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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)


Terça-feira, 20.02.24

MAU TEMPO NO CANAL

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     Em Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio, através de um labor de genial ficcionalização, faz-nos ver e sentir a realidade social e geográfica de quatro ilhas açorianas, Faial, Pico, S. Jorge e Terceira, tomando a cidade da Horta e o complexo humano em que se insere a vida de Margarida Dulmo, como núcleo irradiador.

     O panorama desenrola-se, largo e denso, durante o período da primeira Guerra Mundial, que corresponde, nas ilhas, a uma época de desequilíbrios económico-sociais entre uma aristocracia decadente (representada pelos Dulmos) e uma burguesia em ascensão (representada por Januário Garcia).

    A Horta aparece-nos como um pequeno burgo fechado sobre si, apertado nas malhas do poder de um pequeno número de famílias, mas  permeado por algum leve cosmopolitismo advindo do seu porto, importante para reabastecimento e reparações dos navios que cruzavam o Atlântico e da estação da rede de cabos submarinos que asseguravam as comunicações entre a Europa e a América.

     É, neste contexto, que Vitorino Nemésio dá vida a Margarida Dulmo que pensa, age e sente no seio de uma família com nobres pergaminhos desde o povoamento, caída numa situação económica ruinosa — os Dulmos.

    É, neste contexto, que Vitorino Nemésio dá vida a João Garcia, que pensa, age e sente no seio de uma família de gente à procura de enriquecimento e de poder, dominada pelo sentido de perseguição e vingança sobre os Dulmos — a família de Januário Garcia.

    É, neste contexto, que Vitorino Nemésio dá vida (e morte) a Roberto Clark, o tio ainda jovem de Margarida, provável deus ex-machina que a libertará da clausura insular, mas a que a peste, outra das amarras e esta fatal, cortará os sonhos, os seus e os dela, e que pensa, age e sente com uma mentalidade já facetada pela cultura britânica, no seio do ramo materno da família de Margarida — os Clarks.

   É, neste contexto, que Vitorino Nemésio dá vida a André Barreto, tábua de salvação no caminho do naufrágio económico dos Dulmos, barragem contra a gula vingativa dos Garcias, que pensa e age e sente no seio de uma família de outra ilha, São Jorge  — a do poderoso Barão da Urzelina.

      Xadrez este — em cujas sucessivas jogadas, movidas por sentimentos e interesses, acaba por vencer o conformismo e a submissão à voz daquela terra, contra o voo dos sonhos e contra a liberdade de amar — inscrito num alargado e diversificado desenho, tão rendado, tão miniatural, tão aproximado, que nos permite mergulhar nos mais ínfimos pormenores, ou seja, na representação dos diferentes modos de viver a vida e a açorianidade em diferentes ilhas e classes sociais.

     A capacidade para ‘bordar’ miudamente, o gosto nemesiano pelo diminutivo, pelo desenho de pormenor, distribui-se por vários planos:

— faz-nos ouvir variantes específicas do falar ilhéu, traçando e destrinçando vontades e reações;

— faz-nos sentir o clima e os fenómenos geológicos, tempestades, nevoeiro e bruma persistentes, que dominam destinos impotentes, tolhem movimentos, destroem expectativas;

— faz-nos angustiar ou clamar espanto, perante a condição insular, perante a exibição da fragilidade da vida a cada investida de doença, de desastre, de intempérie;

— faz-nos seres contemplativos, meditando sobre a condição humana em que a ascensão à montanha, a vista de horizontes sem limites, de beleza sem sinónimo, pode ser um objetivo de vida;

— faz-nos esquadrinhar existências ritualizadas, condicionadas por apertada vigilância social, por obrigatoriedades determinadas por padrões de conduta previamente estabelecidos, no vestir, no sair à rua, no estabelecer convivência, no amar, em sombrio contraluz daquela rapariga que tinha veneta, Margarida Dulmo;

— faz-nos questionar as razões do conformismo, da aceitação de acanhadas declinações daquilo a que, em abstrato, chamamos ambição, ideal, amor;

— faz-nos constatar a presença da religião como regulação  do ritmo da vida;

— faz-nos, enfim, fechar o pensamento sobre quadros de tão grande fragilidade existencial.

     Mau Tempo no Canal representa, em particular, a açorianidade, sim, mas representa, universalmente, o ser humano perante o destino, dividido entre a cedência a um esquema pré-estabelecido e a possibilidade de um projeto próprio, do qual, balançando entre a resistência e a desistência, desiste. Desiste Margarida e desiste João Garcia, ancorados num passado que tem ainda força para assegurar uma espécie de felicidade desistente. Prevalece a resignação à solidariedade com a família, com a comunidade, com a terra. Uma espécie de incompletude do brilho total dos sonhos e do amor. Uma espécie de imperfeição, simbolizada, desde início, na serpente-anel a que falta uma esmeralda e que Margarida Dulmo, que assim o herdou, rejeita corrigir.

    Vitorino Nemésio, um açoriano de treze gerações, um humanista escorado num saber sem rígidas fronteiras — talvez ficcionalmente reconstruído, enquanto jovem, no poeta que vai estudar Direito em Coimbra e se cruza com Margarida no Epílogo do romance, transforma a história social de um povo vivendo há cerca de quinhentos anos numa terra fragmentada, num esplendoroso romance.

     Afonso Lopes Vieira, no seu prefácio ao Paço de Milhafre escreve certeiramente:

«pela primeira vez em nossas letras contemporâneas os Açores acham um artista poderoso para os evocar, sensível para os amar, saudoso para os sentir.»

    David Mourão-Ferreira, na Introdução à edição Círculo de Leitores de1986, não hesita em escrever sobre Nemésio:

«Um humanista incomparável, talvez o mais dotado romancista que tivemos depois de Eça de Queirós e, sem dúvida, o maior poeta  que entre nós viveu depois de Fernando Pessoa.»

    Maria Lúcia Lepecki, com uma aguda perceção da genialidade com que Vitorino Nemésio urdiu este romance, escreve:

«Assim, temos um romance construído em duas direções: uma, horizontal, em que se abrange a paisagem e a coletividade. Outra, vertical, em que se penetra o mundo interior de uma personagem, ela mesma simbólica de um tempo e de uma situação, [Margarida Dulmo], através da qual se tem uma visão crítica e um juízo de valor sobre a totalidade do mundo que a rodeia.»

    Enfim, Nuno de Sampayo, anota no jornal A Capital:

«Os Açores são aqui rememorados desde a navegação que lhes deu realidade cartográfica, antropológica, portuguesa. O tempo da História. Não ficamos aqui, todavia, descemos mais fundo. O arquipélago de Mau Tempo no Canal oculta arquétipos. Jaz, sob Mau Tempo no Canal, uma memória arquetípica. Antes de os navegantes arribarem às ilhas aquilo era de baleias, gaivotas e açores. E antes de haver cetáceos e pássaros, tudo foi elemental, água, fogo, lavas [...]  Na minha adolescência, ouvi de Guerra e Paz uma observação que me impressionou: "Está lá tudo!" Em Mau Tempo no Canal, "microcosmo exemplar", não estará tudo, mas estão os Açores todos.»  

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por Maria Almira Soares às 11:42

Sábado, 06.01.24

UM DEUS PASSEANDO PELA BRISA DA TARDE DE MÁRIO DE CARVALHO

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   O fulcro, o eixo, do significado da história contada  em Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde é um homem. Um homem romano do século II d. C., colocado numa dada situação: Lucio Valerio Quincio (simplificação de Quinctius).

    Comecemos pelo nome, ou antes, pelos três nomes, os tria nomina da onomástica romana: o praenomen (Lucio), o nomen (Valerio), o cognomen (Quinctius). De facto, na instância do leitor, de alguns leitores, esta composição onomástica — que na ordem do texto não ocupa um lugar inicial — tem sua função no fabrico da personagem.  Quinctius que, aqui, ocupa o lugar de cognomen, ou seja, uma alcunha herdada que fazia a distinção entre famílias da mesma gens, foi, no tempo da república romana, nem mais nem menos do que o nome gentílico de Lucius Quinctius Cincinnatus, figura histórica exemplar, marca de respeitabilidade e de bom exercício e desapego do poder. Com ela, a personagem do duúnviro reparte ainda o praenomen Lucio; acrescente-se que, entre estas duas denominações, ecos de um romano ilustre, se intromete o nomen Valerio, ou seja da gens Valeria, etimologicamente situada na linha semântica da ‘valia’, da ‘força’, da ‘valentia’.  

   As palavras não são, nunca são, inocentes e, contrariamente ao que diz o «What’s in a name?» shakespeariano, entre o nome e a coisa, neste caso entre o nome e o homem, a relação, biunívoca, não é despicienda. Assim, temos, num universo ficcional, uma personagem que carrega no seu nome toda uma herança histórica de respeitabilidade, de honradez, de valentia, de desapego do poder.  

     Contemporâneo de Marco Aurélio, o imperador-filósofo e, depois, de Cómodo, o imperador-gladiador, este homem, seguidor da moderação do pensamento estoico, afim do ceticismo religioso, crítico das modalidades sanguinárias que revestia a romanitas neste período do Império, feliz no tempo demorado e solitário da fruição cultural e doméstica, possuidor de um forte sentido cívico do dever, vê-se compelido a assumir o poder isoladamente numa situação de crise.

    O isolamento de Lucio Valerio Quincio no lugar do poder, em Tarcisis — cidade romana ficcional, localizada na província da Lusitânia, não longe de Liberalitas Iulia (Ebora — Évora),  é consequência da desresponsabilização dos seus pares, do desinteresse generalizado pelo bem público, do exacerbar de paixões e emoções anuladoras da consciência cívica por parte da população da cidade, do populismo, quiçá do medo.

    Assim, o duúnviro, então reduzido à situação de uniúnviro (se tal palavra existisse), é o homem no centro da perturbação — íntima e exterior — que é preciso gerir e pacificar: esta, a matéria de que se alimenta a narrativa; deste homem, o olhar, o sentir e o pensar que a conformam.

   Tarcisis vive uma situação de crise. Urbanisticamente, as ruas, as edificações, a muralha, destratadas por um poder alheado da realidade e distraído dos seus deveres, encontram-se degradadas e ameaçam o conforto e a segurança  da população. Culturalmente, a ausência de alimento intelectual, figurada na biblioteca vazia de livros, no teatro inacabado e abandonado, na taberna cheia de gente exaltada, é terreno fértil para o florescimento de paixões primárias. Politicamente, os interesses pessoais sobrepõem-se ao sentido de estado e deixam a coisa pública à mercê da corrupção e do populismo. Historicamente, cruzam-se movimentos destruidores da pureza da romanitas: lavra e difunde-se a nova seita religiosa, o cristianismo incipiente, assente em princípios antagónicos dos valores romanos, que vai corroendo os alicerces ideológicos e morais do Império; o Império apresenta sintomas de decadência; os bárbaros, vindos do «lado errado do Mare Nostrum», almejam a ocupação do território romanizado.

    Esta situação complexa, exigente de decisões difíceis, embate vigorosamente no homem no poder: Lucio Valerio Quincius.

    Ele e a sua moderação estoica; ele e o seu relativismo religioso — e mesmo descrença — frente ao panteão romano; ele e o seu ceticismo — e mesmo desgosto — perante instituições como os jogos circenses e outras práticas e costumes afins; ele e a sua distanciação da populaça ávida de benesses e distrações; vê-se no lugar de quem, frente a investidas internas e externas, tem de assegurar a coesão da cidade, fundada nas suas crenças, nas suas instituições, nos seus costumes. Assim, paralelamente ao desenvolvimento de pragmáticas soluções para os problemas concretos, cresce, no íntimo do duúnviro, o confronto entre as convicções do homem e as exigências da sua circunstância, desencadeando, sobretudo, uma reação de estranheza e de busca de compreensão dos acontecimentos. Ele é o detentor de um discurso — político-filosófico mas também amoroso — de estranhamento e incompreensão de factos ameaçadores e invasivos. Ele é o sujeito da representação da experiência da alteridade.

     Porque quererá uma mulher pertencente à primeira plana da sociedade romana fraternizar com escravos e criminosos? Porque quererá tal mulher recusar a liberdade em prol da promiscuidade com os prisioneiros nos ergástulos? Porque haverá um deus tal que, passeando pelo seu jardim, se contenta com o conforto da brisa da tarde? Porque se demitem os decênviros, o edil, o senador, os poderes enfim, das obrigações próprias do seu estatuto e se entregam à desresponsabilização e à mera fruição dos gozos da vida? Porque vem, das suas longínquas terras, gente mal armada, mal fornecida, perturbar a paz de Tarcisis? Porque, tendo cumprido os seus deveres embora, é ele próprio objeto de traição? Porque o perturba emocionalmente Iúnia, a ele que vive na tranquila, feliz e indestrutível afeição de Mara?

    Subjetivamente, Lúcio interroga-se enquanto,  objetivamente, faz o que tem a fazer: reconstrói a muralha, arma a cidade, exerce a justiça. Tarcisis salva-se. E Tarcisis perde-se. Perde-se no populismo e no retrocesso cultural e civilizacional. A ele, resta-lhe aceitar o veredicto do exílio na sua villa, a tranquilidade do otium em que, seguindo o mos maiorum,  escreverá, pela pena de Mário de Carvalho, a narrativa memorial dos acontecimentos, para nosso prazer e proveito, leitores que somos de um extraordinário romance publicado em 1994.

    Em Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, História e Literatura confluem numa ficção histórica pós-moderna que transcende a representação rigorosa do passado. Ela promove a revisão e atualização desse passado ao equacionar dicotomias significativas, hoje como ontem: o paganismo greco-romano vs. o cristianismo; a tragicidade vs. o estoicismo; o indivíduo vs. a coletividade; o homem vs. a ordem; a lei vs. a natureza; a civilização vs. a barbárie. Ela expõe uma série de padrões políticos, religiosos, filosóficos e sociais ainda hoje no centro do debate de ideias.

 

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por Maria Almira Soares às 16:54

Quarta-feira, 15.11.23

BARRANCO DE CEGOS

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Barranco de Cegos, «Entre a fábula e a realidade...»[1]

      O romance de Redol é um grande romance e, tal como todos os grandes romances universais, constitui-se em várias dimensões. A dimensão da História, a dimensão do fantástico e do simbólico, a dimensão psicológica, a dimensão das ideias, a dimensão dos humanos sentimentos e emoções, a dimensão romanesca tout court.

     Na dimensão romanesca, a linha da intriga sentimental glosa emblemáticos amores de perdição e é próxima, talvez, de um caso real passado com Carlos Relvas, um latifundiário da Golegã, que, em razão do caso de amor entre a sua filha e um criado agrícola, obteve a atribuição de loucura à filha e fez com que o criado fosse capado e emparedado. Carlos Relvas, esse que foi nem mais nem menos do que o pai do homem que proclamou a República da varanda da Câmara Municipal de Lisboa a 5 de Outubro de 1910, ou seja, José Relvas.

    Na dimensão dos humanos sentimentos e emoções, o romance é feito de personagens, a um tempo representativas e singulares, que se nos impõem pela sua complexidade e no seio das quais se erige essa de Diogo Relvas feita de humanidade e desumanidade. Onde reside a humanidade de Diogo Relvas? Onde sempre reside o que de humanidade possa restar a quem é capaz dos comportamentos mais desumanos: no sofrimento, nas lágrimas. Diogo Relvas chora, impotente contra a massa humana de que, apesar de tudo, é feito. Mas onde reside a desumanidade desse seu ato profundamente humano, o choro? Na ocultação, a todo o custo, da sua fraqueza sentimental. Aos seus olhos, isso representa o grande desastre de ser um fraco. Diogo Relvas ostenta os emblemas da sua indestrutibilidade, do seu poder instilador do medo:

«Ou n-não?», o corte intimidatório de qualquer hipótese de réplica, oratoriamente mais forte do que a pura afirmação formal, o discurso autoritário.

— a Torre dos Quatro Ventos, símbolo da inviolabilidade, do isolacionismo, do secretismo, da mitificação.

— as barbas, a figuração decalcada de atávicas imagens impregnadas no imaginário popular como figuras de poder mágico.

    Diogo Relvas encarna e defende a moral da posse de que nunca abrirá mão: a posse da terra, a posse da razão de sangue, a posse do castigo, a posse da vida, a posse da morte, a posse da dor, a posse da vingança, a posse da dignidade, a posse de deus. Em nome desta moral, rouba a terra, os laços familiares, a justiça, a vida, o sofrimento, a ideia de deus, em proveito de uma ideia de si. Mas, se duas palavras genuínas e livres derrubam o que, até aí, nada derrubara, onde reside, então, a força e a segurança de Diogo Relvas? Na assunção de uma espécie de transcendência de si próprio irradiada da atávica veneração dos despossuídos da terra e do poder. As palavras do caiador derrubam essa transcendência e reduzem Diogo Relvas à igualdade na fileira dos humanos.   

      Na dimensão das ideias, o romance desenterra as camadas de opressão, de violência, de cobardia, que são o estrume do orgulhoso diverbo «Lavoira Ribatejana». Denuncia a discricionariedade interesseira, o cinismo, o filisteísmo. Denuncia a ruralista prédica salazarenta e a sua interesseira base de apoio. A voz narrativa veicula sarcástica e exprobratoriamente as raízes da violência autoritária e exibe o poder destrutivo do ridículo e da gargalhada. Expõe o medo atávico criador de mitos, correlativo da fuga cobarde à confrontação leal. Este romance representa, levado até às últimas consequências, um Portugal marialva que existiu, teve força, foi utopia e mito, e talvez alma, sabedoriaindiscutida, impositiva, incontestável, primarismo sanguinário, expoente de um chamado ‘portuguesismo’. Este romance dá-nos a ver uma forma de habituação persistente no engano, criadora de lendas, de mitos, de fantasmas, substitutos da verdade: a eternização de Diogo Relvas na Torre dos Quatro Ventos. Põe-nos perante o efeito deletério da destruição das coordenadas históricas, gerador da submissão, da eternização  da tirania. Diz-nos que, ao apagamento ou manipulação da História, responde a indiferença do Tempo, metaforizado e concretizado no caruncho que «roía, roía, impiedoso e malandrete» como único, e pobre, recurso de mudança, última reserva de esperança. Este romance dialoga com reencarnações futuras das histórias que nos conta. Na sua viagem ao passado, este romance de Redol é, no seu tempo presente, a denúncia certeira da ideologia salazarista, aquela, para a qual, «só a pobreza acomodada abre as portas do Paraíso». A projeção da linha de separação morte/vida de Diogo Relvas para o domínio do fantástico e correlativa incredulidade/crença por parte do povo é a garantia de uma permanência, de um sarro persistente que há de reencarnar em figuras futuras. É sinal de uma suicidária identificação entre a verdade e a mentira. Mas é também aviso, denúncia.

      Na dimensão psicológica deste romance, o caso Relvas ganha contornos do foro psiquicopatológico, quando a embriaguez do excesso de poder toma a totalidade do homem e gera reações psicóticas. Este é, também, um romance sobre a psicopatia do excesso de poder.

     Na dimensão do fantástico e do simbólico, a incursão no fantástico-burlesco do desenlace do romance desacredita e desconstrói Diogo Relvas, o espantalho da mentira erigido sobre o ódio e sobre o medo, ao mergulhá-lo numa ironia feroz, desrespeitosa, até, da sua morte.

     Na dimensão histórica, o romance representa a conjuntura dos fins do século XIX/inícios do século XX, particularmente o conflito entre a especulação financeira ligada aos caminhos de ferro e a lavoura; o conflito entre a ideia fontista de progresso e o securitário conservadorismo rural; as consequências, em desastre financeiro, da chamada salamancada; a reação agrária ao surto de desenvolvimento industrial representado, nomeadamente, pela compra e aluguer de terrenos em Alhandra, no concelho de Vila Franca de Xira, no princípio da década de 1890, para produção de cimento em Portugal e a construção da respetiva fábrica dada como concluída em 1894. As histórias narradas enraízam-se num dado contexto histórico, mas a fibra com que se tecem, a natureza humana de quem as vive é atemporal.

 

     O romance de Redol é um grande romance e, por ser essa grande obra literária, gera um múltiplo diálogo com outras obras literárias.

   Dialoga com Os Maias: a sua figura axial, Diogo Relvas, é o antónimo perfeito de Afonso da Maia: nas ideias, no comportamento cívico e familiar e, sobretudo, na representação literária da morte, trágica no Maia, burlesca no Relvas.

   Dialoga com a Mensagem: «Ó Portugal, hoje és nevoeiro», o último poema do livro de Pessoa; «uma espécie de nevoeiro começou a cerrar-se à volta dos limites de Aldebarã», no último parágrafo do livro de Redol — o nevoeirocomo símbolo da de-substanciação, da perda de sentido.

    Dialoga com O Delfim de José Cardoso Pires: o tempo da teimosa persistência num estado de coisas atavicamente inimigo do progresso contra todos os inevitáveis efeitos da profunda crise do início do século XX representado no romance de Redol é o germe do tempo salazarista no romance de Cardoso Pires; a premonitória relação quiasmática de um poder-fantoche que todos julgam vivo e só ele, na continuidade no neto, se sabe morto (Diogo Relvas) com um poder-fantoche que todos sabem já morto e só ele se julga vivo (Salazar).

    Dialoga com O Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago através da identidade semântica da simbologia destrutiva utilizada por ambos (a cegueira) — pese embora a diferença de escala — cuja aproximação máxima se dá através da cor branca: «... naquela poeira fina e branca. Tão branca e tão fina que uma espécie de nevoeiro começou a cerrar-se à volta dos limites de Aldebarã envolvendo-a com o manto espesso de uma noite estranha e alva» (Barranco de Cegos); «O cego ergueu as mãos diante dos olhos, moveu-as, Nada, é como se estivesse no meio de um nevoeiro [...] Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra, Pois eu vejo tudo branco [...] parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidémico de cegueira, provisoriamente designado por mal branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio» (Ensaio sobre a Cegueira).

    Dialoga com o «Poema das Almas Jovens Censuradas» de Natália Correia induzindo-nos a tomar o romance de Redol como um outro modo, narrativo, de dizer o roubo da verdade que o poema de Natália também diz em estrofes como esta: «Penteiam-nos os crânios ermos/Com as cabeleiras dos avós/Para jamais nos parecermos/Connosco quando estamos sós.»

 

    Barranco de Cegos é, em certa medida, um romance formalmente tradicional, mas há, na sua textualidade, um tom de meditação, de narrativa edificadora a partir de factos e de frutos de uma crença. Assim, logo ao abrir, por uma nomeação depois tripartidamente sequencializada — O LIVRO DAS HORAS PLENAS; O LIVRO DAS HORAS AMARGAS; O LIVRO DAS HORAS ABSURDAS —  ficamos cientes da natureza do que vamos ler, da morada do que verdadeiramente interessa: o carácter sagrado do humano, da vida dos homens e das mulheres. Se é livro de horas, a sua leitura será reza? A quê? Ao poder redentor da Literatura?

 

 

 

[1]Alves Redol na irónica «Breve Nota de Culpa» que antecede o romance.

 

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por Maria Almira Soares às 16:03

Quinta-feira, 21.09.23

A SELVA DE FERREIRA DE CASTRO

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      «Madrugada ainda escura, tomávamos, eu e o sr. Esteves, o comboio do Vale do Vouga...» E lá ia um rapazinho tímido e concentrado que, pouco havia, tinha batido chancas nos caminhos até à escola onde concluiu a instrução primária. Vinha do minúsculo povoado de Salgueiros, no vale do Caima, freguesia de Ossela, Oliveira de Azeméis. Era pobre. Tinha lido os textos escolares e folhetos em verso em que se contavam dramas absurdos, vendidos pelas feiras. E um livro: Do Algarve ao Minho em Automóvel de Eduardo Noronha, prémio recebido pelo exame feito. Ia a caminho do porto de Leixões, onde o velho vapor Jerôme o levaria a Belém do Pará, a caminho do seringal Paraíso no rio Madeira, Amazónia. Ainda não tinha treze anos. Chamava-se José Maria Ferreira de Castro.

    Eis a raiz mais profunda de um extraordinário romancista e de um extraordinário romance: A Selva.

   Ferreira de Castro nunca escreveu um verso. A sua prosa é, a um tempo, poderosa e flexível. Sólida, sem fissura, consistente, apropria-se da mais funda humanidade e da terra mais insubmissa e vai-a modelando. Forja de uma obra literária que se impôs, rompeu fronteiras, chegando A Selva a ser anunciada pela UNESCO como um dos livros mais traduzido e mais lido em todo o mundo. A Selva, látego sobre «los empresários de la miséria», no dizer de um jornal espanhol da época. Convocando outras artes e outros artistas. Objeto de belíssimas edições ilustradas. Por Cândido Portinari, o pintor dos retirantes das grandes secas do Ceará a caminho do inferno da floresta amazónica. Pelo traço modernista de Júlio Pomar. Tinha trinta anos quando a escreveu. Tinha doze anos quando a viveu.

   A Selva de Ferreira de Castro não é apenas o espanto do indecifrável vegetal; é a difícil humanidade virgem do assalto de emoções e comportamentos brotando a cada embate em experiências  insuspeitadas. A frágil natureza humana, «o bicho da terra vil e tão pequeno» posto à prova em meio de uma desumanidade sem limites.

  É um ‘objeto’ literário que convoca outros ‘objetos’ literários numa cadeia de fraternidade entre obras que vão ao fundo do sofrimento e da redenção: Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto (Auto de Natal pernambucano); As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano — eis dois exemplos de textos em que a escrita mergulha na inominável injustiça do humano sangue desprezado, explorado.

  A Selva, romance de mil e uma camadas de sentido:

— O paradoxo da natureza.

     Sobrevivemos à sua indiferença e inclemência, modificando-a; mas, modificando-a, criamos novas ameaças. Uma espiral viciosa?

— A múltipla mundividência.

    Uma orquídea comprada numa florista no Chiado, em Lisboa, não é uma orquídea colhida na selva enquanto a canoa desliza sobre a água escura de um igarapé.

  O abismo entre a livre natureza e a sofisticação civilizacional. Já não existe? A ‘globalização’ tudo terraplenou ou está em vias de terraplenar? A que preço?

— A densidade dificilmente inextricável dos comportamentos humanos.

A brutalidade, a ganância, a violência, a ferocidade, a crueldade, o medo, a fragilidade, a submissão, a compaixão, a fraternidade.

— O recontro entre o ser selvagem e o ser civilizado.

    Retrocesso civilizacional?

    Relação cultural índio/colono?

    Questão da posse da terra?

    Questão racial?

    Exploração de expatriados desprovidos de meios de sobrevivência?

   

    Uma gama de sentidos para os quais a suma arte de narrar do autor vai evidenciando caminhos que aliciam o leitor em constante superação de uma curiosidade por outra curiosidade, de uma expectativa por outra expectativa, como quem sobe as cachoeiras do rio Madeira, como quem, por interposta literatura, sofre o cruel batismo da selva.

    Ferreira de Castro não desenvolve o seu romance nos limites da projeção de uma experiência pessoal. Rejeita a tentação de fazer do romance uma mera e tremenda peça de exotismo natural e cultural (em que o romance não deixa, porém, de ser exímio); mergulha mais fundo no complexo humano que se redime pela inexorável vocação da LIBERDADE que o fogo simbolicamente representa.

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por Maria Almira Soares às 11:33

Sexta-feira, 14.07.23

JÚLIO DINIS, NEM ROMÂNTICO NEM REALISTA

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    O olhar que periodiza a produção literária estabelece e atribui lugares e denominações fundamentados numa lógica de afinidades/distinções. A missão desse olhar traduz-se por reconhecer diferenciações que instituem movimentos de mudança e de prosseguimento histórico e por identificar afinidades que estabelecem, definindo-o e preenchendo-o, o perímetro dos momentos, das épocas, dos períodos, cuja sucessão constitui esse prosseguimento histórico. O seu privilégio de olhar panorâmico ou, se quisermos, a sua possessão de todas os elementos do puzzle, leva a uma falaz estratégia organizativa que se cumpre no encaixe de todas as peças disponíveis, sem prejudicar a inteireza de um eixo compreensivo de uma visão global da história da literatura. Assim, vai repetindo, em sucessividade, os precursores, os representativos, os epígonos/os precursores, os representativos, os epígonos... Às vezes, sobram-lhe dúvidas acerca do encaixe de peças menos óbvias. Esses casos, mais difíceis de integrar na rede definida, acabam por tornar necessário um afã analítico criador de situações contemporizadoras com a coexistência de marcas que, na ausência de tal necessidade, seriam consideradas mutuamente excludentes. Trata-se, de um modo geral, de peças cujo perfil e tom próprios apresentam um carácter marcadamente distintivo, dificultador da identificação de pontos de contacto com outras peças do puzzle. Todavia, sob a necessidade de se lhes arranjar uma posição — pois que não é admissível descartar da História, ou da ideia organizadora da História, o que quer que seja e muito menos obras significativas no processo sociológico da valoração literária — procuram-se e, numa segunda escolha naturalmente menos exigente, tomam-se como bons alguns sinais de contiguidade. É, então, que, as mais das vezes, se dá, a esses autores, difíceis de periodizar, o apelido de autores de transição. Ou seja: atribuem-se-lhes as simultâneas funções de prestimosos transportadores, ainda, do que foi a glória e o brilho daqueles que a cronologia tornou implacavelmente anteriores, e de inevitáveis habitantes temporões de uma posterioridade, onde outros, mais atrasados no nascimento, hão de vir plantar-se com um brilho e uma glória diferentes. Ora, entre um brilho e uma glória do passado e um brilho e uma glória do futuro, como não nos hão de aparecer sofrendo de alguma palidez, esses a cuja historicidade o adaptativo e pouco exigente conceito de transição dá cobertura? A verdade é que, com mais simplismo ou com menos simplismo, a missão dos organizadores da história literária ficará assim cumprida e todo o tempo ficará assim ladrilhado.

   Com esta designação de autores de transição — classificação artificial, pois, no rio do tempo, não há salas de espera em que as águas passadas entrem em conversações com as águas futuras antes de continuarem o seu caminho; no rio do tempo, seja qual for o perfil dos que nele navegam, tudo é transição — com essa designação, dizia, evita-se a turbulência que a verdade literária desses autores provocaria na verdade literária estabelecida como estando a decorrer ao momento da sua entrada no tempo. Evita-se a falência dessa estratégia ladrilhadora.

    Porventura algum olhar mais agudo vislumbra, na generosa cobertura dada à singularidade de certos autores pelo conceito de transição, atrito e vazio em vez de coerência?! Porventura algum olhar menos contemporizador, mais irritantemente implicativo, mais parecido com o da criança do conto de Anderson que se não deixou induzir pela voz comum, resolve fixar demorada e atentamente a árvore e vê que ela, a árvore, é espécime raro, irreconciliável com a berma das florestas onde a querem ver plantada?! Mas, sim, claro, pode até ser, mas, vá lá, olhem que há ganho organizativo no desfocar o olhar dessa possível singularidade, afundando-a complacentemente sob o imperioso fluir de igualdades que se vão naturalmente desentranhando em diferenças, contrapõem os periodologistas. Vá lá, não se deixem atrair por fúteis rigores na aplicação do argumento da pertença; vá lá, deixem-se levar pelo prestável argumento da transitoriedade e vede-os, a esses autores, como lugares em que nada está, tudo transita — dizem ou pensam os ladrilhadores da História.

   Pode, porém, acontecer que esse olhar — um olhar estudioso — não se deixe convencer. Insista. Demonstre que, nas palavras usadas para a construção da ideia de autor-transitário-de-correntes literárias, é muito precária a correspondência com os pretensos conceitos. Verifique tratar-se de mero nominalismo. Pode acontecer que — perante o contra-argumento de que, precisamente, o termo transição implica diluição do rigor concetual e de que a solução aplicada tem a vantagem de resolver o magno problema da periodização desses autores — esse olhar implacavelmente estudioso denuncie o consequente e inaceitável prejuízo assim infligido à valoração da obra dos autores classificados como de transição.

     A palavra transição é, de imediato, conotada com a ideia disfórica de transitório, que faz, desses autores, entes literários fugazes, uma espécie de intermediários descartáveis, com fraca — ou se quisermos, leve — personalidade própria, quando, ironicamente, é de escritores com uma individualidade fortemente distintiva que se trata. E mais se acentua ainda este efeito, quando a sua duração biográfica é, ela própria, fugaz; quando, por isso mesmo, esses autores ficam impedidos de darem desenvolvimento a uma produção literária tão rica quanto a obra produzida garante como esperável. Eis a grande ironia: autores que poderiam ter fornecido outro caminho interpretativo do devir instituído (quase sempre por dicotomia), que poderiam representar, digamos, uma terceira via, acabam soterrados sob o império da rotulagem histórico-literária estabelecida.

    Aí pelos meados do século XIX, a periodização da história da literatura portuguesa procura criar um tempo em que ainda reverberaria o etéreo idealismo do havido Romantismo e se cavaria já o plantio do Realismo a haver. Transição, pois. Perante uma obra literária desse tempo em que se vislumbre uma qualquer idealização do real, essa periodização não hesita em identificar tal idealização com o conceito de idealismo romântico; perante a presença, nessa mesma obra, do gosto pelo pormenor descritivo de situações realmente observáveis, não hesita em identificar tal gosto com o conceito de realismo que há de vir a ser o eciano. E, assim, em obras publicadas nessa época, avessas a um encaixe perfeito em qualquer um desses dois movimentos, se reconhece a copresença do pretérito romantismo e do futuro realismo passando, et pour cause, a classificar os seus autores como autores de transição.

     Eis o que se passa com Júlio Dinis.

     Júlio Dinis, autor de transição entre Romantismo e Realismo?!

     A questão é que há aqui um grande problema ou vários grandes problemas.

     Um dos problemas é que não é legítimo referir ao idealismo romântico toda e qualquer perspetiva literária idealizadora dos factos da vida. Por exemplo, aquela em que, de um modo bastante fantasista, se crê no êxito da motivação amorosa e na aniquilação do conflito — esse conflito entre a razão do coração e a moral social, que era irredutível e mortal no Romantismo — através da fácil eficácia de gestos de concertação financeira e social, frios, lógicos, diplomáticos, contabilísticos até. Como acontece em Uma Família Inglesa. Por exemplo, aquela em que, num irrealista estalar de dedos, esse tal conflito entre sentimento e conveniência social, que era mortal no Romantismo, se evapora numa girândola de harmonia, de felicidade, de progresso, de promessa, posta em figura de casamento-final-feliz. Como acontece na generalidade dos romances de Júlio Dinis.

    Que há, em Júlio Dinis, idealização da realidade, há. Incontestavelmente. O que não há, absolutamente, é idealismo romântico. O idealismo romântico é irreconciliável, por exemplo, com as manobras de índole social e financeira que a personagem de Jenny tão brilhantemente idealiza e tão espantosamente concretiza para transformar o amor de Carlos e Cecília em casamento e, simultaneamente, conseguir as boas graças, a aceitação, mesmo o aplauso da sociedade.

    Trata-se de uma idealização otimista que, com o grau total da rápida eficácia do seu afã anulador dos obstáculos no caminho dos que se amam, chega a ferir ritmos de verosimilhança.

     Não se trata, do romântico idealismo trágico que embate mortalmente na barreira cerrada dos preconceitos e conveniências sociais.

     Não há, em Júlio Dinis, o carácter radical da moral romântica, do herói romântico, que prefere a morte a qualquer condescendência à moral social. Nas soluções das intrigas romanescas dinisianas, nos desfechos dos seus conflitos, contrariamente ao que os advogados da transição aduzem, não há Romantismo.

    Outro problema é que não é legítimo afiliar no positivismo realista nem todo e qualquer apego ao descritivismo minucioso de espaços reais nem, só por si, a presença de perfecionismo na construção ficcional de personagens típicas com correspondência na realidade. Por exemplo, o descritivismo de quadros rurais e a composição verista de figuras típicas observáveis no real, existentes em romances de Júlio Dinis, não assentam em traves-mestras do ideário da escola realista.

     Em Júlio Dinis, o gosto/necessidade de idealizar e o talento para descrever e representar comportamentos observáveis na vida têm origem — muito própria, refletida — em convicções e projetos pessoais. Júlio Dinis não é um território literário constituído pela soma de restos de romantismos passados e de indícios de realismos futuros. Aliás, como pode um autor ser, ao mesmo tempo, romântico e realista?! Os movimentos literários não são meras somas de características temático/formais escolhidas por tabela e transportáveis a mobilar qualquer contexto. Uma corrente literária radica num pensamento estético, filosófico, numa mundividência, numa condição histórica. E não sabemos nós como se digladiaram a mundividência romântica e a mundividência realista lá pelos anos em que Júlio Dinis era um jovem e bem-sucedido escritor de romances?! Não parece um absurdo considerar que Júlio Dinis era possuidor simultâneo dessas duas mundividências!? Ademais, como poderia ser a produção ficcional de Júlio Dinis, esse amante declarado da harmonia, fruto de duas correntes literárias que se antagonizavam e se excluíam? Ou será que estamos — vilmente ou levianamente — a subsumir que Júlio Dinis é criador de uma mixórdia inconsequente!? Só porque não nos aplicamos a encontrar, para as singularidades dinisianas, outras razões e nos contentamos apressadamente com a sua suposta colagem a duas vizinhanças, a romântica e a realista?!

       Não. Júlio Dinis não é nem romântico nem realista.  

       Júlio Dinis foi, por si só, não digo uma escola, porque não teve tempo para ter seguidores, mas um caso. O seu pensamento estético e os seus modos de realização literária constituem um caso singular nos anos sessenta e início dos anos setenta do século XIX. Que a ser considerado deste modo, e estudado enquanto tal, enriquecerá o devir da nossa literatura e fará justiça à sua obra.

       Conhecer Júlio Dinis e o que escreveu e o que pensou sobre o que escreveu e o como reagiu ao que outros seus contemporâneos estavam escrevendo é saber que não temos aí o excesso sentimental, o sonho, a loucura dos românticos, nem a obsessão de confrontar criticamente os erros da sociedade com a sua irrisão, caricatural e destrutiva, dos realistas. Se há coisa que Júlio Dinis não é, é um radical como são, cada um à sua maneira, o movimento romântico e o movimento realista. Cada um inserido em momentos críticos do devir sociocultural. Júlio Dinis amava a moderação, a contenção, a harmonia. Nas suas obras não se transpõe a linha para lá da qual toda a sua pedagogia, alicerçada na crença no bem como porta da felicidade, seria ineficaz.

    Para conhecer um escritor, nada como lê-lo.

    Vejamos comparativamente, em quatro narrativas diferentes, o tratamento de um momento típico das intrigas romanescas do século XIX, ou seja, o do momento crítico em que o herói reage perante um contexto que anuncia como impossível a sua paixão amorosa. Talvez, daqui, retiremos senão a convicção pelo menos a suspeita de que Júlio Dinis não é um mero patchworker pelo risco das paisagens literárias do seu tempo, mas representa um modo singular e inovador de fazer romances:

Em Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett (1846)

«Perdido para todos, e para ti também. Não me digas que não; tens generosidade para o dizer, mas não o digas. Tens generosidade para o pensar, mas não podes evitar do sentir. Eu estou perdido. E sem remédio, Joana, porque a minha natureza é incorrigível. Tenho energia de mais, tenho poderes de mais no coração. Estes excessos dele me mataram... e me matam!»

Em Os Maias de Eça de Queirós (1888)

«– E que efeito te fez isso?

Carlos acendia o charuto. Depois, atirando o fósforo por cima da varandinha de ferro, onde uma trepadeira se enlaçava:

– Um efeito de conclusão, de absoluto remate. É como se ela morresse, morrendo com ela todo o passado, e agora renascesse sob outra forma. Já́ não é Maria Eduarda. É Madame de Trelain, uma senhora francesa. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braças, findo para sempre, sem mesmo deixar memória.... Foi o efeito que me fez.»

Em Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco (1862):

«Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma afronta.»

Em Uma Família Inglesa de Júlio Dinis (1867)

— Vês, Charles, vês o resultado das tuas loucuras?

— Loucuras, Jenny! Pois ainda lhes chamas assim?

— Principio a ter vontade de lhe dar outro nome, principio; e é por isso que venho aqui.

— Que vens fazer?

— Advogar a causa de uma má cabeça, em atenção a um pobre coração, que não tem culpa nenhuma em andar unido àquela estouvada.

— Ó Jenny! — exclamou Carlos, tomando, cheio de confiança, as mãos da irmã.

— Então! Deixa-me, que o pai espera-me. E separando-se do irmão, disse a rir:

— Que difícil papel me fazem representar em toda esta história!

[...]

Jenny principiou a dizer, como se falasse para si própria, mas de maneira que fosse escutada por o pai.

[...] A aliança de Charles com a filha de Manuel Quintino, tendo por explicação somente o afeto dos dois, seria estranha e incompreensível; mas se Manuel Quintino, em vez de ser guarda-livros, fosse um sócio da casa.

[...]

— Meu pai — disse ele, adiantando-se para Mr. Whitestone —, não há́ muitos dias, que pela sua boca ouvi qualificada como infâmia uma ação minha; venho pedir-lhe agora que me deixe usar do único meio que tenho, para evitar que a arguição seja, até certo ponto, merecida.

— Qual é? — perguntou concisamente Mr. Richard.

— Procurar Manuel Quintino e pedir-lhe para oferecer o meu nome, honrado pelo meu pai com uma vida inteira de probidade, a essa menina, que as minhas imprudências, e nunca as minhas intenções, iam sacrificando.

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por Maria Almira Soares às 13:15

Quarta-feira, 12.07.23

AS TRÊS MORTES DE JÚLIO DINIS

       Numa aceção do literário que abarque — forçosamente segundo o meu entendimento — a dimensão da leitura, tripla foi a morte literária de Júlio Dinis. 

     O homem que, ainda teenager, escreveu «A causa disto é sermos nós uma nação pequena e pouco à moda, acanhada e bisonha nesta grande e luzida sociedade europeia, onde por obséquio somos admitidos, dando-nos já por muito lisonjeados quando os estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós.» morreu em doze de setembro de 1871, com trinta e um anos de idade, e essa foi a primeira morte do seu projeto literário.

   Da eclosão do Modernismo e das suas réplicas e consequências, poderemos datar, com menos exatidão é certo, a segunda morte do projeto literário de Júlio Dinis, então já sob a forma de um sucedâneo a que chamaremos dinisianismo, uma permanência que não era já senão um requentado gosto.

  Hoje, no nosso hoje, um hoje do século XXI em que escrevo, na enxurrada do desinteresse pela cultura literária, morre todos os dias a inclusão de Júlio Dinis no debate intelectual e esta é a sua terceira morte.

       A PRIMEIRA MORTE

            A biografia de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, de quem nunca saberemos a razão exata de ter trocado a demora destas quatro palavras oficialmente denominativas pela agilidade de dois nomes muito mais vocálicos e desprovidos de indicações de pertença familiar, essa biografia, dizemos, ficará sempre desfocada se não for contada à luz da pesada sombra de chumbo que sobre ela impendeu: a morte. Desde muito cedo acompanhado pela sombra ameaçadora da morte frequentativa do círculo familiar estreito, mãe e irmãos, Joaquim Guilherme fez toda a curta caminhada da sua vida em duelo com a doença invencível. Para uma síntese irredutível da sua biografia, chamaríamos aqui uma palavra: tuberculose. Ou phtysica pulmonar como era designada no seu tempo e como foi por ele referida na sua «Dissertação Inaugural para Acto Grande, Apresentada a Eschola Medico-Cirurgica do Porto», em 1861, tinha o escritor vinte e dois anos.

      Tudo o que é sabido da sua vida — vínculos familiares, formações, cultura, estudos, convívios, amizades, amores, situações profissionais, realizações pessoais, viagens, intervenções, sorrisos e melancolias — teve sempre presente um visitante, impositivo e indesejável, a doença. A nenhuma mesa decisória dos caminhos que Joaquim Guilherme desejava futuros, deixou de comparecer esse conviva deletério que entreabria ou fechava portas à sua íntima vontade de viver, de realizar. Só por leviandade ou esquecimento, pode ser imputada a falta de ousadia, o excesso de moderação, a alguém que como ele — desprovido de vocação suicida e munido da ciência da doença — teve a morte a guardar-lhe a porta da casa. E não falo apenas da casa habitada a que, perto do fim, acabou por referir-se como um «buraco onde me meta a esperar»; falo da casa da ação literária; falo da casa da escrita. Joaquim Guilherme, o tuberculoso, foi um fator decisivo na construção e na atribuição de possibilidades a um animum demiurgum, cultural e literário, distanciado de si pelo nome que para ele criou, Júlio Dinis, mas vinculado ao destino da pessoa que o poderia concretizar. Não obstante este inelutável e decisivo vínculo, na certidão de óbito da primeira morte literária de Júlio Dinis não poderemos alegar tuberculose, mas trágica contradição, mas paradoxo, como causa direta; nesse transe mortal do sempre doente Joaquim Guilherme Gomes Coelho, a saúde literária da obra de Júlio Dinis estava, como sempre esteve, intacta. Um romance, um dos seus excelentes romances, Os Fidalgos da Casa Mourisca, estava em revisão final para sequente publicação. Foi o último. Qualquer expectativa de uma próxima obra, que a partir da leitura deste romance pudéssemos ter, ficou gorada.

      A primeira morte do projeto literário de Júlio Dinis foi um efeito secundário do fim da vida de Joaquim Guilherme.

   Não se tratou de uma causa súbita, momentânea, inesperada. Foi uma causa prolongada, contínua, que se alongou pela sua curta vida como quem brinca diabolicamente com a esperança e o desalento de um Sísifo.

Revejamos:

«Aqui já me valeu simpatias gerais o ter dito, logo que cheguei, que do pouco que tinha visto da vila fizera dela um excelente conceito. Ora, tendo chegado de noite, eu não tinha visto coisa alguma.» Em Ovar, 11 de maio de 1863    

«Felizmente que já não tenho tido daquelas insónias insuportáveis que, entre vários incómodos que me afligiam, não eram dos menores. Será radical esta cura? Veremos.»

Em Ovar, 11 de maio de 1863

«E mais não sou eu daqueles que descreem no futuro. Tenho direitos a esperar dele um quinhão de felicidade que o passado me negou. [...] eu sei que há entes tão malfadados que desta vida só chegam a conhecer as lágrimas [...] É por isso que não desanimo e diante do véu que me encobre o futuro, estou como o espectador aguardando [...] o meu passado foi pouco abundante em flores...» Em Ovar, 31 de maio de 1863

«... para completar a cura de uma doença, que hoje me vou quase convencendo ter sido mais de imaginação do que real [...] acham-me mais gordo e mais trigueiro...» Em Ovar, 3 de junho de 1863

«Como me acho restabelecido, demorar-me-ei aqui...» Em Ovar, 12 de junho de 1863

«... desde que principiei a sentir que robustecia em Ovar, fui adiando a minha partida, intimidado pelas descrições tétricas que os facultativos daqui me faziam de Aveiro [...] Por pouco me ia constipando, por ter caído na patetice de esperar pelo fogo preso...» Em Ovar, 3 de julho de 1863

«Um impertinente defluxo, acompanhado de um aparatoso cortejo de sintomas febris, quase me impossibilitou até hoje de escrever aos amigos...» Em Ovar, 4 de agosto de 1863

«Ontem no S. Lázaro estive para dar espetáculo caindo ao chão com um delíquio. Valeu-me entrar numa loja de carpinteiro e sentar-me.» Sem lugar, mas Porto, sem mês, 1864

«Abri de par em par as janelas a um sol. Desmaiado que me anuncia o inverno [...] horrível, vendo chover a cântaros na manhã de ontem, e imensas nuvens cor de chumbo a amontoarem-se sobre a minha cabeça [...] Cheguei a Aveiro um pouco dominado pela apreensão de que talvez viesse ser infecionado pelos eflúvios pantanosos da terra...» Aveiro, 28 de setembro de 1864

«De dia estou por casa e frequentes vezes divirto-me a recordar [...] outras recordações, embora mais recentes, que me ficaram de Aveiro, da sua ria, do seu mexilhão, dos seus ovos moles e sobretudo das suas belas trigueiras. [...] em Aveiro há trigueiras como em parte nenhuma.» No Porto, em 27 de outubro de 1864

«Ainda não venci esta irresolução que me é natural e em virtude da qual me conservo em casa apesar de me levantar às 7 horas.» Em Felgueiras, 9 de julho de 1865

«... foi um momento dos poucos felizes na minha vida aquele em que obtive a certeza de que estava despachado...» Em Felgueiras, 16 de agosto de 1865

«Intimidou-me o aspeto da noite. Resolvi evitar-lhe os afagos. [...] Não tive mais nenhum incómodo, além dos da imaginação, a qual, como eu conjeturava, lidou toda a noite.» No Porto, 10 de outubro de 1866

«Conquanto me não possa dizer pior, julgo prudente atendendo à persistência da febre e a certo mal-estar indefinível, principiar a usar o óleo de fígado de bacalhau...» Dias depois, em 1866

«Parece-me que não te disse que vou melhor. Não tenho tempo de verificar e por isso digo aqui.» No Funchal, 18 de abril de 1868

«Eram tenções minhas ir ver-te ontem, quer o tempo permitisse quer não, porque ia de cadeirinha, se não pudesse ir a pé. [...] Um ataque de hemoptise, maior do que os que tenho tido, obriga-me a estar em casa e na cama.» No Porto, 29 de novembro de 1868

«A minha tosse também continua.» No Porto, novembro de 1868

«Eu por aqui estou no estado habitual de espírito que podes imaginar, achando-me consideravelmente melhor na presença dos colegas e horas depois da visita deles, piorando, quando anoitece e pela madrugada, em que os diabos negros se apoderam de mim.» No Porto, 2 de dezembro de 1868

«Eu julgo que vou melhor, asseguram-me os colegas que se não fartam de clamar contra a minha imaginação como a moléstia principal de que padeço. Há verdade nisto, quero crê-lo, ainda que não no grau em que eles dizem.» No Porto, 16 de dezembro de 1868

«...por mais que me assegurem os colegas e amigos que vou melhor, ainda não pude acreditar firmemente que possa voltar para mim a vida de outros tempos [...] Tem-me causado impressão esse abandono de amigos em que me vejo. Sou visitado por muitos médicos, mas uma fatalidade fez com que não pudesse ver a meu lado os rapazes com quem convivia.» No Porto, 20 de dezembro de 1868

«A chuva e o frio de hoje não me deixaram sair. [...] Até quando durarão estas nossas provações?» Sem data

«O nevoeiro desta manhã obrigou-me a sair de casa só ao meio-dia, hora do conselho de Escola. Ainda assim era tal o frio que ia nas ruas, que eu, que passara um pouco melhor de noite, senti que se agravara algum tanto a tosse, concorrendo para o mesmo fim o Conselho.» Sem data

«Passo mais outro dia inteiro em casa e, não sei se por influência desta vida de reclusão, e de quase absoluta separação em que estou da humanidade, têm-se-me exacerbado os meus humores negros e estou, pelo menos moralmente, algum tanto pior. [...] Vou vivendo nisto, até que uma causa maior me obrigue a tomar partido.» Sem data

«Os colegas prometem-me o desaparecimento dos poucos sintomas que ainda me restam, se for passar os meses de inverno nas proximidades de Lisboa. [...] Por isso sorri-me a ideia de viver algum tempo fora deste berço de muralhas e, logo que possa, parto.» No Porto, 5 de janeiro de 1869

«Não sei se estou melhor; julgo que, por enquanto, pouca diferença faz o meu estado físico do que era aí. [...] Sinto menos apreensões ordinariamente [...] ainda não passeei, porque nestes dias de Carnaval era perigoso o passeio em Lisboa.» Em Lisboa, 10 de fevereiro de 1869

«[Camilo] sentiu do coração que a minha doença me não deixasse escrever. [...] As minhas melhoras não são grandes [...] não me satisfazem ainda os meus canais brônquicos. [...] Adeus, não prolongo mais esta carta porque não posso escrever muito ou porque receio fazê-lo.» Em Lisboa, 18 de fevereiro de 1869

«Isto não é motivado por agravação de incómodo; pelo contrário, acho-me melhor e o dr. May Figueira, que me examinou, foi em tudo de acordo com os colegas daí. [...] e eu entrava no Porto a tossir, coisa que me seria muito desagradável.» Em Lisboa, 29 de fevereiro de 1869

«Como, bebo e, se ainda não estou livre da tosse, sinto-me mais forte e bem-disposto. Nos dois meses que tenho ainda para me demorar aqui, espero restabelecer-me.» No Funchal, 19 de março de 1869

«Remeto-te a minha vera efígie, tisnada pelo sol de África. Por ela verás que a doença não me transfigurou demasiadamente o físico [...] Mas não é fácil a um doente passear no campo [...] Apesar de tudo, eu devo ser grato a este clima que se me não curou de todo, deu-me mais vigor e mais resolução.» No Funchal, 5 de maio de 1869

«Volto melhor...» Em Lisboa, 23 de maio de 1869

«Eu também ao acordar fui mimoseado com um leve incómodo, para me não esquecer de que sou doente [...] Já me vou costumando às peripécias da minha doença; aceito-as como factos habituais.» Em Fânzeres, 24 de agosto de 1869

«A minha jornada feita debaixo de um calor insuportável, ainda que principiada sob um nevoeiro de cortar à faca, acabou por afinar o meu defluxo, que tomou as sérias proporções de uma constipação.» Em Lisboa, 14 de outubro de 1869

 

«...nesses dias de luto por que tantas vezes temos passado.» No Funchal, 19 de novembro de 1869

«Não passo mal, porém nunca livre de achaques. [...] não escrevo mais, não só porque estou cansado...» No Funchal, 19 de dezembro de 1869

«A augusta missão [professorado] oferece-me poucos atrativos, desde que a minha saúde não me permite entregar-me a ela como deve ser [...] E eu que farei? Que farei no verão? Que farei no inverno seguinte? Não sei; não posso saber, porque não conto já comigo e, portanto, não formulo projetos. Veremos. A falar verdade eu sou tão inimigo do frio que me há de custar a prescindir na época dele do benefício desta ilha, onde, devo dizer, apesar do inverno relativamente desfavorável que tem feito este ano, ainda não senti coisa que em Portugal merecesse o nome de frio.» No Funchal, 19 de janeiro de 1870

«... ainda não perdi de vista esse período de provação que, mais tarde ou mais cedo, sei que há de voltar para mim [...] aquela grande suscetibilidade que lhe dá a doença. [...] o certo é que me tenho sentido pior.» No Funchal, 20 de fevereiro de 1870

«... apanhei um tremendo defluxo que há uma semana me apoquenta deveras. Escrevo-te hoje constipado, malacafento.» No Funchal, 20 de março de 1870

«... desta ilha, onde pela segunda vez abordei, à procura do ideal que se chama saúde. [...]

As viagens, esse sonho doirado que tanto seduz a imaginação da mocidade, ansiosa como a ave prisioneira, por alargar horizontes e bater asas em demanda de climas novos, transformam-se em amarga proscrição, sempre que os empreendemos forçados por uma triste necessidade e partimos levando o espírito assombrado por uma ideia, ou antes, por um pressentimento doloroso. [...] Com o olhar que a experiência tem amestrado, estudam-vos no semblante as probabilidades de bom ou mau êxito na luta pertinaz da natureza contra o influxo fatal que vos subjuga. E esse prognóstico é quase sempre infalível» No Funchal, março de 1870

«...como faço com os gozos da vida, dos quais uso somente em meia força para não prejudicar a minha saúde [...] O que é pena é que estes prazeres tão puros e consoladores sejam amargurados pela doença, essa terrível perseguidora de nossa família...» No Funchal, em 19 de abril de 1870 

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«Portanto, em todo este longo periodo, apenas de quando em quando uma ou outra voz, como a de Alexandre de Tralles no século IV, se elevava para recommendar aos medicos a observação paciente e minuciosa e o estudo das estações, dos climas, e das mudanças atmosphericas, em suas relações com a saúde e a moléstia. Mas geralmente estas vozes não eram escutadas.»

«O outomno traz de novo as affecções catarrhaes, favorece o desenvolvimento de intermittentes rebeldes, e accelera consideravelmente a marcha fatal de algumas moléstias chronicas, sobretudo d'aquellas que tem sua manifestação somática nas vias respiratórias, como a phtysica pulmonar.»

«Nos climas frios temos as affecções catarrhaes, bronchites, anginas, pneumonias, rheumatismos articulares, blepharites, rhagadas das mãos e pés, congelações, escorbutos, affecções verminosas, rachitismo, escrophu-las, phtysica pulmonar &c. &c.»

«Porém, mesmo que assim não fosse, a meteorologia não devia ser despresada; base principal da topographia e geographia medica, ella será sempre para o clinico de um alcance incontestável. São as palavras do Snr. Boudin que lhe vão fazer sentir o valor: “Para o medico em particular, as applicações da geographia a cada momento lhe são necessarias, quer transportado longe de seu paiz elle se encontre a braços com novas doenças, quer estas últimas sejam importadas do exterior. Além d'isto a cada passo o prático mais modesto pôde ser consultado para formular uma opinião sobre a melhor localidade que deve aconselhar-se a um phtysico, a um escrophuloso &c. &c. N'uma tal conjuncture o clinico, estranho aos estudos da geographia medica, expõe-se a dirigir o doente n'um sentido contrario aos interesses da sua saúde, ou a fazer a triste confidencia de que apenas conhece a pathologia de campanário”»

   Este foi o Júlio Dinis possível, o da escrita e publicação e leitura de quatro romances: um necessariamente de primeiros passos na publicação (As Pupilas do Senhor Reitor); outro necessariamente de primeiros passos na escrita (Uma Família Inglesa); outro deixado ainda em revisão (Os Fidalgos da Casa Mourisca); e um sólido romance de juventude, rondava os trinta anos, (A Morgadinha dos Canaviais). Por esta idade, publicava Camilo novelas à Ponson du Terrail (Os Mistérios de Lisboa) e Amor de Perdição aos quase quarenta; Eça publicaria Os Maias depois dos quarenta. Ambos, Camilo e Eça, tiveram tempo de experimentação e de afirmação. Júlio Dinis não teve. Camilo teve vida atormentada, mas por génio e procura própria. Já Júlio Dinis era de condição temperamental e psicológica favorável à aplicação meticulosa ao trabalho da escrita e ao labor mental conducente ao apuramento da mesma. Falhava-lhe a condição física com repercussão na força anímica, não deixando ele, contudo, de se revelar um resistente até à última hora, apurando ainda Os Fidalgos... A morte saiu-lhe ao caminho cedo e a pena ficou suspensa, escurecendo todas as hipóteses que possamos formular sobre o que seria se tivesse demorado a ser.

 

A SEGUNDA MORTE

            Nas dores de crescimento da literatura portuguesa, Júlio Dinis nunca ocupou lugar nas cenas fundamentais dos necessários conflitos, nunca esteve na barricada. Nem por vocação própria nem por necessidade alheia. Como se não tivesse peso nem ocupasse espaço, esteve sempre arredado de polémicas e foi, de uma maneira geral, tratado — quando foi tratado — com preguiçosa superficialidade. Ramalho Ortigão bem tentou o confronto, mas falhou o passo e estatelou-se no vazio da invisibilidade dinisiana por trás da máscara feminina de Diana de Aveleda, desencorajadora da representação que da mulher fazia o denso burguesismo oitocentista da «ramalhal figura». Camilo Castelo Branco, sim, Camilo foi o único contemporâneo que genuinamente tomou Júlio Dinis a sério e, talvez, o único que compreendeu em profundidade o dinisianismo ao ponto de se sentir ameaçado.  Quando Eça de Queirós — por assim dizer desmotivado — lhe atribuiu a tríplice leveza na vida, na escrita e na morte, cansativamente papagueada depois, estava, isso sim, a transferir para Júlio Dinis a leveza com que o estava a tratar, arredando-o, através da sua frase de efeito, da seriedade da crítica. Ainda se ele fosse um Bulhão Pato! Mas não era.  

     Depois... Depois, no puro e não-miscível espírito da arte segundo o Modernismo, por exemplo, não haveria sequer um lugar de existência, ainda que puramente referencial, para algo a que, à maneira modernista, chamaremos o dinisianismo. O caeirismo é a sua inexistência. O poema VIII de O Guardador de Rebanhos é a inexistência de As Pupilas do Senhor Reitor. O Modernismo atesta definitivamente a impossibilidade de existência do dinisianismo enquanto criação literária; marca um tempo em que a ‘verdade’ poética, no sentido etimológico desta última palavra que não considera distinções poesia/prosa, é necessariamente outra. Nasce o Modernismo e qualquer Júlio Dinis scripturus está morto. Sim, é uma verdade lapalissiana essa de que os mortos não escrevem.  A não ser..., a não ser através daquela coisa a que Harold Bloom chamou a «angústia da influência» que sub-repticiamente os incorpora no próprio ato da sua negação. Júlio Dinis, no entanto, não vai a caminho de tornar-se objeto de rejeição nem explícita nem implícita; Júlio Dinis vai a caminho de se tornar puro objeto da mais cândida ignorância (aquela que se proclama em público como saber), da indiferença, da rasura, do erro ou, quando muito, da fantasmática existência/inexistência pela saudade e pela homenagem. Quando Almada Negreiros se irritou com o academismo ao ponto da proclamação de um manifesto, Júlio Dinis não lhe era sequer um recurso vocabular. Ainda se ele fosse um Júlio Dantas! Mas não era.

     Depois dos Eças e dos Ramalhos que, com a leve pancadinha paternalista, amigavelmente o sepultaram, a erupção do Modernismo esmagou-o, enclausurou-o definitivamente no lugar de epifenómeno. O caminho do romantismo ao realismo fizera-se por antítese e Júlio Dinis não era essa antítese, era uma outra tese. A estrondosa revelação do Modernismo fez-se por escândalo e estrondo, mas escândalo e estrondo não eram certamente os nomes do meio do delicado Júlio Dinis.              

    Júlio Dinis não era nem Pato nem Castilho nem Chagas nem Dantas. Era um Júlio Dinis muito singular, dificilmente redutível a qualquer representatividade escolástica ou grupal; um Júlio Dinis cuja qualidade literária não cumpria os requisitos negativos adequados à sua aceitação como alvo de arremeços achincalhadores. O Júlio Dinis amado pelo povo leitor foi pretensiosamente mal-conhecido por parte do ‘povo’ escritor. O Júlio Dinis detentor de uma escrita literária enraizada no que da banalidade da vida portuguesa pôde observar e motivada por um regenerador projeto corretivo do seu devir, por assim dizer um projeto de felicidade pela leitura, não tinha lido The Patron and the Crocus de Virgínia Woolf, é certo, mas sabia, como ela, que «To know whom to write for is to know how to write». E, nele, o esforço do conhecimento bem ponderado de para quem escrevia e de quem tomava a matéria da sua escrita era obrigação e prazer, era coisa séria. Conversa que tinha consigo próprio e que deixou escrita.

     Curiosamente, o devir da literatura portuguesa faz-se, em momentos críticos, não como emanação de uma fome de futuro por parte do povo leitor, mas — quase-sempre insuflado por fermentos importados — contra o quietismo ou o saudosismo desse mesmo povo. Enfim, os costumes organizativos da corrente contínua da escrita literária portuguesa e seus sobressaltos atribuíram à escrita dinisiana o chamado lugar de «escritor de transição». Nesta ótica, Júlio Dinis tornou-se, por definição, transitório: um não-lugar, nem carne nem peixe nem nada, pois que o que quer que seja uma transição poderá ser encontrado em estado mais puro no seu antes e mais bem acabado no depois que promete, mormente hoje quando tudo é já ontem. Viram Júlio Dinis como um interlúdio, um intermezzo enquanto não vem a substância do próximo ato. Não o viram como um começo interrompido, um começo cuja inteligência inicial não pôde evoluir devido à sua primeira morte. Júlio Dinis foi um sólido e prometedor principiante de algo que, na literatura portuguesa, ainda hoje não tem continuação: uma escrita literária superior enraizada na banalidade da vida. Morreu pouco depois dos trinta anos e viveu a sua curta idade de escrita em ameaça constante de morte. Foi o autor de quatro romances iniciais, quatro romances sem futuro.

     Júlio Dinis, o scriptus, tornou-se uma espécie de azulejo destoante cuja diferença ficou submersa pela relevância do padrão. Uma visão muito aproximada e muito minuciosa poderia distinguir essa diferença, essa identidade, mas tal coisa como um olhar trabalhoso, profundo e sabiamente interessado, não existe lá onde, em termos de atenção, campeia o gregarismo e, em termos de memória, o psitacismo.

    Já Júlio Dinis, o lectus, demorou mais a morrer. Para uma quantidade significativa de leitores, estava ainda vivo em pleno Modernismo e depois.  Estava vivo, mas talvez não fosse desprovido de aviso quem previsse que iria ‘muribundar’ em velocidade crescente. Mesmo sem ter em conta a verdade geral de que, em Portugal, cada vez se leem menos escritores mortos (em boa verdade, quer mortos quer vivos), as proclamações modernistas indiciavam um tempo futuro em que a permanência da leitura de criações literárias à maneira dinisiana que, por aqui e por ali, se iriam ainda fazendo, suscitaria apenas afastamento e malquerença. Iriam chamar-lhe clássico com todas as vantagens e desvantagens, em termos de leitura, que tal classificação arrasta. Em Portugal, os clássicos não são para ler. Em Portugal, arquivar um autor na pasta dos clássicos é uma coisa muito aproximada da piada britânica sobre a inanidade de certas prometidas inquirições. A Escola, encarando a leitura não como um lugar constitutivo mas distributivo, sem pensar muito, mas por lhe parecer que sim, também o iria alijar.

      Seja como for, em comparação com o que se passou na dimensão da escrita, na dimensão da leitura, a morte literária de Júlio Dinis demorará mais algum tempo a efetivar-se. O gosto e a utopia na criação literária vão sempre à frente — e muitas vezes contra — do gosto e da utopia na leitura: começam e morrem mais cedo. Ou seja, e como é natural, a leitura chega sempre depois. O gosto e a utopia dos leitores dinisianos demorou, pois, mais tempo a morrer. Tomemos alguns marcos na decadência da leitura de Júlio Dinis.   

    Na aproximação do declinar do século XIX, anos 70/80 desse século, uma geração de escritores — autodeclarados detentores da mais pura ficção realista do universo citadino e burguês da sociedade portuguesa, mas dedilhando, ainda assim, por outras pautas —assomou, com ousadia, com ruído, com impiedosa ironia crítica, à varanda das proclamações proféticas do futuro da literatura portuguesa e decretou-se como gene da estirpe vencedora no processo da sua evolução. O seu campeão chamou-se Eça de Queirós. Não obstante, o dinisianismo, assim depreciado, permaneceu através da leitura de massas.

Revejamos:

No decorrer de um único ano (1875), três edições de As Pupilas do Senhor Reitor foram pedidas pelo apetite leitor dos portugueses. E, no entanto, nesta década de 70 do ano de 1800, mais de 80% da população portuguesa era analfabeta. Em 1910, As Pupilas do Senhor Reitor eram mais uma vez publicadas em folhetim, desta feita na Revista d’Ovar, e lidas avidamente.     

Entre 24 de março e 28 de junho de 1915, foi publicada a revista literária Orpheu. Em 1915, uma personagem de As Pupilas do Senhor Reitor tinha a honra de, no momento da ‘sua morte’, ser objeto de uma correspondência noticiosa publicada num jornal diário lisbonense. 

Imagem1.png

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Imagem2.pngIn O Nacional de 29-4-1915

Júlio Dinis morrera em 1871, mas, em 1915, a sua personagem estava viva. Tanto assim, que morreu. E teve a sua morte noticiada. Enquanto ente literário, a leitura identificava-a com um ser vivo e real que nela reconhecia.

Em 1915, saiu a 13ª edição de A Morgadinha dos Canaviais.

Em 1919, saiu a 20ª edição de As Pupilas do Senhor Reitor.

Em 1945, Maria Judite de Carvalho publica, no jornal O Comércio do Porto, um artigo intitulado «Júlio Dinis e as suas personagens», em que escreve: «Quanto à popularidade dos seus romances, disse-me um livreiro que, ainda hoje, são os livros que mais se vendem nessa especialidade literária e que cada nova edição das obras do dr. Gomes Coelho se esgota sempre. Em quási todas as casas em que haja alguns livros se encontram as obras do notável homem de letras portuense.»  

     Na dimensão da leitura, Júlio Dinis manteve-se vivo século XX acima, mas gerando uma apropriação que deixava, na sombra e no esquecimento, aspetos, talvez os mais valiosos, da sua obra. Essa era uma leitura continuada dos seus romances que seguia um guião estandardizado pela fama difundida e herdada dos leitores burgueses oitocentistas. Fama essa que, como guião de leitura e de referência, se mantém incorporada, desde aí e até agora, numa propalada identidade dinisiana sem prova nem argumento. A fama popular foi a sua melhor amiga. A saudade e a fixação desleixada incorporadas nessa fama são os seus piores inimigos. Em muitos aspetos, a leitura transmitida é a leitura herdada de leitores configurados por contextos históricos e pessoais que já não existem. Júlio Dinis tornou-se uma ideia feita, um mito até. Escondido pela luz mítica assim refletida, foi desaparecendo o que dele poderia ter feito um escritor ainda hoje em cima da mesa, mesmo se não lido. Poderia não falhar todas as oportunidades de óbvia referência como falha. À medida que a sua permanência se foi tornando sinónimo de envelhecimento, deixou de ser incensado, no meio literário, como, por alguns, importantes, fora no tempo de estar vivo e ativo. Mais gravosamente do que este abandono pelo meio literário, também o perímetro das suas rodas de leitores, que fora largo, se estreitou até uma receção carinhosa, mas menor, de leitura escolar, de leitura juvenil, a tender para o nada. Desde o espanto em ser lido por uma criança e da reserva de um pai ao encontrá-lo nas mãos da criança, seu filho, testemunhado em jornal da sua época, até ao espanto por merecer, ainda hoje, leituras adultas, Júlio Dinis foi morrendo. Pela segunda vez. A brevidade da sua vida impediu-o de continuar a ser contemporâneo daquilo que se iria — e se foi — tornando o presente que, para ele, não foi senão um futuro inexistente. Júlio Dinis tornou-se um arquipélago de quatro romances de juventude (morreu com trinta e um anos), perdido dos roteiros ativos, submerso numa onda de nostalgia dessorada do nervo que o poderia arvorar em parceiro dos debates e embates em que se vai desfrondando a literatura portuguesa ao longo do século XX e XXI. Nesses debates e embates, não vem, nunca vem à colação. Júlio Dinis foi um escritor seriamente preocupado com a leitura e os leitores como princípio ativo da criação literária.  Enquanto os obreiros do realismo, do modernismo e de outros -ismos, ativos enquanto a obra dinisiana foi escrita, publicada, ou lida, eram puros e acirrados defensores de uma estética boa em si mesma contra tudo e contra todos, iluminada por ideologias de vanguarda ao tempo, autocontemplativa, Júlio Dinis demorava-se a compreender a relação entre as suas convicções estéticas, a matéria da sua escrita e a identidade dos seus leitores. Segundo a sua experiência de vida, segundo a terra que os seus pés pisavam e o seu olhar observava.

     Eça de Queirós confessava, com falsa modéstia e cínico lamento, a Teófilo Braga, em 1878, que trabalhava para três ou quatro pessoas e, a Oliveira Martins, escrevia, num laivo pejorativo, sobre os leitores de folhetins que eram, afinal, a massa leitora para além desses três ou quatro eleitos para quem escrevia: «esses baixos do jornal destinados à imaginação e à novela [...] a que chamamos folhetim». E, apesar de si, de certo modo rendido a um público leitor que não entenderia todas as dimensões da sua escrita, como que lamentava «Dantes, o escritor dirigia-se ao leitor que tinha ócios luxuosos [...]; hoje, dirige-se esparsamente a uma multidão azafamada e tosca que se chama público.» E não esqueçamos que Alexandre Herculano, numa espécie de esfíngico e romântico elitismo, se revoltou contra os proventos que lhe adviriam de serem adquiridos/lidos os seus livros, os direitos de autor, utilizando expressões como «literatura mercadoria» e «literatura agiotagem», último grau de afastamento do destino último de quem escreve: ser lido. A verdade é que acabou por receber os direitos de autor das obras que a Bertrand lhe publicou. Júlio Dinis não era assim. Júlio Dinis inaugurou a importância do leitor, não como recurso retórico já tão querido do Romantismo, mas como elemento material da criação literária. Explicitamente. Inaugurou a importância da leitura, da popularidade na construção da obra, sem pejo nem pena nem renúncia. Não escrevia para os pares, para o meio, para a crítica. Projetou a obra na leitura, sem prejuízo de qualidade e de genuinidade criativa.  Belo triunfo! Difícil. O da consideração da massa de gente de que se fazia a vulgaridade da vida e se poderia fazer a amplificação da leitura. Júlio Dinis vinha assistindo ao triunfo do gosto dessa massa leitora por romances à Ponson du Térrail, mas ia ponderando que, nessa equação, haveria uma outra incógnita para além desse homem tremendo chamado Camilo Castelo Branco. Ponderava, pensava, calculava, recolhia dados de observação e concluía que, no panorama da literatura-leitura portuguesa, faltava qualquer coisa: ele. Para além do prometido Eça que governava uma prosa irresistível, para além do confirmado Camilo e seu nervoso domínio de fiadas de mistérios e exaltações, faltava qualquer coisa: ele. E tinha razão. Que o diga o próprio Camilo que, em carta safadamente amedrontada a Castilho, revela que se sente ameaçado pelo «autor das Pupilas do Abade».

Camilo sobre Júlio Dinis 2.png

Que o diga Eça apressado a dar uma no cravo e outra na ferradura como era e é apanágio dos grandes ironistas. Júlio Dinis, entre um Eça que se avizinhava, um Ramalho que levou à certa por dentro do nome e do discurso de uma mulher, Diana de Aveleda, e um Camilo que multiplicava o tremendismo de peripécias de abades e enjeitados, começou a ser, só começou a ser, um terceiro caminho, o caminho de um sólido romance português, feito de matéria e vida portuguesa enraizada no Portugal profundo e povoado de ideias e emoções de grande rigor psicológico e sociológico, prometedoras de um olhar denunciador e modificador da decadência nacional. Toda a diferença que vai de O Livro Negro do Padre Dinis de Camilo Castelo Branco, publicado em 1855 a As Pupilas do Senhor Reitor de Júlio Dinis, publicadas (em folhetim) em 1866 e (como livro) em 1867. Ambos os romances pertencem ao que poderíamos chamar primeiras obras de um e de outro escritor e ambas congregam personagens clericais que mereceram dos seus autores lugar de destaque nos respetivos títulos: «Padre Dinis» e «Senhor Reitor». A distância temporal entre os momentos da sua publicação (cerca de dez anos) não é significativa em termos de história literária; digamos que os dois romances são contemporâneos.

   A releitura dos primeiros parágrafos de cada um destes romances é uma experiência interessante e reveladora.

LIVRO NEGRO DE PADRE DINIS

    «Em 1780, no palácio do enviado extraordinário a Roma, por alta noite, entrava uma mulher com uma criancinha ao colo. Aproximou-se, com ela, do leito dum agonizante, e a criancinha, de dois anos, estendeu os braços a receber a mão, quase cadáver do enfermo, que já mal a via. O agonizante era o representante de Portugal na cúria romana. A criancinha era o filho da condessa do Viso e de D. Álvaro de Albuquerque. A mulher, que tremia com ela nos braços, na presença do pavoroso quadro da última agonia, era a veneziana que acompanhara Albuquerque a Roma.Nesta câmara, lugubremente alumiada, estava um moço de trinta anos, quando muito, braços cruzados, olhos ardentes, faces pálidas, vestido à corte de D. João V, como quem saíra do sarau dum banqueiro opulento da Itália, para entrar no quarto sombrio dum moribundo. Era o marquês de Luso, meses antes chegado a Roma, com poderes novos de D. Maria I para negociações secretas com S. Santidade. E o certo é que, meia hora antes, o cortesão de casaca recamada de oiro e o enfermo, que se estorcia no lençol ensopado de suor, um e outro, folgados e alegres, tinham chegado dum opulento festim, galhofando, como rapazes que não cediam a nenhuns em gentileza, acerca de conquistas principiadas para o que viera de Portugal depois e conquistas desprezadas para o que viera antes. E bem podiam, porque mais duma sobrinha de cardeal, muito parecida com o tio, se lhes afiguravam legítimas representantes das Délias, das Lésbias e das Messalinas. Boas e conscienciosas eram as suas risadas, quando Paulo d'Albuquerque sentiu uma revolução repentina, dentro em si. Levou a mão ao peito, e disse: «Tenho aqui uma lavareda.» Comprimiu com ambas as mãos a cintura e estorceu-se como mordido nos intestinos por uma víbora. Rasgou desesperadamente os doirados alamares da casaca, arrancou as fivelas dos calções e lançou-se de bruços sobre o leito, pedindo a altos gritos um qualquer remédio que o salvasse das mortais aflições que sentia dilacerarem-no por dentro. O marquês de Luso saíra aterrado. Voltou com um médico, homem de poucas palavras e de inteligência penetrante para conhecer, ao menos, que não podia dar vida àqueles que a morte lhe tomava sem consultá-lo.

«Morre indispensavelmente.» Foram as suas únicas palavras.

«Que morte é esta? — perguntou o marquês.

«É a morte do envenenado.» — respondeu tranquilamente o doutor.

«Retire-se.» — disse o agonizante.

O médico teve a prudência de não disputar a presa às garras do túmulo e saiu, lamentando a mesquinhez da ciência ou a omnipotência da morte. Paulo d’Albuquerque apertou a mão do marquês e disse com a voz cortada por atormentados ímpetos de dor:

«Quatro portas adiante da minha, mora uma mulher, que se chama Luiza. Vai lá e já. Diz-lhe que venha aqui... e traga consigo a criança... »

«A criança!» — murmurou o marquês e saiu.

Voltando, encontrou o envenenado num espasmo, que se lhe afigurou uma crise salvadora. A um aceno, aproximou-se ao leito.

«Morro envenenado pelo cardeal Pozzebonelli...»

«Quando foste envenenado?»

«Faz hoje vinte dias... num jantar... Era um rival perigoso... »

«Tens a certeza?»

«Tenho...»

«Eu te vingarei!»

«Não quero... A vingança antecipei-a eu. Esse homem deve morrer amanhã, porque foi envenenado hoje... por mim.»

«Por ti!»

«Sim... por mim... O demónio ludibriou-nos a ambos... não falemos mais nisto, que me foge a luz... Vem aí essa mulher com um menino...»

«É teu filho?»

«Não...»

«Pois de quem?»

«É segredo que vai comigo... Não te importe saber de quem... Entrego-to e com ele um cofre, guardado ali naquele caixão, e dentro cem mil cruzados em oiro, com algumas joias.»

AS PUPILAS DO SENHOR REITOR

      «José das Dornas era um lavrador abastado, sadio, e de uma tão feliz disposição de génio, que tudo levava a rir; mas desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e não do rir dos Demócritos de todos os tempos — rir cético, forçado, desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar. Em negócios de lavoura, dava, como se costuma dizer, sota e ás ao mais pintado. Até o Sr. Morais Soares teria que aprender com ele. Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e atividade qualquer rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o amanhecer já não tinha para ele segredos não revelados. O sol encontrava-o sempre de pé, e em pé o deixava ao esconder-se.  Estas qualidades, juntas a uma longa experiência adquirida à custa de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavrador consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem estorvo de malquerenças e murmurações. Diz-se que — quem mais faz menos merece, e que mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga, e não sei o que mais —; será assim; mas desta vez parecia que se desmentira o ditado ou pelo menos que o facto das madrugadas não excluíra o auxílio providencial, porque José das Dornas prosperava a olhos vistos. Ali por fins de agosto era um tal de entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro! S. Miguel mais farto poucos se gabavam de ter. Que abundância por aquela casa! Ninguém era pobre com ele; louvado Deus! Como homem de família, não havia também que pôr a boca em José das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia vivera vinte anos com sua mulher, e então, como depois que viuvara, manifestou sempre pelos filhos uma solicitude, não revelada por meiguices — que lhe não estavam no génio — mas que, nas ocasiões, se denunciava por sacrifícios de fazerem hesitar os mais extremosos. Eram dois estes filhos — Pedro e Daniel. — Pedro, que era o mais velho, não podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele; — a mesma expressão de franqueza no rosto, a mesma robustez de compleição, a mesma excelência de musculatura, o mesmo tipo, apenas um pouco mais elegante, porque a idade não viera ainda exagerar a curvatura de certos contornos e ampliar-lhe as dimensões transversais, como já no pai acontecia. Conservava-se ainda correto aquele vivo exemplar do Hércules escultural. Pedro era, de facto, o tipo de beleza masculina, como a compreendiam os antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece, exigindo nos seus tipos de adoção o que quer que seja franzino e delicado, que não foi por certo o característico dos mais perfeitos homens de outras eras. A organização talhara Pedro para a vida de lavrador e parecia apontá-lo para suceder ao pai no amanho das terras e na direção dos trabalhos agrícolas. Assim o entendera José das Dornas, que foi amestrando o seu primogénito e preparando-o para um dia abdicar nele a enxada, a fouce, a vara, a rabiça e confiar-lhe a chave do cabanal, tão repleto em ocasiões de colheita.»

  No rolar das idades da literatura portuguesa, o enfraquecimento da relação com os leitores — progressivo e inelutável — do que não era nem Camilo nem Eça, nem nenhuma outra coisa senão ele, Júlio Dinis, foi a sua segunda morte.

A TERCEIRA MORTE

  Júlio Dinis deixou, pois, quatro romances que poderiam ter perdurado como referencial insubstituível na leitura tempo adiante, atuais pela leitura como são os clássicos, vivos, lembrados a cada oportunidade, selecionáveis à ocorrência de cada programa, exemplares em cada discurso, emparelháveis com Eça e Camilo. Não digo lidos, porque os portugueses não o leem, ou melhor — ressalvado em ou pior    os portugueses não leem. Não leem, mas conhecem nomes de escritores do passado, nomes que lhes ocorrem quando se fala de escritores. No cardápio de nomes, Eça e Camilo são campeões. Júlio Dinis, não. Os portugueses são muito comparativos. Quase não sabem referir sem comparar. Adoram pares. Garrett e Herculano, Camilo e Eça, Saramago e Lobo Antunes... Se lhes surge um terceiro ao despique, por exemplo Júlio Dinis, ficam confusos, perturbados, descartam-no. E, no entanto, sem Júlio Dinis em pé de igualdade com um Eça e um Camilo, a visão-debate, de hoje, sobre a literatura portuguesa que nasce no decorrer da segunda metade do século XIX e seus derivados, fica seriamente amputada. Júlio Dinis não era aquela coisa leve com que Eça nos acenou. Júlio Dinis pensava a literatura, refletia sobre a criação literária, sobre a arte do romance, com sentido crítico, com competência analítica, fazia escolhas. Se lermos o seu ensaio Ideias que me ocorrem, que escreveu durante uma das suas fugas para a Madeira em busca de vida, veremos quão atento e quão seguro das suas posições frente à produção romanesca do seu tempo ele era.  Algumas linhas: «Porque é que está em deplorável e espantosa decadência o romance de imaginação? Porque se tem derrancado o género até às indigestas e escandalosas produções de Ponson du Terrail? Exatamente por não pretenderem prender o leitor senão pela sucessão rápida das peripécias e dos lances imprevistos. Nem uma análise de caracteres, nem um curto olhar lançado ao íntimo do coração humano a devassar o que lá é de costume encontrar-se e não nenhuma dessas monstruosidades, que poderiam ter existido num ou noutro coração, mas por exceção, e que o leitor não tem decerto no seu. Não caluniem o público dizendo que é só desse alimento que ele digere. Não é assim. Vós sois que o alimentais há muito nesse vicioso regime, que, sem dar sólida nutrição, estraga o paladar, cuja sensibilidade embotada exige estímulos cada vez mais acres e irritantes. Há uma lei do gosto literário em que eu acredito firmemente. O excecional, o extravagante, o desregrado não é o que desperta nos leitores ou nos espectadores o mais verdadeiro, o mais duradoiro interesse; pelo contrário, é o comum, o vulgar na justa aceção do termo. Quando encontramos em um livro pensamentos que já tivemos um dia, sentimos agradável surpresa, como ao darmos em um lugar, inesperadamente, com uma pessoa conhecida; quando no carácter, no coração de uma personagem literária há alguma coisa que é nossa, quando nos reconhecemos em parte personificados numa criação, redobra o interesse com que o acompanhamos nas peripécias do drama. É por isso que eu gosto dos romances lentos, em que o autor nos identifica bem com as personagens entre quem se passa a ação antes de a travar.»

   Perceberemos que os seus romances, enquanto construção literária, são fruto de um pensamento, por um lado, teórico, por outro, pragmático. E constituem uma escolha de mudança em relação ao panorama vigente. Uma mudança que se revelou acertada e fez, senão tremer, pelo menos contra-atacar os que aí ocupavam lugar reconhecido. Arriscada, mas acertada como se viu pela receção obtida.

  A retirada de Júlio Dinis, já não do palco da popularidade que tanto tempo e tão intensamente ocupou, mas do debate literário atual, foi a sua terceira morte.

  Foram precisos três golpes para o fazerem desaparecer: o da doença, o da quebra na leitura, o da inexistência no debate. Júlio Dinis não era leve, era forte.

   

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por Maria Almira Soares às 14:19

Quarta-feira, 05.07.23

LEITURA

A LEITORA - RENOIR.jpegPierre August Renoir

Nós, os que a olhamos, vemos, na paisagem literária de hoje, os iludidos morituri de um pseudoconsumo desgastante. A ciência dos floricultores da leitura é uma superficialíssima quimera ausente do que a tornaria sustentável: o respeito pelas raízes e pela sua contemplação. Toda a gente sabe que as flores são mais voláteis do que as raízes. Mas os floricultores da leitura esquecem-no. Não fazem perguntas difíceis. Não esperam o tempo necessário pelas respostas. Em plena era de maravilhamento tecnológico, pode um leitor mergulhar com o maior dos entusiasmos, com a maior das aberturas, com o mais intenso regalo, na leitura de uma folha de um romance antigo, amarelecida e ratada, que encontrou a forrar a gaveta da cómoda antiga da casa herdada? Pode. O mapa das leituras de cada um só se faz depois. Depois de ter lido. Nunca está fechado. A leitura tem a qualidade de se poder furtar às formatações e aos conselhos produzidos por espíritos ingénuos, levianos ou vendedores, que intentam fabricar a fortuna dos livros, ignorantes de que o desejo do leitor é o ladrão de qualquer estratégia pré-fabricada. Em leitura, o valor das contagens permanece órfão da individualidade irredutível de cada leitor. Em leitura, não há soma. Há cada um. Diferente. Falar de muitos, falar de todos, de maiorias e de minorias, é apenas usar um filtro modificador do real. Assim, como um carro último modelo passa a grande velocidade na estrada ladeante de uma courela em que um bicharoco rói regaladamente a ternura verde de uma folha aveludada, assim os últimos modelos de apuradas contagens dos universos da leitura preenchem velozmente apresentações de PowerPoint, enquanto cada leitor rói a sua folha.

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por Maria Almira Soares às 11:37

Terça-feira, 04.07.23

A LEITURA

  

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      O ato de ler é um ato íntimo. A relação entre uma pessoa e uma história, um poema, um drama, escritos num livro é uma intromissão solitária, silenciosa. Pode, depois, ser transformada para outros usos, mas, no seu primeiro nível de experimentação, é coisa íntima, jubilosa ou destrutiva, e — durante o intervalo entre a conclusão da leitura e o surgimento da disposição e oportunidade para a abrir aos outros — secreta. Íntima e secreta, só como consequência deste intimismo e fechamento a leitura se pode tornar social, contextual.

    Expor, descrever, debater, organizar, edificar o tema da leitura, depreciando o facto de ela se cumprir a despeito da relação com o mundo, de ela criar os seus mundos, de ela suspender o exercício de interações circunstanciais, é pressupor a inversão do sentido do gesto de ler e redunda em vacuidade ou incompletude. Como bem sabia Vergílio Ferreira, que aqui recordo.

     Vergílio Ferreira, sendo reconhecido leitor de leituras complexas, declarava, nos seus diários, o gozo íntimo, o frémito amoroso que continuava a sentir na leitura de velhos e corriqueiros textos de seleta escolar, em polar ruptura com a declinação dos tempos que então passavam e desqualificavam tais textos. Vergílio Ferreira sabia do carácter íntimo e secreto do primeiro nível das nossas leituras que não se compadece com pressupostos meramente sociológicos ou histórico-culturais. Tratar a leitura como coisa tão-só de atualidade, emergente e precária, é um erro, porque o núcleo volitivo mais substancial de se ser leitor de um dado livro, o elo mais sólido que prende um leitor a um livro, não depende necessariamente de mudanças circunstanciais. O peso da circunscrição contextual, da prescrição epocal, na escolha efetiva de um livro por parte de um leitor, é sempre inferior ao peso da sua determinação pessoal. A leitura genuína é coisa livre senão do desejo e do instinto deliberados pelo leitor segundo categorias próprias. Pretender configurá-la sob sujeição completa à época e suas mudáveis características e finalidades é desfigurá-la, enredando os leitores em indecisões, enganos, falsas personae, passos perdidos, precariedade. Antes de ser um ente noticiável, sociológico, pseudocientífico até, coisas em que progressivamente a vão tornando, a leitura é coisa do foro íntimo, sem controlo, muitas vezes pouco explicável. O fazerem dela objeto de observação e de estudo, de conclusões, de orientações, só pode preterir o profundo subjetivismo, o carácter irredutível de cada relação entre um leitor e um livro, tomando os acidentes por essência, esquecendo a essência da leitura, a sua imprevisibilidade geradora de cadeias originais e inéditas de leitores sem portas nem comportas a deslocar comportamentos.

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por Maria Almira Soares às 18:13

Terça-feira, 04.07.23

MELANCHOLIA (Francisco José Viegas)

 

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      A estrutura.

     O eixo desta narrativa policial não é o crime, é o detetive, o detetive Jaime Ramos. Tudo passa por ele. Tudo nele conflui e deflui dele. Ele que, debruçando-se sobre o processo investigativo, alude várias vezes à peça última e fundamental do puzzle, ele é, nesta narrativa, essa peça, a última e a primeira, a fundamental. Ele é a grelha, a lente, o filtro, o reticulado onde tudo encaixa, vai encaixando, onde cada peça vai pedindo outra e mais outra e mais outra: olhares, expressões, linguagem, referências, idiossincrasias, imaginação, inspiração, memória. Ele, o lugar de escuta e de demorada e melancólica digestão da realidade. Ele, uma mistura, mais disfarçada ou mais franca, de desleixo, de distração, de foco, de obsessão, de filosofia sobre o tempo, sobre a morte. O mítico detetive, a lenda. Ele, a melancolia que, mais ou menos espessa, mais ou menos aguada, é um sentimento de que, mais ou menos, todos bebemos. Uma esponja de vidas absorvendo o real, reorganizando-o, catalogando-o.

 

     A personagem.

A sua personagem principal é o Porto, a melancolia do Porto. O denso tecido do Porto feito de intermináveis enumerações de figuras, de lugares, de histórias, de antepassados, de imagens estereotipadas à tona de profundidades insondáveis. O catálogo. A lista. A lista de verificação da vida. O inventário de vidas. O Porto, ele também, lugar axial de onde emergem e em que mergulham outros lugares mais ou menos longínquos, da Póvoa à Turquia, e outros tempos mais ou menos longínquos, da última trica literária às longínquas raízes judaicas. Para gozo do leitor que conhece bem a cidade e tem o gosto da crónica, o rosto mais ou menos nítido das coisas que estão por trás dos nomes.

 

     O autor.

    Uma silhueta sempre presente. Nas entrelinhas, ouço claramente o riso real de Francisco José Viegas: um riso que se desfaz numa nota triste. A presença/ausência do autor é intensa, invasiva, constante. Um humor. O humor também prazenteiro e malandro, que,  a brincar, a brincar, fala sobre coisas muito sérias: o amor, a traição, a crueldade, a frustração, a melancolia. «Quem está morto sempre aparece.» A ousadia e o gozo de colar na ficção uma figura indiscutivelmente real: Onésimo Teotónio de Almeida. O gosto do policial intimista, desta vez em meio literário, como quem sorve um fruto suculento cujo sabor conhece. A verrina. As palavras que reverberam o gozo de as achar. Embuçado na sombra de Agustina, essa imbatível fábrica de personagens, de lugares, de histórias. Vendo, muito ao longe, a sombra de Júlio Dinis: «...esses tempos em que os escritores morriam de tuberculose, asma, doenças pulmonares que se tratavam com o ar do mar, uma estada na Madeira, depois de uma viagem acidentada de barco...». Vendo, em Jaime Ramos, o fantasma de Manuel Quintino atormentado a fazer a marginal do Freixo. Porque, afinal, este romance é sobre o Porto, sobre a melancolia do Porto, sobre as árvores do Palácio de Cristal.

 

     E o crime?

    O crime dá-se. E tem até uma estrutura bem imaginativa. Móbil? O medo da desonra literária. Mandante? Um escritor medíocre. Assassino? Um turco enigmático e silencioso. Vítima? Uma escritora talentosa e cruel. Álibi perfeito: estar morto.

 

 

 

 

 

 

 

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por Maria Almira Soares às 14:37

Terça-feira, 04.07.23

JÚLIO DINIS SOB O SIGNO DA MELANCOLIA E DO PRAZER

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        «Às vezes os sentimentos melancólicos trazem consigo algum prazer também,

um prazer suave, íntimo, consolador.» 

    Esta frase é retirada do romance Uma Família Inglesa, o primeiro que Júlio Dinis escreveu, não o primeiro que publicou. Começou a escrevê-lo (presume‑se) em 1858, quando era um jovem escritor com dezanove anos de idade, mas só iniciou a sua publicação quase dez anos depois, em 1867, em folhetins, no Jornal do Porto, com o título Uma Família de Ingleses e publicou-o em volume, em 1868, já com o título que hoje tem. Este foi o seu único romance em ambiente citadino. Entretanto, deu prioridade de edição a As Pupilas do Senhor Reitor, um romance de cenário rural, que iniciara e em parte escrevera em Ovar, a terra acerca da qual Júlio Dinis disse, em carta de 1863, dirigida ao seu amigo Custódio Passos, «Ovar é uma vila e é uma aldeia».

   Olhando mais de perto as palavras dinisianas sobre melancolia e prazer, de que parto, confirmo que fazem parte de uma passagem do desenvolvimento da intriga sentimental do romance: o encontro aparentemente casual entre Carlos Whitestone e Cecília. Trata-se de um momento melancólico pelo lugar em que se desenrola e pelas memórias que evoca nas personagens.  O lugar é um cemitério, onde convergem Manuel Quintino e Cecília, motivados pela evocação saudosa da mulher e da mãe, e Carlos cuja presença tem uma motivação de sinal emocional diferente, o seu amor por Cecília. Porém, partilhando Carlos com a filha de Manuel Quintino a mesma situação de orfandade materna, há razões para pressentirmos que também ele seja contagiado pela melancolia ali reinante. Em fundo e já fora do romance, não deixa de se vislumbrar ainda a sombra do autor, ele próprio vítima da perda precoce da mãe.

     Alheio à intriga, o narrador procura interpretar os sentimentos das personagens e, portador de apurado sentido da ‘verdade’ das suas emoções, associa, à melancolia que sentem, alguma dose de prazer. De facto, é verosímil que, a contragosto do lugar fúnebre em que se encontram e dos tristes acontecimentos que evocam, Carlos e Cecília sintam prazer por estarem próximos um do outro, não só física, mas também emocionalmente, graças à afinidade das memórias que partilham.

     Assim começa, este meu texto, em tom menor. Em breve, porém, como fez o narrador dinisiano, associarei a esta tonalidade melancólica outras notas mais eufóricas: as do prazer de criar e de ler literatura.

    Dado o carácter abrangente da citação de que parti e esclarecido o seu ambiente textual, seja-me permitido deslocar o seu significado para um outro contexto. De facto, trata-se da expressão de uma “verdade” que não se esgota no sentido que o seu lugar intratextual, no romance, lhe permite. Há, nela, uma reflexão genérica sobre a complexidade das emoções que me permite recolocar as suas duas palavras fortes, melancolia e prazer, em outras situações. Penso, por exemplo, na conjugação, harmónica em última análise, entre o facto de Júlio Dinis, um homem de temperamento melancólico, ter criado uma obra de carácter genericamente festivo que fez os seus leitores experimentarem o sentimento de felicidade pela leitura. Esta constatação, pela contradição que de certo modo encerra, não deixa de suscitar um certo efeito de espanto e de curiosidade, que pode ser formulado desta maneira: — Como é que uma obra de leitura tão consoladora pôde ser produzida por uma pessoa de feitio triste e de vida tão torturada pela doença e pela morte!  

    De facto, a melancolia era, segundo testemunhos vários e até confissões do próprio, uma característica bem visível no modo de ser de Joaquim Guilherme, a pessoa subjacente ao autor Júlio Dinis, que boas — ou antes más — razões tinha para ver a vida com olhos tristes.    

     Em 1926, numa peça publicada no Diario do Porto, uma entrevista ao Dr. Alfredo de Magalhães, ex-diretor da Faculdade de Medicina do Porto e reitor da Universidade da mesma cidade, a propósito das homenagens prestadas ao doutor Joaquim Guilherme Gomes Coelho, como forma de celebrar o centenário dessa escola, o jornalista refere-se-lhe nestes termos:

    «A obra de Julio Diniz é uma obra cheia de graça cintilante, cheia de beleza e de expressão. Julio Diniz era, todavia, um espírito melancólico e taciturno, duma expressão triste e dum caracter frio, duro e até intratável.»

   Informação semelhante pode colher-se a partir do relato que Anthero de Figueiredo nos deixou da sua visita a Ovar, mais propriamente da reprodução da conversa que manteve com a prima do escritor, durante o seu encontro na casa que, quarenta anos antes, o tinha acolhido:

   «— Tinha um ar triste, afirmei eu, quebrando o silêncio.

    — No Porto, sim, e aqui quando chegou: tudo lhe aborrecia!»[1]

    Em ambas as situações, Júlio Dinis é referido como dado à melancolia e ao aborrecimento.

    Estariam o jornalista do Diario do Porto e Anthero de Figueiredo a ser exatos?

    De facto, existem outros testemunhos a confirmá-los.

    Camilo Castelo Branco, por exemplo, escreveu acerca de Júlio Dinis, numa carta a Castilho: «É um sujeito doente e triste.»

    E o próprio Júlio Dinis não deixou de se referir repetidamente a estas características do seu temperamento, sobretudo em cartas dirigidas ao seu muito amigo Passos, irmão do poeta ultrarromântico Soares dos Passos, de que respigo umas quantas passagens:

— «... têm-se-me exacerbado os meus humores negros e estou, pelo menos moralmente, algum tanto pior.»;

— «... quando anoitece e pela madrugada, em que os diabos negros se apoderam de mim.»;

— «A solidão longe dos homens é para mim uma coisa agradável»;

— «Eu não tenho a qualidade, que admiro em certa gente, de apreciar a convivência...»;

— «... conspiraram-se variadas circunstâncias para me levarem o espírito àquele grau de melancolia já de há muito meu conhecido.»

    Júlio Dinis não era, pois, um ser dado ao bom humor. Era, pelo contrário, propenso a deixar-se dominar pela tristeza, amante da solidão, pouco dado à convivência, melancólico. E, no entanto, como escreve o jornalista do Diario do Porto, produziu romances cheios de «graça cintilante».

    Admirável talento literário, o seu, que soube criar e compor com um realismo assinalável, a partir da observação e da imaginação, figuras cheias de vivacidade como um João Semana, alegres e até um pouco entontecidas pela alegria própria como uma Clara, e tantas outras movendo-se em enredos romanescos que desencadeiam, nos seus leitores — os mais eruditos e os mais populares, no seu tempo e muito tempo depois — sentimentos de reconforto anímico, sensações de agrado, momentos de felicidade pela leitura.

    À receção da obra de Júlio Dinis que constituiu um caso singular de estrondoso êxito, esteve ligado um culto afetuoso da personalidade literária do escritor, motivado por uma espécie de gratidão, a do leitor que experimenta a leitura benfazeja. 

   Razão há, pois, para espanto perante o facto de um homem de temperamento e vida muito pouco alegres ter dado tanto prazer, através da leitura, a gerações e gerações de leitores! Quem, leitor da sua obra, mas desconhecendo a sua vida, adivinharia que por trás de romances tão solares estaria um homem tão sombrio!?

    Júlio Dinis tem consciência da vivacidade que anima os seus romances. Mais: dá-nos testemunho de como esse apelo literário ao vívido contacto com situações e personagens animadas por um realismo pleno de espontaneidade na exteriorização de sentimentos e anseios, reverte também em seu benefício, interrompendo o seu pendor para a solidão, o seu feitio avesso à convivialidade que não fosse a dos muito próximos. Assim, numa carta, datada do Funchal, dirigida a sua prima e madrinha D. Rita de Cássia Pinto Coelho, que trata afetivamente por Ritinha, escreve: «na vida desconsolada e insípida que aqui passo há verdadeiramente só duas ocasiões de satisfação para mim. A primeira é quando recebo e leio com ardor as cartas da família e dos amigos; a segunda é em alguns momentos em que me esqueço da realidade em que vivo, por muito me engolfar em um certo mundo que ando construindo e na convivência de umas criaturas que me devem a tal ou qual existência de que principiam a gozar.» Este «certo mundo» era o mundo de ficção que criava, no caso o de Os Fidalgos da Casa Mourisca que andava a escrever na altura, e as ‘criaturas que lhe deviam a existência’ eram «gente» imaginária como Dom Luís, Jorge, Maurício, Berta, Gabriela... personagens do romance.

   Aos momentos felizes que lhe dava o convívio imaginário com as personagens e com as cenas que criava, soma-se ainda a felicidade sentida, embora nunca muito exteriorizada, com a extraordinária receção da sua obra. Veja-se o caso da adaptação teatral de As Pupilas do Senhor Reitor por Ernesto Biester e o episódio apoteótico da sua estreia no Teatro da Trindade, em Lisboa.

     No caso de Júlio Dinis, o momento da elaboração literária e o da receção obtida pelo produto dessa elaboração, embora distanciados no tempo, estão fortemente correlacionados. A matéria do seu trabalho literário é fruto de uma aguda e justa observação do real, da vida de gente vulgar, e, por isso, os leitores, gente real e comum, sentem-se participantes dos seus romances e, daí, confortados com o reconhecimento de situações por eles vividas ou testemunhadas. Deste modo, experimentam a felicidade pela leitura e agregam grande afetividade ao acolhimento da sua obra. E esta é a principal razão de ter sido, ele, um caso singular de intenso e extenso êxito popular, o que não poderá ter deixado de talhar com momentos de alegria o seu pendor melancólico.

     Os romances de Júlio Dinis tiveram a arte de transformar em leitores e propagadores de leitura muitos que, até aí, não o eram. E isso deveu-se, em muito, à vivência de um gratificante processo de autoprojeção e identificação, que é o cerne da leitura de massas e arrebata amplas camadas de leitores médios.

     Sampaio Bruno, ou seja, José Pereira de Sampaio, de pseudónimo Bruno (de Giordano Bruno), diz em A Geração Nova: «O sucesso de Júlio Dinis proveio, pois, desta alegria do público em se sentir passar de espectador a ator em obra literária e o Sr. Luciano Cordeiro engana-se, julgando que o êxito da obra do escritor era um desfastio, porque, mais do que isso, ela correspondia a uma íntima necessidade de se encontrar na novela a representação da sociedade viva.»

    Teixeira de Vasconcelos, no jornal A Reforma (1871), afirma: «Gomes Coelho não apresenta nos seus livros nenhum d’estes repugnantíssimos typos, cuja história o leitor se enfada de lêr [...] Júlio Dinis retrata cenas que fazem bem ao coração do leitor».        

    Facto notável este, o de os romances de Júlio Dinis, num país com mais de oitenta por cento de analfabetos, encontrarem meios de serem “lidos” até por quem não sabia ler! As suas palavras eram recebidas oralmente em rodas de leitura em voz alta.

    Irene Vallejo diz que as palavras são, antes da existência de qualquer tecnologia cultural de escrita, «meros pedaços de ar»[2]; cita, de Homero, as «palavras aladas» que, posteriormente, procuraram «a sobrevivência»2, através da escrita. É, nessa sua primeira natureza aérea, que as palavras de Júlio Dinis encontram o caminho de muitos dos seus leitores/ouvintes. De facto, muitos dos seus leitores, apaixonados conhecedores e citadores das suas histórias, das suas personagens, eram analfabetos. Viviam-se tempos que nada tinham já de homéricos, mas em que, devido ao enorme índice de analfabetismo existente, a vida decorria, em muitos meios, na mais pura transmissão oral! Viegas Guerreiro recorda: «Eu lia, em rapaz, a camponeses da minha terra, romances de Júlio Dinis e de Camilo. E era vê-los participar na ação, falucando, perguntando, comentando.»[3] É que, e subscrevendo totalmente Irene Vallejo: «Afinal de contas o que é uma história? Uma sequência de palavras. Um sopro. Uma corrente de ar que sai dos pulmões, atravessa a laringe, vibra nas cordas vocais e adquire a sua forma definitiva quando a língua acaricia o paladar, os dentes ou os lábios.»2 E dessas sequências de palavras, desses «pedaços de ar», possuímos todos a aptidão de ser leitores. Trata-se de uma condição existente no humano, essa disponibilidade de recetor de histórias quer se concretize quer não através da leitura do escrito. Assim aconteceu com as histórias de Júlio Dinis e com o fortíssimo elo afetivo que criaram com os leitores.

   A provar este tão amplo alcance da receção dos romances de Júlio Dinis existem dados factuais, quantificados de que podemos recordar:

— No ano em que foram publicadas em volume, em Outubro de 1867, As Pupilas do Senhor Reitor esgotaram-se num mês!

— Em 1900, As Pupilas do senhor Reitor têm já catorze edições correspondentes a vinte e oito mil exemplares.

Os Fidalgos da Casa Mourisca, publicados já depois da morte do autor, tiveram oito edições correspondentes a treze mil exemplares até 1900.

— Nos inícios do século XX, Uma Família Inglesa ia na nona edição (dezasseis mil exemplares) e A Morgadinha dos Canaviais, na décima (doze mil exemplares).

   Outros dados existem, também factuais, mas medidos não em números, antes na expressão do reconhecimento afetivo e do prestígio do escritor:

— As conferências e discursos vários, pronunciados durante os muitos atos de homenagem prestados ao escritor, dão uma nítida e inegável imagem da receção havida por parte da sua obra. Respigando, entre muitas outras, duas significativas referências exemplificativas do tom e do sentido das palavras dirigidas à memória do escritor em tais circunstâncias: «insigne romancista»; «romancista querido de todos os portugueses», podemos avaliar bem o prestígio e mesmo o amor, advindos do prazer da sua leitura, que alcançou a obra deste escritor.

   E, no entanto, enquanto as suas histórias, fruto de aturado trabalho de elaboração literária, iam preenchendo, com cenas cheias de alegria, o imaginário dos portugueses, Júlio Dinis sofria melancolicamente os tormentos da sua tristíssima e tão curta vida.

     Eça de Queirós precipitou-se, arrastado pelo efeito de estilo, quando, afastando-se da realidade dinisiana, que talvez não conhecesse muito bem, disse de Júlio Dinis: «viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve». Júlio Dinis não viveu de leve; ninguém morre de leve; e a sua obra não se concretizou através da espontaneidade simples de uma escrita ingénua, mas foi fruto de pesquisa e de uma elaboração assente em convicções maduramente ponderadas. Provam-no, por exemplo, as páginas publicadas nos Inéditos e Esparsos com o título de Ideias que me ocorrem, escritas no Funchal em 1869. Nessas páginas, segundo Gaspar Simões, e justamente, «está nitidamente exposta uma verdadeira estética do romance realista». As opções literárias de Júlio Dinis são fruto de ponderação, de reflexão e análise da arte do romance e uma dessas suas claras opções é a de desenhar as suas personagens a partir de um agudo sentido de observação do real quotidiano, sobretudo de tipos rurais.

    Nessas páginas publicadas em Inéditos e Esparsos, Júlio Dinis escreveu: «Há uma lei do gosto literário em que eu acredito firmemente. O excecional, o extravagante, o desregrado não é o que desperta nos leitores ou nos espectadores o mais verdadeiro, o mais duradoiro interesse; pelo contrário, é o comum, o vulgar na justa aceção do termo. Quando encontramos em um livro pensamentos que já tivemos um dia, sentimos agradável surpresa, como ao darmos em um lugar, inesperadamente, com uma pessoa conhecida; quando no carácter, no coração de uma personagem literária, há alguma coisa que é nossa, quando nos reconhecemos em parte personificados numa criação, redobra o interesse com que o acompanhamos nas peripécias do drama.»[4]

    Foi em Ovar que Júlio Dinis colheu grande parte dos dados dessa observação do real a que tanta importância atribuía no seu processo de criação literária. E foi também sobre Ovar que o romancista escreveu, em carta a sua tia D. Rosa Zagalo Gomes Coelho: «os quatro meses que passei em Ovar foi o tempo mais feliz da minha vida». Sobre a relação do escritor com Ovar, diz-nos Antero de Figueiredo, no texto já citado e lembrando outras terras por onde Júlio Dinis peregrinou em busca de saúde (Felgueiras, Famalicão, Fânzeres, Funchal...): «A algumas dessas terras creou odio e em todas deixara o rasto amargoso do seu tédio; mas lembrando-se de Ovar sorria

   Ovar foi, pois, para Júlio Dinis, um sorriso, uma aberta solar na sua melancolia. Atrevo-me a pensar que esse sorrisonão advinha de motivações meramente pessoais; tinha um valor literário, associado à importância que a vida vivida em Ovar teve na consolidação das suas convicções estético-literárias e, daí, na fortíssima receção da sua obra. Assim, sorri o autor e sorrimos nós, os seus leitores.

    Ao fornecer-lhe matéria para a escrita de romances em que mergulhava com satisfação e, deste modo, contribuir decisivamente para a ampla onda de leitores que a sua obra desencadeou, Ovar tem, pois, responsabilidade no prazer que pode ter temperado a melancolia dinisiana. Foi em Ovar que Júlio Dinis começou a escrever As Pupilas do Senhor Reitor, romance que desencadeou o movimento da notável amplidão da receção da sua obra e da intensidade do gosto com que era lido. Virginia Woolf escreveu, no seu ensaio The Patron and the Crocus: «To Know whom to write for is to know how to write.»[5] e eu, estando de acordo com esta sua afirmação, atrevo-me a escrever que foi em Ovar que Júlio Dinis, ao conhecer os tipos humanos, reais e vivos, de que haveria de fazer personagens, conheceu simultaneamente quem, desdobrando-se por muitos, haveria de constituir a grande massa dos seus leitores. Aí, encontrou aqueles para quem estava a escrever e, seguindo Virgínia Woolf, implicou, nesse encontro, a consolidação da identidade quer temática quer estética da sua obra. 

    Joaquim Guilherme Gomes Coelho foi um homem cuja vida decorreu sob o signo da melancolia, mas teve o talento de se imaginar como Júlio Dinis, escritor cuja obra foi criada e lida sob o signo do prazer.

 

[1] In «JULIO DINIS em OVAR», Anthero de Figueiredo in Serões — revista mensal ilustrada, n.º 8 (Fev. 1906).

[2] In Irene Vallejo, O Infinito num Junco.

[3] Viegas Guerreiro in Para a História da Literatura Popular Portuguesa.

[4] In Inéditos e Esparsos com o título de Ideias que me ocorrem, escritas no Funchal em 1869.

[5] «Saber para quem escrever é saber como escrever.» (Tradução minha.)

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por Maria Almira Soares às 13:47


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