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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
A SOLUÇÃO DE CONTINUIDADE
Tratava-se de um debate televisivo sobre uma grave questão política. À volta da mesa, cinco pessoas com pontos de vista diferentes iam manifestando as suas opiniões acerca dos últimos desenvolvimentos da situação. As interpretações das atitudes dos políticos envolvidos bem como do teor das suas declarações eram as mais diversas. Diversas eram, também, as avaliações das previsíveis consequências. A moderação não estava a ser fácil, embora tivesse sido confiada a uma jornalista muitíssimo experiente. O debate tinha atingido grande animação: o assunto estimulava a verve dos comentadores que produziam frases bombásticas e juízos implacáveis, logo reproduzidos em citações de rodapé. Como se tivessem perdido a noção de que o destinatário do programa era um vastíssimo número de portugueses ansiosos de compreenderem o que se passava, os intervenientes interrompiam-se mutuamente e chegavam até a interromper-se a si próprios, cavalgando uma nova visão que acabara de lhes surgir. As ideias esboroavam-se no gosto da interpelação e da provocação e raramente um raciocínio era conduzido a uma conclusão clara e prestável. Foi, então, que se ouviu uma tossidela e, com uma calma forçada na voz, alguém disse:
— Quanto a mim, no meio disto tudo, há que destacar um aspeto muito positivo: num momento em que é preciso salvaguardar o valor da estabilidade, é indubitável que a posição tomada pelo primeiro ministro trouxe uma solução de continuidade.
— Solução de continuidade?! E isso contribui para a estabilidade?! Não, claro que não houve solução de continuidade, mas pelo contrário, a continuidade ficou assegurada.
Mais ninguém disse nada. Sentia-se no ar a presença de algo que ninguém sabia como verbalizar de modo a não pôr em xeque o engenheiro Marques Serafim que deixara escapar aquela fragilidade linguística. Os olhares mudos cruzavam-se: uns confusos, outros alarmados. Havia quem não conseguisse esquivar-se a um sorriso depreciativo. O silêncio extemporâneo estava a tornar-se insustentável. Iria o debate encaminhar-se para uma perturbadora solução de continuidade?
Afinal, não. A moderadora era realmente muito experiente. Manipulava na perfeição a arte de reforçar ou dissolver o rumo que a dinâmica da discussão ia suscitando. Além disso e como convém a um bom jornalista, era também profunda conhecedora da língua portuguesa. Tendo compreendido o equívoco gerado pelo uso errado da expressão solução de continuidade, antes que o estrago fosse maior e o tema do debate degenerasse da política para a correção linguística, não hesitou em lançar um novo dado forte e provocatório. Como se viesse de uma distração momentânea provocada pela recolha de novas informações presentes no seu monitor, atirou:
— Meus senhores, acabamos de saber que, segundo fontes credíveis, o Presidente se prepara para dissolver a assembleia.
O efeito foi o esperado. Nunca mais ninguém se lembrou da solução de continuidade e o debate foi retomado em intenso clima de exaltação. Ela sabia que, atirando uma acha destas para a fogueira das opiniões, até os espectadores mais atentos se esqueceriam da perplexidade do momento anterior. A fragilidade linguística demonstrada dissolver-se-ia no tumulto das vozes encapeladas. O programa estava salvo.
Contudo, desligados os microfones e as câmaras, reacendeu-se no estúdio uma outra discussão. A pedra tinha ficado no sapato de alguém que não se conteve...
— Então, ó Marques Serafim, você diz que com a nomeação da ministra, houve solução de continuidade?!
— Claro! Ela vai continuar exatamente a mesma política do anterior.
— Mas você sabe o que quer dizer solução de continuidade?
— Nem é preciso pensar muito. Está à vista. As palavras estão mesmo a dizê-lo..
— Ah! Você é dos que se fiam nas aparências... Olhe que não, olhe que não. Solução, na expressão solução de continuidade, quer dizer dissolução. De dissolver. Dissolver, ou seja, interromper a continuidade. Quando dizemos que houve solução de continuidade, queremos dizer que a continuidade foi interrompida. Aprenda, que eu não duro sempre!
— Glup! Ah, sim? Olhe, não sabia. Não fazia ideia...
E o engenheiro Marques Serafim engoliu em seco, pegou nos seus papéis e, apressado, saiu do estúdio.
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