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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Era uma vez um Poeta que não podia sair de casa, porque caíra do cavalo e tinha, por isso, ficado com uma perna doente. Para ficar curado e voltar a andar à vontade por aqui e por ali, passeando-se como tanto gostava, era preciso que a sua perna ficasse imobilizada durante algum tempo. E o Poeta lá se convenceu de que, durante as próximas semanas, tinha de ficar em casa. Felizmente, poderia continuar a fazer uma das coisas de que mais gostava: escrever! Foi então que uma história que, há muito tempo, trazia na cabeça começou a pedir-lhe para ser escrita: — Poeta, poeta, já que não podes ir ter com os teus amigos e falar com eles sobre as tuas ideias fulgurantes, escreve-me, escreve-me, por favor. E o Poeta, que gostava muito daquela história que até aí vivia apenas dentro dele no meio de muitas outras que tinha ainda para contar, disse que sim. Recostou-se numa daquelas cadeiras longas onde a sua perna doente poderia ficar confortavelmente estendida, absolutamente quieta para que o tempo a pudesse curar, e pediu que lhe trouxessem uma mesinha de pousar no regaço, o tinteiro, a pena e o papel e pôs-se a escrever. Era uma história muito triste, mas o poeta descobrira uma maneira muito bela de a contar. Desde criança que a conhecia. Quando era pequenino, o Poeta ouvia muitas histórias maravilhosas, contadas por velhas senhoras que ele amava. E olhava encantado para os retratos dos heróis que andavam a lutar pela liberdade. E sonhava. Sonhava com lutas e mistérios e com as belas palavras que os podiam contar. Num desses dias antigos, em que era uma criança sonhadora, o Poeta foi ao teatro. Era um teatro de feira em que os artistas saíam de uma barraca para, vestidos de cavaleiros nobres, porem fogo a palácios. E velhos prisioneiros resgatados, gritavam por vingança… E em que nobres senhoras altivas fugiam espavoridas. E o Poeta nunca mais se esqueceu desse teatrinho de feira em que as figuras, negras sobre a cor fulgurante do fogo, fugiam gritando. E não se esqueceu também do mistério que era a causa de toda aquela tragédia. Na altura mal o compreendeu! Mas, depois, já crescido, interessou-se, procurou saber, leu muito e ficou a conhecer em pormenor aquela história triste que agora estava a escrever. Amava cada personagem que o raspar do bico da pena sobre o papel ia fazendo viver. Vestia-as, dava-lhes gestos e palavras, movia-as, fazia-as rir e chorar. Entusiasmado, esquecia a sua perna doente, os passeios a cavalo e até os amigos que mandavam bilhetes a saber da sua saúde. Tinham saudades de o ouvir a proclamar belas ideias sobre o povo e sobre a cultura que o havia de salvar de ser ignorante e pobre. Durante duas semanas, o Poeta quase mais nada fez senão escrever. Se o pudéssemos ver, parecer-nos-ia uma estátua dos tempos antigos a que um poderoso mágico fazia mover imparavelmente a mão. Mas não havia mágico nenhum! Toda a magia estava dentro do pensamento imaginativo do Poeta donde borbulhavam as palavras que lhe agitavam o braço, ao escrever incessantemente, em sucessivas folhas de papel, aquela história que lhe pedira para ser escrita! Às vezes, o Poeta parava e punha-se a imaginar as cenas que ainda haveria de escrever. Fechava os olhos apoiava a cabeça na seda macia da almofada e sonhava. Foi durante um desses sonhos criativos que o olhar inteligente de uma menina esguia e pálida lhe apareceu e o começou a fitar insistentemente com o brilho de quem sabia coisas importantes que queria, ela também, contar. O Poeta tinha uma filha e, curiosamente, esta menina do seu sonho lembrava-lhe tanto a sua filha! Talvez porque sentia saudades dela, que vivia longe, num convento, que era também uma escola e para onde fora mandada depois que a mãe morrera. O Poeta tinha saudades e pena da sua filha que só via muito de longe em longe e lhe lembrava tempos passados de amores felizes. Talvez fosse por isso que ele sonhava com a menina de olhar inteligente e a ouvia, em sonhos, a dizer: — Deixa-me entrar na tua história! E o Poeta deixou. Quando de novo estendeu a mão para a pena que repousava de bico mergulhado no tinteiro, depois de delicadamente sacudir a tinta em excesso, emocionado, começou a contar de umas flores… Eram papoilas, que tinham murchado nas mãos de uma menina que andara a colhê-las num jardim… Chamava-se Maria.
Retrospetiva de leituras da comunidade de leitores LerDoceLer:
Desde a delirante visão da «alma do gafanhoto», captada por Puigmal, o adolescente em estado puro, até ao «entusiasmo triste», compensador das coisas perdidas com a entrada na idade adulta, Jorge mergulha numa corrente de experiências fundadoras, sempre em estado de interpelação: — Tem algum sentido, a morte? — Que sentido faz sobreviver? — Os encontros e as descobertas fazem que sentido? Percurso este que o leva até à consciência da palavra poética, traduzida pela grande metáfora dos SINAIS DE FOGO, a grande e perene metáfora do fogo.
Enquanto isso, nós, os leitores, vamos vivendo a grande metáfora da LEITURA: conhecimento; confronto; reflexão; perturbação; nostalgia; enternecimento; consciência do tempo; consciência antagonista do roubo do tempo; procura perplexa, imperfeita, irresolúvel, da difícil (impossível?) integridade, da verdade; dimensões adormecidas de que a pura atualidade lisa nos anda a espoliar. Este romance é uma viagem a três, triplamente diferenciada: a viagem da escrita literária do Jorge (autor); a viagem da busca existencial do Jorge (personagem); a viagem (que cada um saberá qual) do leitor de muitos nomes. Todos os temas essenciais estão neste romance. Não, dedilhados como quem quer seguir uma pauta prévia, mas amarrados no nó do problema que é estar vivo no mundo, sobretudo estar vivo adolescente/jovem-a-ser-adulto. Narrativa na primeira pessoa. A pessoa de Jorge. Dos Jorges: do que é de cena e do que é de Sena. Nem um nem outro deixam ficar, para a nossa leitura, um trabalho acabado, fechado, mas esta construção em aberto diz-nos que o tempo soberano nunca se fecha totalmente sobre a vida, ainda que se trate de um tempo fechado, morto. Da leitura deste romance, não trazemos apenas a lembrança de um cadáver que ficou na praia. Não. Muito além disso, estão os vivos sinais de um fogo mais vivo que o tempo: a dor e a alegria de ser-se humano sempre em construção. São, hoje, outros os ventos com que o ADN da História incendeia o fogo do nosso desenvolvimento existencial? Por certo. Mas sempre «lançando ao mar os barcos da vida». Da vida com os antes e os depois, as causas e as consequências, a instabilidade dos impulsos, o lícito e o extravagante, as tentativas e as tentações, sem mapa nem legendas. Jorge de Sena começou por chamar a este livro Aparição da Poesia. Depois, trocou o nome pela metáfora-substância poética: Sinais de Fogo. Trocou o nome pela rosa. Fez bem.
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