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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
A IDENTIDADE DA ENTIDADE
Beberricando uma bica, José Funcheiro falava ao telemóvel rindo de um riso que lhe enchia de rugas a cara envelhecida. Estava contente por se terem lembrado do seu nome que tão falado fora nos anos oitenta. Desligado o telemóvel, não conseguia disfarçar a impaciência. Esperava por Lúcia Bessa, a jornalista que tinha combinado encontrar-se com ele ali, na esplanada do quiosque do jardim da Granja.
Lúcia Bessa trabalhava numa revista especializada em atualidades musicais e coisas afins e, de momento, ocupava-se com um dossiê sobre antigas glórias de bandas-rock nacionais: procurava saber o que fora feito de nomes outrora famosos e como se tinham apagado da voz pública que um dia lhes repetira o nome incessantemente. Desta vez, ia entrevistar José Funcheiro, o músico que, um dia, fora amado pelos fãs sob o nome de John Frantic. Tinham marcado encontro para as 16 horas. — E já são quatro e meia! — remoía ele que, excitado com esta momentânea ressurreição de tempos em que os media não o largavam, se antecipara à hora marcada. Lúcia Bessa estava atrasada. Tomou outra bica, entreteve-se a seguir o saltitar de um pardalito a bicar migalhas caídas das mesas e... — Finalmente! — suspirou. A mulher que se aproximava da sua mesa era muito jovem e apresentou-se imediatamente como Lúcia Bessa, pedindo desculpas apressadas pelo atraso. Conversaram sobre os termos da entrevista e, ligado o gravador, a coisa começou. De vez em quando a jornalista não disfarçava o seu espanto: algumas respostas do músico causavam-lhe verdadeira surpresa, talvez devido à sua pouca idade, talvez devido ao facto de não ter feito grande pesquisa preparatória. José Funcheiro, esse, ia ganhando balanço e era-lhe difícil suster a avalanche de memórias....
JF — .... e nessa altura, os discos da banda de John Frantic, os Flying Boys, mantiveram-se nos tops por várias semanas.
LB —E resolveu chamar-se Jhon Frantic, porquê?
JF — Era moda, tinham mais saída os nomes ingleses... E, sabe, nesses tempos, nesse ambiente das bandas, a gente às vezes metia-se em coisas que não queria ver associadas ao nosso verdadeiro nome... Éramos muito novos... a família... essas coisas... Jhon Frantic era uma capa...
LB — Escondia uma entidade secreta...
JF — Entidade?! Bem, eu não era propriamente uma entidade... era um rapaz do meu bairro que gostava de tocar viola e, enfim... de fazer outras coisas que não queria ver associadas aos Funcheiros lá do bairro...
LB — E, nos concertos, nunca ninguém o surpreendeu gritando o seu verdadeiro nome? Nunca ninguém gritou Ó Funcheiro! Não desconfiavam da sua verdadeira entidade?
JF — Mas já lhe disse que...
LB — É que é uma questão que mexe com o público... Querer conhecer a vida pessoal dos artistas... A curiosidade de saberem o seu verdadeiro nome...
Por momentos que pareceram uma eternidade, reinou o silêncio e o ar enfastiado da jornalista, enquanto o músico remexia o cabelo e coçava a orelha, tique antigo: — Entidade?! Algo desconcentrado pela emoção da viagem mental aos seus tempos áureos, José Funcheiro não estava a ver bem que raio de confusão estava ali a armar-se. Calou-se a recentrar-se: — Que raio de conversa de surdos é esta?! — Que é que esta quer com isto da entidade?
Iria morrer ali, a entrevista?
Mas não. De repente, percebeu. Houvera uma troca de palavras. Lúcia Bessa, linguisticamente falando, metera os pés pelas mãos. O músico percebeu e simultaneamente apeteceu-lhe brincar um pouco: — Ah, és dessas que confundem o ‘tem a ver’ com o ‘tem haver’? Entremos no jogo. Alarguemos ainda mais essa confusãozinha. E, sem conseguir limpar completamente o tom trocista da voz e do olhar, como quem quer apenas adiantar mais informação sobre a sua carreira, pôs fim ao silêncio.
JF — Olhe, por exemplo numa altura em que a minha banda colaborou numa campanha eleitoral, tive oportunidade de trocar ideias com altas identidades. E sabe? Esses tratavam-me por Funcheiro! Esses conheciam bem a minha entidade!
E foi, então, a vez da jornalista, que era desleixada mas não destituída, ficar calada e parecer atrapalhada. Esta sarilhada de identidades e entidades, ainda por cima pronunciadas com ênfase e intenção, não era inocente. Tinha topado. — Aqui há gato! ‘Tás-me a dar música, não ‘tás? Tinha topado. Só não sabia muito bem o quê. Nem se o equívoco era seu ou era dele. Certo, certo é que, de repente, não se sentia à altura de dar cartas. Pelo sim pelo não, resolveu desarmar e entrar de mansinho.
LB — Sabe, já que falamos nisso... assim a talhe de foice... essa coisa das entidades e das identidades sempre andou baralhada na minha cabeça... Arrasto esta dúvida desde a escola. Às vezes sai certo, outras, nem por isso... são palavras tão parecidas...
Foi a vez do músico desarmar. Riu-se. Enternecido.
JF — Deixe lá! Não é grave. Todos temos os nossos erros de estimação.
Riram-se os dois.
LB — Mas você nunca confunde? Por acaso, gostava de tirar isso a limpo duma vez por todas... Você tem mesmo a certeza de como é?
JF — Por acaso tenho. Uma entidade é uma personalidade reconhecida publicamente como inserida e atuante numa certa área... as entidades judiciárias, por exemplo...
LB — Ah, pronto, está esclarecido... não diga mais... e a identidade de uma pessoa é que é o conjunto de elementos que a identificam, a individualizam, a distinguem dos outros, o nome, por exemplo...
Riram-se os dois, desempertigaram-se, e a entrevista prosseguiu muito mais descontraidamente. Conheciam-se, agora, melhor. E não é que, depois de tudo isto, até ficaram amigos?!
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