimentos malévolos, em que, sabia-o firmemente, nunca iria entrar. Esta distância abismal entre si e o escriturário da história mantinha-o alerta. A sua atenção de leitor seguia os passos daquela personagem que, simultaneamente, era e não era um espécime vulgar. Interessava-se quase cientificamente pelo surgimento de cada perturbado assomo de vontade de crime por que a personagem frequentemente era tomada. E, simultaneamente, pensava na genialidade narrativa que colava na mesma figura a sanidade aparente e a profunda alienação, o cumprimento profissional e os gestos descontrolados conducentes à autodestruição. À hora de jantar, fechou o Livro e com gestos tranquilos, bem diferentes do arremesso brusco da Rapariga da vila sossegada vinte e seis anos mais tarde, pousou-o na mesinha ao lado da cadeira. Pousou-o e, com ele, deixou também de pose a vontade de continuar a lê-lo no dia seguinte. Tinha ficado na página 66. O Homem gostava daquele tipo de histórias que não se multiplicavam por muitos meandros e recantos, mas permaneciam coesamente unidas por um fio de sentido forte e intrigante. Aquele autor sabia fazê-lo, pensava. Gostava também de histórias que, como aquela, lhe contavam o fundo psicológico oculto por baixo da superfície dos gestos aparentemente normais. E de acompanhar a progressiva contaminação da nitidez dos gestos superficiais pela luz negra de neuróticos impulsos descontrolados, quem sabe se até ao crime... Iria haver crime? O Homem que levava uma vida completamente normal e era feliz assim, gostava, no entanto, de, pela leitura, mergulhar em situações e personagens feridas pela anormalidade que a leitura lhe tornava claras, expostas. Tinha acertado com aquele livro. O desacerto entre as festivas palavras do título e o vermelho e o negro derramados sobre aquela cara, ali na montra da livraria, não o enganara. A sua escolha, porém, não fora totalmente furtuita. Para além da intuição vinda dos sinais que o aspeto exterior de um livro sempre emite, a verdade é que o nome daquele autor associado àquele título não lhe era totalmente estranho. O Homem gostava de ler jornais que, por essa época, quase todos, traziam breves ou mais desenvolvidas resenhas e até anúncios de livros. Tinham-lhe ficado na memória as palavras que, há tempos, lhe tinham passado por baixo dos olhos, na rubrica dos livros e dos autores do Diário da Noite, subscritas pelo prestigiado jornalista Julião Quintinha e que, acerca do Livro, diziam: «... demonstra-nos que Portugal conta, hoje, com um Grande Novelista». O Homem concordava: a arte narrativa e o interesse temático daquele Livro só de um grande novelista poderiam ter saído! E foi assim que, em fins de tarde sucessivos, não muitos porque a leitura correra bem, o Homem acabou de ler o Livro. Logo a seguir à leitura das palavras finais [«O resto, já o doutor sabe. Não me pregunte (sic) mais nada, foi exactamente assim que tudo se passou — nem podia ser de outra maneira, embora eu próprio duvide algumas vezes e o senhor possa julgar que eu não passo dum pobre alucinado.»], o Homem suspirou de satisfação e deu uma palmada afetuosa no Livro já fechado, enquanto ia repetindo «Sim senhor, sim senhor!». Depois, foi guardá-lo na estante fronteira. Lá, ficou o Livro, quieto, à espera que outras mãos, que outro olhar, que outro pensamento, o viessem de novo desassossegar.
Um ano passou, outros anos passaram, e este Livro, na sua capa vermelha e negra, foi sendo empurrado para trás pelo tempo que acelerava. De quando em quando, porém, a intervalos lentos de anos volvidos, faziam-no vestir de novas formas gráficas e lá surgia ele de novo à tona da leitura. A sua vida de livro ia-se desenhando num horizonte pontuado por picos e depressões. Tudo, embora, suavemente modelado, sem grandes sobressaltos. Revelava ser um Livro de procura um tanto sonolenta, mas ainda assim persistente, estremecida, de vez em quando, por uma ou outra voz que asseverava a grandeza da arte com que fora escrito. Longas temporadas, parecia adormecido no silêncio à sua volta ou no íntimo dos seus leitores obscuros. Ia envelhecendo, o Livro, ilustre quase-desconhecido, como um segredo bem guardado? Os livros de boa casta, como este, parece que envelhecem, mas não. A espaços irregulares mas marcantes, o tumulto psicológico que a sua leitura, talvez inesperadamente, desocultava, expandia-lhe as oportunidades de redescoberta, tornando felizes, os seus leitores. A cada uma das décadas que sobre ele iam passando, o Livro, que na década de trinta do século vinte nascera, reemergia envergando nova capa, assomando de novo nas montras, caindo nas mãos dos leitores que com ele se encontravam.
Anos cinquenta, aqueles em que vimos a Rapariga, esmagada de angústia, a atirá-lo pelos ares até cair no psiché, na casa grande e fresca da avó, num quieto verão provinciano...
Anos sessenta, aqueles em que um Jovem Leitor, fascinado pela temática da loucura e da marginalidade, repetia à saciedade, pelas clandestinas tribunas estudantis o seu espanto e revolta frente ao esquecimento a que o Livro, genial, dizia ele, parecia votado...
Anos setenta, em que, numa concorrida reunião política, um jovem militante, com o Livro em punho, o agitava contra a burguesia, gritando leiam isto, leiam isto...
Anos oitenta, em que uma professora apaixonada por Literatura, o colocou na vitrina expositiva da Biblioteca da sua escola...
O Livro ia vivendo entusiasmos e deceções, paixões e indiferenças...
Ora, um dia, mudado já o século, dobrara já o livro o ano de se tornar septuagenário, lembraram-se de lhe darem um formato pequeno, daqueles que, pelo menos teoricamente, cabem num bolso. A intenção era a de o tornarem mais próximo, de facilitarem o seu contacto com os leitores, talvez obedecendo à falsa ideia de que o valor está na aparência. E lá encolheu, materialmente, o Livro, apertando a mesma história perturbadora de sempre em páginas de pouca margem, em letra de pequeno tamanho. Tinha, agora, 145 páginas, o Livro que começara com 166. O esboço de perfil citadino desenhado sob a aguada cinzenta da sua velha e mais repetida capa, aquela da década de cinquenta que voara das mãos da Rapariga, era agora substituído por uma fotografia de época, a preto e branco, em que a cidade surgia habitada por homens de chapéu, iguais ao seu leitor dos anos trinta. Homens movendo-se desencontrados, dentre a cinzentez dos quais, olhava, num círculo de menor penumbra, talvez aquele cuja voz diz, ao terminar do Livro, que sobre si se possa pensar que não passa de um pobre alucinado. Bem perdidos trabalhos devam ter sido, os envolvidos no reforçar do Livro como alvo de atenção e de compra! Perdidos, porque o lustro de atualidade que lhe quiseram dar foi na realidade um fogo fátuo. Fátuo, porque muito pouco o deixaram durar, ao Livro, nos escaparates, logo empurrado para ignotos armazéns por novas fornadas, sempre a sair, sempre a sair. Era esta uma época em que não havia, para o Livro, o tempo de ser avistado, de ser referido aqui e ali, de ser motivo de opiniões saboreadas por uns e por outros, de ficar demoradamente a amadurecer no desejo de alguém, de ser adiado para daqui a uns tempos, quem sabe... porque de momento haveria outras prioridades de leitura... Quando a decisão final de o ler estivesse madura, chegar-se-ia lá, à livraria, das poucas que ainda ia havendo, e o Livro... Que é do Livro?! Fora empurrado pela imparável enxurrada para catacumbas donde, apenas por processos mais ou menos complicados e, muitas vezes, desistidos, poderia ser resgatado para a luz da leitura. Porque — desengane-se quem julgue que não é assim demorado o caminho dos leitores, múltiplos e diversos, para um livro — a compra de um livro não é a compra de um legume para pôr na sopa, que se apresenta, um dia, viçoso, e logo, perdido o viço, é remetido para o amontoado do que já não serve, do que já não vende. E foi assim que, nesta altura, o Livro, pese embora o renovado esforço para o pôr presente, muito pouco luziu nas montras.
Ora foi precisamente quando estes transes se atravessavam na vida do Livro que a professora apaixonada por Literatura que, na década de oitenta, o tinha exposto na vitrina da Biblioteca da sua escola resolveu propô-lo para leitura e conversa, na comunidade de leitores que coordenava. O Livro era, para aqueles leitores que o iriam ler em comum, um desconhecido. Mas não era com o fito de virem a conhecer o que, até aí, desconheciam, que se reuniam?! Era, pois! Vamos a isso! E foram à procura do Livro, crentes um tanto ingénuos, que, sendo livro e livraria palavras da mesma família, seria lá, nesse lugar familiar dos livros, a livraria, que o iriam encontrar. E é, então, que conseguimos ver uma Leitora rondando os escaparates mais salientes, tomando a sua vontade pela vontade do vendedor e pensando, por isso, que seria por ali que o Livro certamente estaria. Mas não estava. A Leitora passou então às estantes, pondo o seu olhar atento a descodificar o critério de arrumação, a triar autores, títulos, nacionalidades, editoras... e nada! Do Livro, nem sombra. Onde estaria o Livro? Então, a Leitora dirigiu-se ao vendedor e perguntou:
— Boa tarde? Por acaso não tem o Livro?
— O Livro?! Só um momento, que eu vou verificar no sistema...
— Olhe, não, de facto, o Livro não temos.
— Não têm?!
— Sabe, já saiu há uns dois meses... agora, só encomendando. Se quiser, podemos encomendar e, daqui a quinze dias, no máximo três semanas... Deixa-nos o seu contacto e, nós, se a editora o tiver em armazém... enviar-lhe-emos um SMS.
— Que maçada! Que maçada! - Ia consigo remoendo a Leitora, desandando rua acima sob o sol escaldante de Lisboa - O Pessoa é que sabia... Ai, que maçada...
In «JULIO DINIS em OVAR», Anthero de Figueiredo in Serões — revista mensal ilustrada, n.º 8 (Fev.1906).
JÚLIO DINIS SOB O SIGNO DA MELANCOLIA E DO PRAZER
«Às vezes os sentimentos melancólicos trazem consigo algum prazer também, um prazer suave, íntimo, consolador.»
Esta frase é retirada do romance Uma Família Inglesa, o primeiro que Júlio Dinis escreveu, não o primeiro que publicou. Começou a escrevê-lo (presume‑se) em 1858, quando era um jovem escritor com dezanove anos de idade, mas só iniciou a sua publicação quase dez anos depois, em 1867, em folhetins, no Jornal do Porto, com o título Uma Família de Ingleses e publicou-o em volume, em 1868, já com o título que hoje tem. Este foi o seu único romance de temática citadina. Entretanto, deu prioridade de edição a As Pupilas do Senhor Reitor, um romance de cenário rural, que iniciara e em parte escrevera em Ovar, a terra acerca da qual Júlio Dinis disse, em carta de 1863, dirigida ao seu amigo Custódio Passos, «Ovar é uma vila e é uma aldeia».
Olhando mais de perto as palavras sobre melancolia e prazer, de que parto, situo-as numa passagem do desenvolvimento da intriga sentimental do romance: o encontro aparentemente casual entre Carlos Whitestone e Cecília. Trata-se de um momento melancólico pelo lugar em que se desenrola e pelas memórias que evoca nas personagens. O lugar é um cemitério, onde convergem Manuel Quintino e Cecília, motivados pela evocação saudosa da mulher e da mãe, e Carlos cuja presença tem uma motivação de sinal emocional diferente, o seu amor por Cecília. Porém, partilhando Carlos com ela a situação de orfandade materna, há razões para pressentirmos que também ele seja contagiado pela melancolia ali reinante. Em fundo e já fora do romance, não deixa de se vislumbrar ainda a sombra do autor, ele próprio vítima da perda precoce da mãe.
Alheio à intriga, o narrador procura interpretar os sentimentos das personagens e, portador de apurado sentido da ‘verdade’ das suas emoções, associa, à melancolia que sentem, alguma dose de prazer. De facto, é verosímil que, a contragosto do lugar fúnebre em que se encontram e dos tristes acontecimentos que evocam, Carlos e Cecília sintam prazer por estarem próximos um do outro, não só física, mas também emocionalmente, graças à afinidade das memórias que partilham.
Assim começa, este meu texto, em tom menor. Em breve, porém, como fez o narrador dinisiano, associarei a esta tonalidade melancólica outras notas mais eufóricas: as do prazer de criar e de ler literatura.
A caminho de deslocar o seu significado para um outro contexto, teclo de novo o pensamento inicial: «Às vezes os sentimentos melancólicos trazem consigo algum prazer também, um prazer suave, íntimo, consolador.»
Trata-se da expressão de uma “verdade” que não se esgota no sentido que o seu lugar intratextual lhe permite. Há, nela, uma reflexão genérica sobre a complexidade das emoções que me permite recolocar as suas duas palavras fortes,melancolia e prazer, em outras conjugações extratextuais.
Penso, por exemplo, na conjugação, harmónica no seu resultado, entre o facto de Júlio Dinis, um homem de temperamento melancólico, ter criado uma obra de carácter genericamente festivo que fez os seus leitores experimentarem o sentimento de felicidade pela leitura. Esta constatação, pela contradição que de certo modo encerra, não deixa de suscitar um certo efeito de espanto e de curiosidade, que pode ser formulado desta maneira: como é que uma obra de leitura tão consoladora pôde ser produzida por uma pessoa de feitio triste e de vida tão torturada pela doença e pela morte!
De facto, a melancolia era, segundo testemunhos vários e até confissões do próprio, uma característica bem visível no modo de ser de Joaquim Guilherme, a pessoa subjacente ao autor Júlio Dinis, que boas — ou antes más — razões tinha para ver a vida com olhos tristes.
Em 1926, numa peça publicada no Diario do Porto, uma entrevista ao Dr. Alfredo de Magalhães, ex-diretor da Faculdade de Medicina do Porto e reitor da Universidade da mesma cidade, a propósito das homenagens prestadas ao doutor Joaquim Guilherme Gomes Coelho, como forma de celebrar o centenário dessa escola, o jornalista refere-se-lhe nestes termos:
«A obra de Julio Diniz é uma obra cheia de graça cintilante, cheia de beleza e de expressão. Julio Diniz era, todavia, um espírito melancólico e taciturno, duma expressão triste e dum caracter frio, duro e até intratável.»
Informação semelhante pode colher-se a partir do relato que Anthero de Figueiredo nos deixou da sua visita a Ovar, mais propriamente da reprodução da conversa que manteve com a prima do escritor, durante o seu encontro na casa que, quarenta anos antes, o tinha acolhido:
«— Tinha um ar triste, afirmei eu, quebrando o silêncio.
— No Porto, sim, e aqui quando chegou: tudo lhe aborrecia!»[1]
Em ambas as situações, Júlio Dinis é referido como dado à melancolia e ao aborrecimento.
Estariam o jornalista do Diario do Porto e Anthero de Figueiredo a ser exatos?
De facto, existem outros testemunhos a confirmá-los.
Camilo Castelo Branco, por exemplo, escreveu acerca de Júlio Dinis, numa carta a Castilho: «É um sujeito doente e triste.»
E o próprio Júlio Dinis não deixou de se referir repetidamente a estas características do seu temperamento, sobretudo em cartas dirigidas ao seu muito amigo Passos, irmão do poeta ultrarromântico Soares dos Passos, de que respigo umas quantas passagens:
— «... têm-se-me exacerbado os meus humores negros e estou, pelo menos moralmente, algum tanto pior.»;
— «... quando anoitece e pela madrugada, em que os diabos negros se apoderam de mim.»;
— «A solidão longe dos homens é para mim uma coisa agradável»;
— «Eu não tenho a qualidade, que admiro em certa gente, de apreciar a convivência...»;
— «... conspiraram-se variadas circunstâncias para me levarem o espírito àquele grau de melancolia já de há muito meu conhecido.»
Júlio Dinis não era, pois, um ser dado ao bom humor. Era, pelo contrário, propenso a deixar-se dominar pela tristeza, amante da solidão, pouco dado à convivência, melancólico. E, no entanto, como escreve o jornalista do Diario do Porto, produziu romances cheios de «graça cintilante».
Admirável talento literário, o seu, que soube criar e compor com um realismo assinalável, a partir da observação e da imaginação, figuras cheias de vivacidade como um João Semana, alegres e até um pouco entontecidas pela alegria própria como uma Clara, e tantas outras movendo-se em enredos romanescos que desencadeiam, nos seus leitores — os mais eruditos e os mais populares, no seu tempo e muito tempo depois — sentimentos de reconforto anímico, sensações de agrado, momentos de felicidade pela leitura.
À receção da obra de Júlio Dinis que constituiu um caso singular de estrondoso êxito, esteve ligado um culto afetuoso da personalidade literária do escritor, motivado por uma espécie de gratidão, a do leitor que experimenta a leitura benfazeja.
Razão há, pois, para espanto perante o facto de um homem de temperamento e vida muito pouco alegres ter dado tanto prazer, através da leitura, a gerações e gerações de leitores! Quem, leitor da sua obra, mas desconhecendo a sua vida, adivinharia que por trás de romances tão solares estaria um homem tão sombrio!?
Júlio Dinis tem consciência da vivacidade que anima os seus romances. Mais: dá-nos testemunho de como esse apelo literário ao vívido contacto com situações e personagens animadas por um realismo pleno de espontaneidade na exteriorização de sentimentos e anseios, reverte também em seu benefício, interrompendo o seu pendor para a solidão, o seu feitio avesso à convivialidade que não fosse a dos muito próximos. Assim, numa carta, datada do Funchal, dirigida a sua prima e madrinha D. Rita de Cássia Pinto Coelho, que trata afetivamente por Ritinha, escreve: «na vida desconsolada e insípida que aqui passo há verdadeiramente só duas ocasiões de satisfação para mim. A primeira é quando recebo e leio com ardor as cartas da família e dos amigos; a segunda é em alguns momentos em que me esqueço da realidade em que vivo, por muito me engolfar em um certo mundo que ando construindo e na convivência de umas criaturas que me devem a tal ou qual existência de que principiam a gozar.» Este «certo mundo» era o mundo de ficção que criava, no caso o de Os Fidalgos da Casa Mourisca que andava a escrever na altura, e as ‘criaturas que lhe deviam a existência’ eram «gente» imaginária como Dom Luís, Jorge, Maurício, Berta, Gabriela... personagens do romance.
Aos momentos felizes que lhe dava o convívio imaginário com as personagens e com as cenas que criava, soma-se ainda a felicidade sentida, embora nunca muito exteriorizada, com a extraordinária receção da sua obra. Veja-se o caso da adaptação teatral de As Pupilas do Senhor Reitor por Ernesto Biester e o episódio apoteótico da sua estreia no Teatro da Trindade, em Lisboa.
No caso de Júlio Dinis, o momento da elaboração literária e o da receção obtida pelo produto dessa elaboração, embora distanciados no tempo, estão fortemente correlacionados. A matéria do seu trabalho literário é fruto de uma aguda e justa observação do real, da vida de gente vulgar, e, por isso, os leitores, gente real e comum, sentem-se participantes dos seus romances e, daí, confortados com o reconhecimento de situações por eles vividas ou testemunhadas. Deste modo, experimentam a felicidade pela leitura e agregam grande afetividade ao acolhimento da sua obra. E esta é a principal razão de ter sido, ele, um caso singular de intenso e extenso êxito popular, o que não poderá ter deixado de talhar com momentos de alegria o seu pendor melancólico.
Os romances de Júlio Dinis tiveram a arte de transformar em leitores e propagadores de leitura muitos que, até aí, não o eram. E isso deveu-se, em muito, à vivência de um gratificante processo de autoprojeção e identificação, que é o cerne da leitura de massas e arrebata amplas camadas de leitores médios.
Sampaio Bruno, ou seja, José Pereira de Sampaio, de pseudónimo Bruno (de Giordano Bruno), diz em A Geração Nova: «O sucesso de Júlio Dinis proveio, pois, desta alegria do público em se sentir passar de espectador a ator em obra literária e o Sr. Luciano Cordeiro engana-se, julgando que o êxito da obra do escritor era um desfastio, porque, mais do que isso, ela correspondia a uma íntima necessidade de se encontrar na novela a representação da sociedade viva.»
Teixeira de Vasconcelos, no jornal A Reforma (1871), afirma: «Gomes Coelho não apresenta nos seus livros nenhum d’estes repugnantíssimos typos, cuja história o leitor se enfada de lêr [...] Júlio Dinis retrata cenas que fazem bem ao coração do leitor».
Facto notável este, o de os romances de Júlio Dinis, num país com mais de oitenta por cento de analfabetos, encontrarem meios de serem “lidos” até por quem não sabia ler! As suas palavras eram recebidas oralmente em rodas de leitura em voz alta.
Irene Vallejo diz que as palavras são, antes da existência de qualquer tecnologia cultural de escrita, «meros pedaços de ar»[2]; cita, de Homero, as «palavras aladas» que, posteriormente, procuraram «a sobrevivência»2, através da escrita. É, nessa sua primeira natureza aérea, que as palavras de Júlio Dinis encontram o caminho de muitos dos seus leitores/ouvintes. De facto, muitos dos seus leitores, apaixonados conhecedores e citadores das suas histórias, das suas personagens, eram analfabetos. Viviam-se tempos que nada tinham já de homéricos, mas em que, devido ao enorme índice de analfabetismo existente, a vida decorria, em muitos meios, na mais pura transmissão oral! Viegas Guerreiro recorda: «Eu lia, em rapaz, a camponeses da minha terra, romances de Júlio Dinis e de Camilo. E era vê-los participar na ação, falucando, perguntando, comentando.»[3] É que, e subscrevendo totalmente Irene Vallejo: «Afinal de contas o que é uma história? Uma sequência de palavras. Um sopro. Uma corrente de ar que sai dos pulmões, atravessa a laringe, vibra nas cordas vocais e adquire a sua forma definitiva quando a língua acaricia o paladar, os dentes ou os lábios.»2 E dessas sequências de palavras, desses «pedaços de ar», possuímos todos a aptidão de ser leitores. Trata-se de uma condição existente no humano, essa disponibilidade de recetor de histórias quer se concretize quer não através da leitura do escrito. Assim aconteceu com as histórias de Júlio Dinis e com o fortíssimo elo afetivo que criaram com os leitores.
A provar este tão amplo alcance da receção dos romances de Júlio Dinis existem dados factuais, quantificados de que podemos recordar:
— No ano em que foram publicadas em volume, em Outubro de 1867, As Pupilas do Senhor Reitor esgotaram-se num mês!
— Em 1900, As Pupilas do senhor Reitor têm já catorze edições correspondentes a vinte e oito mil exemplares.
— Os Fidalgos da Casa Mourisca, publicados já depois da morte do autor, tiveram oito edições correspondentes a treze mil exemplares até 1900.
— Nos inícios do século XX, Uma Família Inglesa ia na nona edição (dezasseis mil exemplares) e A Morgadinha dos Canaviais, na décima (doze mil exemplares).
Outros dados existem, também factuais, mas medidos não em números, antes na expressão do reconhecimento afetivo e do prestígio do escritor:
— As conferências e discursos vários, pronunciados durante os muitos atos de homenagem prestados ao escritor, dão uma nítida e inegável imagem da receção havida por parte da sua obra. Respigando, entre muitas outras, duas significativas referências exemplificativas do tom e do sentido das palavras dirigidas à memória do escritor em tais circunstâncias: «insigne romancista»; «romancista querido de todos os portugueses», podemos avaliar bem o prestígio e mesmo o amor, advindos do prazer da sua leitura, que alcançou a obra deste escritor.
E, no entanto, enquanto as suas histórias, fruto de aturado trabalho de elaboração literária, iam preenchendo, com cenas cheias de alegria, o imaginário dos portugueses, Júlio Dinis sofria melancolicamente os tormentos da sua tristíssima e tão curta vida.
Eça de Queirós precipitou-se, arrastado pelo efeito de estilo, quando, afastando-se da realidade dinisiana, que talvez não conhecesse muito bem, disse de Júlio Dinis: «viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve». Júlio Dinis não viveu de leve; ninguém morre de leve; e a sua obra não se concretizou através da espontaneidade simples de uma escrita ingénua, mas foi fruto de pesquisa e de uma elaboração assente em convicções maduramente ponderadas. Provam-no, por exemplo, as páginas publicadas nos Inéditos e Esparsos com o título de Ideias que me ocorrem, escritas no Funchal em 1869. Nessas páginas, segundo Gaspar Simões, e justamente, «está nitidamente exposta uma verdadeira estética do romance realista». As opções literárias de Júlio Dinis são fruto de ponderação, de reflexão e análise da arte do romance e uma dessas suas claras opções é a de desenhar as suas personagens a partir de um agudo sentido de observação do real quotidiano, sobretudo de tipos rurais.
Nessas páginas publicadas em Inéditos e Esparsos, Júlio Dinis escreveu: «Há uma lei do gosto literário em que eu acredito firmemente. O excecional, o extravagante, o desregrado não é o que desperta nos leitores ou nos espectadores o mais verdadeiro, o mais duradoiro interesse; pelo contrário, é o comum, o vulgar na justa aceção do termo. Quando encontramos em um livro pensamentos que já tivemos um dia, sentimos agradável surpresa, como ao darmos em um lugar, inesperadamente, com uma pessoa conhecida; quando no carácter, no coração de uma personagem literária, há alguma coisa que é nossa, quando nos reconhecemos em parte personificados numa criação, redobra o interesse com que o acompanhamos nas peripécias do drama.»[4]
Foi em Ovar que Júlio Dinis colheu grande parte dos dados dessa observação do real a que tanta importância atribuía no seu processo de criação literária. E foi também sobre Ovar que o romancista escreveu, em carta a sua tia D. Rosa Zagalo Gomes Coelho: «os quatro meses que passei em Ovar foi o tempo mais feliz da minha vida». Sobre a relação do escritor com Ovar, diz-nos Antero de Figueiredo, no texto já citado e lembrando outras terras por onde Júlio Dinis peregrinou em busca de saúde (Felgueiras, Famalicão, Fânzeres, Funchal...): «A algumas dessas terras creou odio e em todas deixara o rasto amargoso do seu tédio; mas lembrando-se de Ovar sorria!»
Ovar foi, pois, para Júlio Dinis, um sorriso, uma aberta solar na sua melancolia. Atrevo-me a pensar que esse sorrisonão advinha de motivações meramente pessoais; tinha um valor literário, associado à importância que a vida vivida em Ovar teve na consolidação das suas convicções estético-literárias e, daí, na fortíssima receção da sua obra. Assim, sorri o autor e sorrimos nós, os seus leitores.
Ao fornecer-lhe matéria para a escrita de romances em que mergulhava com satisfação e, deste modo, contribuir decisivamente para a ampla onda de leitores que a sua obra desencadeou, Ovar tem, pois, responsabilidade no prazer que pode ter temperado a tristeza dinisiana. Foi em Ovar que Júlio Dinis começou a escrever As Pupilas do Senhor Reitor, romance que desencadeou o movimento da notável amplidão da receção da sua obra e da intensidade do gosto com que era lido. Virginia Woolf escreveu, no seu ensaio The Patron and the Crocus: «To Know whom to write for is to know how to write.»[5] e eu, estando de acordo com esta sua afirmação, atrevo-me a escrever que foi em Ovar que Júlio Dinis, ao conhecer os tipos humanos, reais e vivos, de que haveria de fazer personagens, conheceu simultaneamente quem, desdobrando-se por muitos, haveria de constituir a grande massa dos seus leitores. Aí, encontrou aqueles para quem estava a escrever e, seguindo Virgínia Woolf, implicou, nesse encontro, a consolidação da identidade quer temática quer estética da sua obra.
Joaquim Guilherme Gomes Coelho foi um homem cuja vida decorreu sob o signo da melancolia, mas teve o talento de se imaginar como Júlio Dinis, escritor cuja obra foi criada e lida sob o signo da alegria.
[1] In «JULIO DINIS em OVAR», Anthero de Figueiredo in Serões — revista mensal ilustrada, n.º 8 (Fev. 1906).
[2] In Irene Vallejo, O Infinito num Junco.
[3] Viegas Guerreiro in Para a História da Literatura Popular Portuguesa.
[4] In Inéditos e Esparsos com o título de Ideias que me ocorrem, escritas no Funchal em 1869.
[5] «Saber para quem escrever é saber como escrever.» (Tradução minha.)
"Estamos no dia 15 de maio de 1762. Naquele tempo, os dias de maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava. Ninguém saía da sua casa às cinco horas duma tarde cálida de maio, com um casaco de reserva no braço para resistir ao frio das sete horas; nem o peralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante. O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinada pelos astrónomos. A gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e a ciência dos factos repetidos. Depois, porém, daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar no fim do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, passado um indeterminado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjeturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido elétrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de atuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames elétricos, afinal, acabariam de todo com a primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para o nosso uso em julho. De mais disso, o Porto da primavera de 1762, gozava-se de ar impregnado de aromas, porque, naquela era, grande número de ruas que hoje respiram vapores nocivos pelos férreos pulmões dos seus edifícios e fábricas, eram quintas, arvoredos, jardins, ourelas e marginados verdejantes de límpidos regatos, que os duetos atuais do gaz degeneraram em água poluída dessas dezenas de chafarizes em que tragamos peçonha."
Camilo Castelo Branco
Corria o ano de 1939.
Comemorava-se o primeiro centenário do nascimento de Júlio Dinis.
Houve Récita de Gala no Teatro Rivoli, no Porto, em que foi representada a peça extraída de «Os Fidalgos da Casa Mourisca».
Do vasto elenco de atores amadores que aqui posam para a fotografia fazia parte... «D. Sofia Melo Breiner Andresen» (1) no papel de Berta. (A primeira da esquerda dentre as três figuras femininas.)
(1) In «Boletim Cultural - Suplemento Trimestral ao Boletim da Câmara Municipal do Porto - número dedicado às comemorações do Centenário de Júlio Denis - Dezembro de 1939»
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