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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Terça-feira, 21.01.14

TROCA DE PALAVRAS

 

A POPA E A POUPA

 

   Lá iam os dois a caminho da escola: o Mário e o Jorge. Andando e conversando. Era um hábito seu, este de se fazerem companhia durante o trajeto entre a casa e a escola. Quem não os conhecesse bem ficaria certamente curioso sobre as razões da sua amizade, pois a sua aparência não fazia supor nenhuma proximidade: o Jorge, alto e magro, andava sempre vestido e penteado de um modo atrevido e inovador; o Mário, baixo e gordinho, era um modelo de menino alinhadinho, desde o cabelo até às botas. Enfim, o Jorge parecia um rapaz todo prafrentex  e o Mário um autêntico betinho. Mas, de facto, davam-se bastante bem, apesar de tão diferentes exteriormente. E, juntos, divertiam-se bastante. Ah, mas havia ainda outra diferença: o Jorge era muito bom em Português, sua disciplina preferida; já o Mário era um especialista em Ciências Naturais e andava sempre a farejar a presença de algo novo na Natureza, para pesquisar, analisar e organizar mais uma das suas já famosas fichas.

Ei-los em plena expedição comandada pelo Mário: vai mostrar ao amigo e fotografar um pássaro bem esquisito (dizia ele). Descobriu-o no campo, empoleirado num arbusto. E têm sorte: lá está o pássaro. O Jorge, depois de o mirar e remirar, concorda:

— É bem esquisito! Parece ter uma moita de penas no alto da cabeça! Sabes como se chama?

— Não. Mas isso resolve-se facilmente.

E o Mário saca da máquina fotográfica e, zás, fotografa o pássaro.

— Quando chegarmos a minha casa, passamos esta imagem para o computador e, depois, é só pô-la na pesquisa do Google.

Ficam ainda algum tempo por ali a fazer as suas observações e, às tantas, os olhos do Mário começam a balançar: da cabeça do Jorge para a cabeça do pássaro; da cabeça do pássaro para a cabeça do Jorge e:

— Pensando bem, se calhar, chama-se Jorge...

— ‘Tás parvo?

— Que queres? Tu, com essa poupa no cabelo, pareces mesmo...

E desata a rir. Mas o Jorge, que não acha graça nenhuma, resolve dar por terminada a expedição:

—Vamos para tua casa.

Já em casa, ligado o computador, num abrir e fechar de olhos ficam a saber que o espécime descoberto se chama poupa e o Mário não resiste:

— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!  Eu não te disse?

— Não me disseste o quê?

— Não se chama Jorge, mas quase. É poupa! Como a poupa que tu tens no cabelo! Ah! Ah! Ah!

— Eh, pá! Não gozes. Para lá com isso.

Mas o Mário está imparável e, sorrateiramente, resolve acrescentar na sua ficha sobre a poupa uma observação muito especial.

Observação: para além de pousar nos arbustos, também pode ser visto no cabelo de um rapaz chamado Jorge.

Depois, vira-se para o Jorge e, com um ar malandreco:

— Lê lá isto para veres se o português está correto.

Muito inocentemente, o Jorge põe-se a ler a ficha, emenda um ou outro errito, mas... quando chega àquela observação...

— Apaga já isto, pá!

— Calma. Não te chateies. Estava só a brincar. Claro que isso é para apagar.

E, sem perder a malandrice risonha do olhar, o Mário finge estar a tratar do assunto, mas...

— Pronto, já está. Podes confirmar.

Correção: a poupa do cabelo do Jorge é demasiado grande para ser um pássaro; o Jorge tem na cabeça a poupa de um navio.

— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

— Afinal, sempre achas graça.

— Graça? Desta vez quem se vai chatear és tu.

— Chatear-me?! Porquê?

— Porque quiseste armar-te em piadético, mas quem está a achar graça ao teu erro sou eu.

— Qual erro? Não estou a ver erro nenhum.

— Oh, Mário, poupa-me! Os navios não têm poupa, têm popa.

— ‘Tás a gozar! Ainda noutro dia li na internet que o couraçado Bismarck foi atingido na poupa por um torpedo...

— E despenteou-o? Ah, ah, ah! Na internet!... Há cada calinada na internet! Tu de pássaros podes saber muito, mas, em português, ninguém me bate. Se eu digo que a parte de trás do navio é a popa é porque é a popa. Os navios não têm poupas! Nem de cabelo nem de pássaro.

E eis que o Mário se rende à sabedoria linguística do amigo. No fundo, está-lhe agradecido. É que não tem mesmo graça nenhuma fazer descobertas, mas depois registá-las em mau português. Mesmo que seja a brincar...

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por Maria Almira Soares às 21:55

Terça-feira, 21.01.14

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

 

Se Pessoa deixou Reis no Brasil, é possível o seu regresso. Inventa-se o regresso, fecundo motivo literário. Se Pessoa escreveu, nas odes de Reis, um nome de mulher, Lídia, é possível a mulher. Inventa-se a mulher, fecundo motivo literário. Tão fecundo que é multiplicável: as mulheres. Fernando Pessoa também escreveu, nas odes de Reis, o nome de Marcenda. Se Pessoa deu a Reis um sentido doutrinário, é possível um olhar sobre a realidade. Desenvolve-se o olhar de Reis sobre o mundo. E inventa-se o lugar de transitividade desse olhar: Portugal, Lisboa, 1936. E inventa-se ainda, para melhor execução desse exercício de relação com o “espetáculo do mundo”, um Reis transitivo. Inventam-se caminhos, coisa profundamente literária. E fantasticamente fecunda: caminham os pés, caminham os olhos, caminham as mãos, caminham os pensamentos e as emoções, numa certa geografia física, numa certa geografia humana, na geografia interior do desejo. Regresso, mulher(es), olhar, caminhos, pensamentos, emoções: tudo a construir-se num plano de elaboração narrativa cuja primeira pedra, o primeiro se, o do regresso, se vai desdobrando a partir de uma rede de múltiplas encruzilhadas, umas de maior angular, outras mais reticulares, numa rede microssemântica, por vezes quase invisível a olho nu, que alimenta o corpo do animal literário. Há ses bem visíveis, literais, grafados, legíveis, mas há, por trás, um poderoso silêncio criador, habitado por outras audácias, ses implícitos que se avolumam como o nácar à volta do grão de areia na escuridão da ostra, suspeitas intromissões da matriz autoral: clandestino, Saramago também passeia pela sua Lisboa de Reis. Só perante o real se pode lançar um se ameaçador, porque só o real pode ser destruído; só a morte permite a ressurreição; só a verdade permite a mentira; só os acontecimentos permitem a ficção. Por isso, a rede de invenções se alicerça numa base factual feita do real, da morte, da verdade, dos acontecimentos históricos. E onde vivem ainda o real, a morte, a verdade, os acontecimentos do ano de 1936? Na leitura incessante dos jornais da época. Explícita ou implícita fonte documental, a leitura é uma outra transitividade que vai permitindo à ficção respirar e, por vezes até, enlouquecer: a leitura do jornal, da carta, do romance, dos poemas, vai dando fôlego à corrente ficcional, porque gera encruzilhadas que tecem o espanto, a concordância, a discordância, a tristeza, a alegria, a dor, a perplexidade, o medo, a indiferença, a prosápia… coisas com as quais se faz literatura. Neste romance, só Lisboa e Pessoa não são de papel, mas Pessoa está morto e Lisboa está moribunda. Reanima-se Pessoa pela metáfora e, pela metáfora, mantém-se Lisboa na translucidez da sua agonia, romanesca transfusão de sentidos, densamente habitada pela ironia. E, já que a metáfora e a ironia são coisas literárias, aí temos um Pessoa e uma Lisboa fantasmáticos. Fantasmas que, ainda assim, vivem. Onde e como, entre quem, vivem estes fantasmas? Sobre Lisboa, está sentado um sapo, horrendo e engravatado, que a respirar não deixa, que a não deixa pulsar livremente. Sobre Pessoa, hipotecado à morte, pende a aprazada sentença do fim. Para o resto, vai-se à gaveta dos recortes: os seres de papel, habitantes de jornais antigos, de poemas antigos, Reis, Lídia, Marcenda… E, da leitura, se faz literatura. Da melhor. Não há melhor Lisboa moribunda do que a que aqui se faz. Não há Pessoa mais fugidio e impróprio (ou seja autêntico) do que o que aqui se lê. E como se faz tal transferência? Faz-se, sobretudo, com aquela coisa que era costume dizer-se da episódica falta de obediência gramatical de Camões: — Liberdades poéticas! Que magnífica liberdade poética é O ano da morte de Ricardo Reis!

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por Maria Almira Soares às 14:27


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