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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Um livro para ler como quem desce um rio: navegar na corrente verbal, sentir as mudanças do seu fluxo, olhar a variedade das suas margens, estremecer com o abalo das suas várias profundidades, rolar na força do seu caudal: surpreendida, reconhecida, comovida. Reportagem, história, memória, atualidade, arquitetura, urbanismo, ciência, filosofia, literatura, ironia, poesia, geografia, humor, crónica, política, petite histoire, anedota, quotidiano, mito, transcendência, vida, trágico, morte, pensamento, pensamento novo, original: tudo numa corrente associativa cujo eixo é um rio. As águas moventes do rio sacodem fronteiras e conotam esta maravilhosa mistura. Entre nascente e foz, que sentido o da corrente, que sentido o da leitura? O paradoxo de, ao viajarmos para o fim, nos aproximarmos do princípio. O jogo de cada paragem ser uma viagem: parados no espaço, avançamos por diferentes sedimentos da História, numa nova versão do movimento ilusório das margens. Cada ponto da perene corrente do rio é a nascente de vários tempos, trilhos de outras perenes correntes: mentais, memoriais, históricas.
Leitura-viagem em que cada viajante terá o seu ritmo, o seu andamento, fará as suas pausas…
Eu paro aqui: «Talvez toda a viagem se oriente para a origem, em busca do seu próprio rosto e do fiat que o trouxe do nada.» E, habitante de vários rios, deixo-me ficar a olhar, a pensar…
Retrospetiva de leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:
Não sei se por influência de Homero, a esta «história inverosímil do regresso a casa», o leitor chega in medias res e é levado numa reconstituição do «acontecido», através de uma narração em jeito de memorando, que desfia a história como no canto de um aedo.
No entretanto e em dispersão da intriga relatada, micro-organismos estranhos à ficção, vão segregando o registo do real, do atual; produzindo a inserção meticulosa do romance nos dias de hoje, numa ligação insidiosa que, ao fechar do livro, feita a leitura, induz a pergunta, quiçá o telefonema para a Gulbenkian, a perguntar: — Então, essa exposição, quando é que abre?
A literatura a sugerir à vida (de onde afinal ele veio) que continue o livro.
Em modo de conversa-relatada, chegam-nos informações, conhecimentos, História, roteiros, ideias, abatendo o pluricromatismo próprio da encenação viva de uma intriga. E chega, ainda, a aridez dos dados económicos, financeiros, políticos, quase em jeito de manual, de relatório, de registo documental.
A escrita é limpa, clara, direta, corredia como tinta, fazendo o livro parecer um desenho. Em coerência com o explícito e sublinhado lugar dado ao diálogo com as artes plásticas. Uma escrita muito visual e, daí, um livro muito espacial, ambiental, onde se vê Lisboa. Não a Lisboa social, mas a Lisboa arquitetónica, cultural, imaginária, passada, a da herança, a das raízes.
E, em Lisboa, na cidade: a Mulher. O Homem. A Casa. A Arte. O exercício da imaginação sobre o conhecimento: a Arte. Mas também, o casamento, a mãe, o pai, a família, os filhos. E as suas submissões, em contraponto com a liberdade do artista, da criação artística. E a doença, os dramas, os conflitos. As coisas fundamentais, sem pitoresco nem anedótico. Comovente, por vezes. Uma rede de relações familiares, amorosas, divididas pela linha de fronteira homem/mulher.
E um gato.
E o amor: entusiasmado pela ação e pensamento, a criação a dois, as referências literárias, artísticas, culturais.
E a morte. E a obra póstuma. A posteridade. A herança. O espólio.
E um suave feminismo ao contrário de Penélope.
E a homenagem, preito, elegia, a uma cidade: Lisboa.
Uma glosa de Ulisses, o grande arquétipo do regresso como lugar do reencontro, ou não, entre o homem e a mulher.
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