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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Retrospetiva de leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:
A LerDoceLer leu mais um livro de Mario Vargas Lhosa: O Sonho do Celta. Muito diferente da Conversa na Catedral? Talvez nem tanto! Muito diferente na sequencialidade da escrita que é, aqui, a tradicional e sem aquele constante reticulado de alternâncias próprio da conversação. Aqui a organização do discurso é linear. Aparentemente, também diferente na temática de superfície: lá, o Peru e as gentes peruanas (a América Latina); aqui, a Europa (germânica, britânica, céltica) e as suas possessões coloniais (quadrante de interseção com a América Latina: a selva amazónica peruana). Lá, uma época mais próxima da atualidade; aqui, maior distanciamento histórico. Lá, uma relação mais próxima com a experiência vivida do autor; aqui, maior poder de investigação, de reconstituição, de documentação. Lá, uma figura, Zavalita, que se acomoda (para não usar outra palavra mais forte), cuja narrativa é a do acomodado, do desistente, do sobrevivente; aqui, uma figura heróica, idealista até ao fim, vítima do seu idealismo. Mas há um ponto de ligação temática fortíssimo, tema transversal em Llosa, que podemos referir com as palavras usadas para fundamentar a atribuição do Nobel: ambos «fazem a cartografia do poder.». É uma questão fulcral neste livro: o poder colonial; os excessos generalizados do poder colonial; um poder criminoso à luz das próprias leis coetâneas e a dificuldade/impossibilidade de o criminalizar e justiçar dentro do quadro legal. Os crimes coloniais execráveis sobre os quais se fez a riqueza da Europa (o ciclo da borracha, do marfim, o tráfico de escravos, e muitos outros…); o poder colonial e a sua perda: a Europa, uma vez libertadas as suas vítimas coloniais, tende a voltar a ser pobre; a relação poder/trabalho… o poder patronal. Vargas Llosa escreve este livro motivado por uma figura histórica — Roger Casement — cuja vida é plena de virtualidades romanescas: pela sua história pessoal mais íntima; pela sua biografia aventurosa; pela própria história do seu corpo doente; pelas suas ideias; pelo seu perfil psicológico.
Casement é a figura polarizadora, um lugar distributivo de vários tópicos: o nacionalismo irlandês; a conjuntura geopolítica da 1ª Grande Guerra; o ciclo da borracha na colonização belga do Congo e a exploração da borracha na selva peruana (e aqui lembramos A Selva de Ferreira de Castro, outro livro extraordinário); as fraquezas/grandezas dos círculos intelectuais britânicos e irlandeses…mas também questões éticas, morais, sentimentais — toda a complexidade do humano como é próprio das grandes obras. Senhor desta temática poderosa, o que faz Llosa? Verdadeiramente não faz um romance. Um romance puro. Mas uma coisa bastante aproximada de uma biografia. Há uma fidelidade aos factos e uma linearidade cronológica da narrativa, dentro de cada segmento que a constrói, que são próprios da biografia. Embora romanceada, dramatizada através da criação de personagens, da invenção de diálogos e cenas, do desenvolvimento da psicologia das personagens, dos seus sonhos, dos seus pensamentos. Um livro que, entre a ficção e a História, talvez esteja mais próximo desta do que daquela. A sua espessura ficcional não é grande. Talvez seja mais difícil escrever um bom livro sobre um argumento pré-existente tão sólido, do que uma pura ficção em que tudo é, à partida, instável e manipulável. Neste livro de temática tão sólida, a escrita continua a ser arrebatadora, a fazer-nos ver e sentir na pele e em todos os sentidos os mundos narrados. É grande literatura. Não é apenas uma transparência lançada sobre a História, uma janela sobre um Casement historicamente documentado, mas tem a espessura de uma escrita que nos dá uma visão, que nos interpela, que nos coloca em situação. É uma leitura cheia de motivos de interesse: dá a conhecer factos que possivelmente ainda não conhecíamos; revela outros ângulos, pormenores, de figuras que eram para nós nomes conhecidos a que associávamos uma imagem; aborda a história do nacionalismo irlandês e o tema da Grande Guerra; mergulha no Humano e nas suas obsessões, fraquezas, crimes, mentiras, cobardias; retrata a enormidade de crimes contra a Humanidade; constrói a figura de um homem, Roger Casement, o celta que tinha um sonho e que morreu por causa desse sonho. É perigoso ter um sonho radicalmente obsessivo que tudo ultrapassa, que se sobrepõe a tudo, um sonho nascido num momento de lucidez ou de loucura, o momento da revelação da criminosa exploração colonial da borracha e da criminosa dominação britânica da cultura celta, do apagamento da cultura do negro e do índio como do apagamento da cultura celta. SER RADICAL É MORTAL? O excesso é perigoso, porque, em última análise, imperam as leis da sobrevivência. Há uma razão, legitimada pelos denominadores comuns dos juízos maioritariamente aceites, que não aceita, condena irremediavelmente, o excesso: perante a razão patriótica, até a razão particular da amizade soçobra, pelo menos em público; perante a moral familiar publicamente aceite, um comportamento que se singulariza é sentido como prejudicial e denegado. A leitura llosiana de Casement articula o excesso, o idealismo, a obsessão com a perda. Narra uma dimensão do Poder que é a das vítimas individuais das grandes ironias da História. Afinal, Casement vinha desaconselhar a Revolta da Páscoa, mas foi apanhado nas voltas da História. Afinal, havia uma boa dose de fantasia no que Casement escrevia nos seus diários, mas Casement esqueceu-se de os esconder ou destruir, permitindo que fossem tomados como verdade. Roger Casement é uma figura trágica, cuja grandeza não resistiu aos seus pequenos erros e fraquezas. Os heróis trágicos serão obrigatoriamente ingénuos?
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