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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Quarta-feira, 15.01.14

UMA VIAGEM À ÍNDIA DE GONÇALO M. TAVARES

 

Retrospetiva das leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:

ESTE É UM LIVRO ABSOLUTAMENTE NOVO. 

 

Ir à Índia em busca da sabedoria e do esquecimento, num livro que vai por mares literários nunca de antes navegados, e acabar  não na precaução contra a inveja como fez Camões, mas no tédio de um velho rádio que permanece avariado. Lendo esta rocambolesca viagem à Índia de um homem chamado Bloom,  contada num discurso que só por si incorpora uma miríade de viagens que sempre estão a ocorrer no pensamento de quem a narra, podemos demorar a procurar-nos nos meandros discursivos ou ir aventurosamente atrás dos percalços do homem chamado Bloom. Ou as duas coisas. Ou, sobretudo, podemos inventar leituras novas, porque este é um livro absolutamente novo. Historicamente novo, planta-se no que aqui, Portugal, já se escreveu, como uma espécie transgénica, seiva literária onde correm átomos de Camões, sim, mas também de Pessoa, Fernão Lopes, Gil Vicente, Garrett,  António Vieira: Camões e a poética do desenrolar da narrativa longa; Pessoa e as palavras a pensarem os próprios pensamentos; Fernão Lopes e a arte contrapontística de ínfimo pormenor/plano aberto; Gil Vicente e a graça, o riso; Garrettt e o vício da anotação paralela, divergente; António Vieira e as metáforas poderosas. Toda uma história literária num livro absolutamente novo que não se envergonha de exibir a grade sobre que escolheu repousar: Os Lusíadas. Numa ponta da sua dialética, estão as camadas de Lusíadas que o uso foi decantando sobre o livro de Camões, mas a outra ponta fica aberta ao mundo de divisões móveis que é um homem chamado Bloom. Num itinerário de melancolia, porque “Já se ia o sol ardente recolhendo”, Gonçalo M. Tavares ousa usar o poema de Camões como coisa ordenada que desordena.

Chamam-lhe, às vezes, romance, mas... em verdade, como dizia Garrett das Viagens..., “neste inclassificável livro das minhas viagens”... Vivemos num mundo de híbridos. Definitivamente acabaram os puros. Mistura nova. Aroma novo. O clássico foi o livro mais jovem, porque se impôs, pela diferença, a tudo o que existia antes, diz Italo Calvino. Estamos a assistir ao nascimento de um clássico que nos conta não um tempo nem um espaço, mas o encaixe perfeito do espaço no tempo “como se a terra fosse uma extensão temporal”, porque o homem que nela vive, sim, é tempo: relógios falantes, nós todos. Para sintonizar este livro, precisamos de consertar o nosso velho rádio. Ou inventar outro. Um livro fundador.

 

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por Maria Almira Soares às 21:34

Quarta-feira, 15.01.14

TROCA DE PALAVRAS

 

QUE BELO SERÃO!

 

   Alfredo ia continuando a ler o jornal em voz alta para a sua mulher que, sentada no sofá habitual, fazia crochet. Tinham desligado a televisão, cansados das luzes e das cores e das vozes que começavam a aborrecê-los. Alfredo optara pelo preto e branco do jornal e Estela, a mulher, pedira-lhe que lesse em voz alta. Não era a primeira vez que tentavam esquecer a lenta batida do relógio, nas noites de inverno, procurando, no jornal, motivos para acaloradas trocas de palavras. A dada altura, interessando-se por uma notícia, a voz sonora do Alfredo anunciou:

— “Egito condena interferência iraniana após derrubada de Morsi”

Iria ler a notícia completa? Estaria, a sua mulher, interessada naquele assunto? Calou-se à espera de uma reação.  Ora, nesse preciso momento, Estela, absorta no desenho de napperon que lhe servia de modelo, procurava não se enganar em nenhum dos pontos necessários. Tão abstraída estava que, do que ouvira, apenas captou o sentido das últimas palavras e, sentindo-se  atingida no seu gosto pela correção linguística, imediatamente proclamou:

— Não é “derrubada de”, é derrubada por. Estes jornais!

Sempre se orgulhara do seu português impecável. Alfredo, que, em matéria linguística, nunca deixava de se submeter à opinião da mulher, num tom levemente interrogativo, releu em versão corrigida:

— Egito condena interferência iraniana após derrubada por Morsi?!

Mas Estela, arredado agora o crochet e considerando a frase completa, voltou à carga:

— Não, não está bem...

Alfredo, um tanto perplexo, ainda disse:

— Realmente! Derrubada por Morsi? Mas, então não foi o Morsi que foi derrubado?!

— Claro!

Na falta de outro entretenimento, começavam a animar-se com aquele princípio de discussão. Pareciam duas crianças competindo na busca da solução de um problema. Alfredo, mastigando a leitura a meia voz, repetia martelando as palavras:

Egito... condena... interferência... iraniana... após...

Subitamente, Estela, saindo do seu mutismo reflexivo, quase gritou:

Derrube!

— Derrubo o quê?! Enlouqueceste? E agora tratas-me por você?!

— Não, tu não derrubas nada. O problema é que já está resolvido.

— Está?! Qual é?

— Sabes o que é? É a ignorância e a mania de reproduzir literalmente os comunicados das agências. Se lá está “derrubada”, fica mesmo derrubada sem sequer pestanejarem. Passa cá o jornal.

E leu a última versão do título, finalmente corrigido graças ao seu sólido e resistente conhecimento da língua portuguesa:

Egito condena interferência iraniana após derrube de Morsi, assim é que é!

Ah! Esse derrube. Mas tens a certeza de que isso existe: o derrube?

— Oh, Alfredo, francamente! Tu não sabes? Nunca ouviste dizer o derrube do governo, por exemplo? Só no português do Brasil é que se diz derrubada. Provavelmente a notícia provinha de uma agência brasileira; assim vinha, assim ficou.

Sorriam. Pareciam agora ambos contentes por aquele serão, a princípio tão sonolento, finalmente ter ganho alguma animação.

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por Maria Almira Soares às 14:01


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