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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Retrospetiva das leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:
A tragédia. O caos violento. A fuga. A guerra. O retrato do colono português em África: pobre, pouco instruído, esforçado no trabalho, com ambição de subir na vida, conservador, racista... A dupla difícil adaptação: a África (o clima); à metrópole (“Isto é que é a metrópole?”): as memórias perdidas e achadas e perdidas, estranhadas. A fuga real e a fuga mental (“mandar no pensamento”). A teia das posições políticas num momento de radicalismos ideológicos. Os retornados, seiscentos mil, feridos de um pecado original que não assumem, sentindo-se antes vítimas. A complexidade humana de uma situação violentamente crítica. A arte de manter a tensão e a coerência da voz adolescente que narra, evoca, sonha, em linha cronológica/em linha associativa desde o medo até à afirmação e, assim, faz o retrato social e íntimo de um quadro da nossa História recente. Com as suas raízes no real, na História próxima, implicando as memórias dos que o viveram, o retrato de um momento que o país viveu: o do regresso daqueles que ficaram conhecidos como retornados. Tema denso em que cabem a rutura, o desenraizamento, a morte dos sonhos, no contexto dramático das independências em África e da revolução em Portugal. A urgência da mudança em ambiente de insegurança, de violência, de instabilidade geral. O ponto de vista de Rui, um adolescente, um ser em mudança desregrada, é um olhar cheio de medos, de interrogações, de dúvidas, de inseguranças. O adolescente enclausurado na ilha familiar rodeada de desconhecido, de incertezas, de ansiedades. O olhar adolescente — que seleciona uma visão muito própria, uma atenção, uma curiosidade, juízos, registos de pormenores — implica uma sabedoria inexperiente mas desperta, giza uma estratégia de sobrevivência, de salvamento do naufrágio geral. Assim, desenha uma geografia dos lugares, dos climas, dos ambientes, dos sentidos, das cores, dos espaços, das vozes. E um humor sobre as coisas: sombrio, desesperado, rebelde, desorientado, mas crítico, cáustico, por vezes violento. Um outro olhar, mais distante, consegue insinuar-se no olhar adolescente sem lhe afetar a coerência. Uma visão reflexiva e até irónica (na criação das situações) que não é só o presente, a urgência, a aflição, o inevitável pragmatismo, a necessidade de adaptação. Um olhar sobre (e não de) o que é pontual, as peripécias, a corrente do acontecer que condicionam o universo narrado. Não propriamente uma visão política, mas uma visão humanamente interessada que ordena a sequência das ações e das reações, que escolhe as palavras. Esta visão não se manifesta; antes revela o essencial para lá dos pormenores: o sofrimento, o roubo dos sonhos, a ausência, os silêncios, a violência. Foi esta perspetiva humanista que escolheu a visão desarmante do adolescente sem condições para expandir o seu ser e a quem é mais difícil o conformismo e, deste modo, se reforçou. Não se detetam grumos, estranhezas, corpos espúrios, no fluir das palavras vividas, pensadas, ditas, temidas, de um adolescente apanhado na voragem da História. E, no entanto, nesta massa narrativa de uma só voz, são bem nítidas as várias personagens, as íntimas experiências humanas, as situações tensas. Este difícil mas bem conseguido equilíbrio revela a segurança e a firmeza da construção deste romance.
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