Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Retrospetiva de leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:
Esta é uma história erguida sobre o gosto profundo de Umberto Eco pelo colecionismo de textos e livros raros e antigos, sobre a sua entranhada bibliofilia, mas também sobre a sua grandeza como estudioso da leitura, pensador da receção do literário, e até sobre o seu gosto pela gastronomia, cúmplice da vida e da morte, como uma espécie de vitalidade cega guiada pelos sentidos, pelo corpo. Como numa iguaria sublime, o segredo deste livro está no ponto e na mistura. O ponto e a mistura são obra da memória, da recuperação e do apagamento da memória do capitão Simonini enquanto refaz o caminho: o rasto de uma vida vivida e de vidas testemunhadas.
Tudo começa com a transposição de uma porta. Cruzamos uma porta para lá da qual se vai desenrolando o fio enredado das histórias. Seguimos, atrás de um movimento narrativo (uma vis narrandi) por vezes semelhante a um travelling, um caminho em busca do destino, da identidade de uma personagem, Simone Simonini, como se fôssemos a sombra a que é permitida uma aproximação intrigante e reveladora. À porta do romance, está um ente trifauce: o indivíduo idoso que escreve, personagem transformadora da memória em escrita; o guia dos labirintos, narrador que nos conduz; e nós, os leitores que, uma vez aceite o convite da descida ao mundo obscuro da sua leitura, somos parte do romance. Esta porta romanesca, como os cofres dos tesouros antigos, abre-se com várias chaves semeadas no chão ladrilhado de histórias que vamos pisando. Uma delas é a chave psicanalítica da escrita como desvendamento, mise en abyme de quem, no seu escrever, se revela através da duplicação, da criação do outro e responde às grandes perguntas: — Quem sou? — Sou o que fiz? — Sou resultado da agregação dos outros eus que deixei pelo caminho? Nesta pesquisa, o passado, olhado com uma pluralidade quase-infinita de pensamentos, de interpretações, glosado em diferentes versões, umas ingénuas outras profundas, é uma paisagem sem fim. Nela se procuram as fundas raízes do que se fez, do que se foi e ainda se é e, assim, se desnuda uma rede de impulsos em expansão: — Onde está a minha memória-identidade, quem sou eu, quem é Simonini/Dalla Piccola? — Onde reside o sentido da História?
O material diegético deste romance é livresco: a literatura, a ficção, o livro, como catalisadores do real. Os textos antigos com suas descrições museológicas, taxonómicas, do que já foi vivo, são o substrato de culturas posteriores. O diálogo entre os escritos colhidos de uma vastíssima cultura oitocentista é a ação do livro de Umberto Eco que, num mundo de duplicidade, de simetria, de espelhos, de cruzamentos, de subterrâneos, de luzes, de raízes, canta um hino à verdade literária acompanhado pelo fascínio das cidades antigas, das leituras antigas. São as leituras que medeiam o olhar arqueológico sobre o homem e a cidade, escavam as suas camadas temporais numa arte suprema de manipulação do mistério.
Nenhuma história se conta a si mesma, é contada por um ponto de vista. Neste livro, há um ponto de vista sobre a cultura europeia do século XIX, sobre os cruzamentos de tendências culturais e dos seus conflitos, sobre os grandes movimentos históricos e suas manipulações, sobre a liberdade, a república, o comunismo, o catolicismo, os judeus. Visão dos tempos em que as guerras eram religiosas, porque a finança era religiosa. Linhas ou frescos da Comuna de Paris, das guerras da unificação da Itália, das eras de caos civil, dos segredos e dos mitos da História: o mundo dos serviços secretos, dos espiões, da informação e da contrainformação; o cinismo político; o terrorismo bombista; o crime; as modas; as teorias racistas; os padres; os políticos; os escritores; os maçons; os hebreus; as mulheres; a crença e a memória; as seitas; a demonologia; o ocultismo; o antissemitismo; a Igreja, os papas — os bastidores da História. Há, neste romance, um gosto acentuado pela história do falso, do falsário, da mentira, do poder maléfico da mentira, do poder do disfarce: a História, como uma sotaina com que vamos vestindo e despindo a nudez inicial e final, como um trajo que é marca deixada pelo caminho. Nas mãos impróprias de Simonini, estão depositadas as respostas para os grandes espantos: a amoralidade radical, a volatilidade da razão, a transformação de coincidências em causas. A História é, afinal, movida por patifes que se alimentam dessa pulsão profunda que é a necessidade de inimigo.
O modo arcaizante da escrita, que a tradução procura manter, combinado com a ilustração, cria uma leve patine de coisa antiga, ao estilo e ao gosto oitocentistas do folhetim farfalhudo, rocambolesco, numa mistura bem conseguida de erudição, humor e intriga. O tom oscila, por vezes, do folhetim para a balada, a saga, tornando-se mais lírico e até poético. Épico nas descrições de batalhas. O diário cumpre a sua natureza e fins, criando uma dimensão metatextual. Hibridismo, montagem de entes literários diversos como nos primórdios do romance. Fantásticos retratos individuais. A grande arte narrativa de saber ir semeando aqui, personagens que florirão além. Modalizações criadoras do efeito ilusionístico que paira entre a verdade e a mentira. O vocabulário pejorativo exorcizante de um passado escuro. A metamorfose fundidora da forma no conteúdo. Uma tremenda visão da História gizada pela liberdade romanesca.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.