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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Terça-feira, 07.01.14

CECÍLIA MEIRELES: "Esta sou eu – a inúmera."

COMPROMISSO

Transportam meus ombros secular compromisso.
Vigílias do olhar não me pertencem:
trabalho dos meus braços
é sobrenatural obrigação.

Perguntam pelo mundo
olhos de antepassados;
querem, em mim, suas mãos
o inconseguido.
Ritmos de construção
enrijeceram minha juventude,
e atrasaram-me na morte.
Vive! – clamam os que se foram,
ou cedo ou irrealizados.
Vive por nós! – murmuram suplicantes.

Vivo por homens e mulheres
de outras idades, de outros lugares,
com outras falas.
Por infantes e velhinhos trêmulos.
Gente do mar e da terra,
suada, salgada, hirsuta.
Gente da névoa, apenas murmurada.

É como se ali na parede
estivessem a rede e os remos,
o mapa,
e lá fora crescessem uva e trigo,
e à porta se chegasse uma ovelha,
que me estivesse mirando em luar,
e perguntando-se, também.

Esperai! Sossegai!

Esta sou eu – a inúmera.
Que tem de ser pagã como as árvores
e, como um druida, mística.
Com a vocação do mar, e com seus símbolos.
Com o entendimento tácito,
instintivo,
das raízes, das nuvens,
dos bichos e dos arroios caminheiros.

Andam arados, longe em minha alma.

Andam os grandes navios obstinados.
Sou minha assembléia,
noite e dia, lucidamente.

Conduzo meu povo
e a ele me entrego.
E assim nos correspondemos.

Faro do planeta e do firmamento,
bússola enamorada da eternidade,
um sentimento lancinante de horizontes,
um poder de abraçar, de envolver as coisas sofredoras,
e levá-las nos ombros, como os anhos e as cruzes.

E somos um bando de sonâmbulos
passeando com felicidade
por lugares sem sol nem lua.

Cecília Meireles

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por Maria Almira Soares às 13:28

Terça-feira, 07.01.14

PESSOA POR CONHECER: "o inconseguido do jogo"

Álvaro de Campos

 

OLIMPÍADAS

 O sport é a inteligência inútil manifestada nos movimentos do corpo. O que o paradoxo alegra no contágio das almas, o sport aligeira na demonstração dos bonecos delas. A beleza existe, verdadeiramente, só nos altos pensamentos, nas grandes emoções, nas vontades conseguidas. No sport - ludo, jogo, brincadeira - o que existe é supérfluo, como o que o gato faz antes de comer o rato que lhe há-de escapar. Ninguém pensa a sério no resultado, e, enquanto dura o que desaparece, existe o que não dura. Há uma certa beleza nisso, como no dominó, e, quando o acaso proporciona o jogo acertado, a maravilha entesoura o corpo encostado do vencedor. Fica, no fim, e sempre virado para o inútil, o inconseguido do jogo. Pueri ludunt, como no primário do latim...

Ao sol brilham, no seu breve movimento de glória espúria, os corpos juvenis que envelhecerão, os trajectos que, com o existirem, deixaram já de existir. Entardece no que vemos, como no que vimos. A Grécia antiga não nos afaga senão intelectualmente. Ditosos os que naufragam no sacrifício da posse. São comuns e verdadeiros. O sol das arenas faz suar os gestos dos outros. Os poetas cantam-nos antes que desça todo o sol. São todos peixes num aquário cuidado de além do vidro pela inteligência que lhes não toca. E a beleza deles, como a de tudo, é isto um movimento por detrás de um vidro, um brilho de corpo dogmatizado por uma clausura.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

 

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por Maria Almira Soares às 13:14


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