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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
O PORMENORZINHO
Tinham chegado! Tinham chegado as primeiras provas do seu próximo romance. Nessa tarde, iria atacá-las. E atacou. Como quem se prepara para uma tarefa aliciante, o escritor esfregou as mãos, inclinado sobre a resma de folhas de papel à sua frente. Chávena de café sobre a mesa, Antena 2 em modo pianinho, lançou-se ao trabalho de revisão que só não era uma grande maçada, porque ele descobrira um modo de o tornar estimulante: transformara-o numa luta linguística com o revisor da editora que já fizera as primeiras correções; descobrira o gozo imenso de apanhar em falha tão assertiva personagem. No passado, houvera já épicas sessões de teima e contra-teima de que saíra triunfante e que lhe tinham dado um gozo dos diabos. Neste campo, achava-se imbatível. E achava, também, que o revisor ia sempre longe demais e, às vezes, metia a pata na poça. Mas, desta vez, nada, estava tudo muito morno: folha após folha, a bica fora-se, a música tornara-se inaudível e nada! Nem um motivo para chamar o revisor a duelo. Quase bocejando, os olhos iam descendo texto abaixo e ...
— Alto! Alto, lá!
Não é que o revisor ousara o traço vermelho sobre o seu querido nefando?! Logo sobre o seu querido nefando! E não é que o substituíra por nefasto?!
— Nefasto?!
Talvez fosse sinónimo, talvez, mas era muito mais feio. Com aquela terminação em –asto, a cheirar a casa de pasto... Que horror! Nada como a nasalidade do seu nefando alongando-se pela lonjura como um eco! Desde a adolescência que o escritor adorava os sons nasais.
— Estes revisores são uns castradores da criatividade artística! Este, então! Verdadeiro osso duro de roer! Que mania, esta, de se arrogar o poder de escolha das palavras!
Rapidamente, traçou um risco sobre o risco e anotou: «É nefando. Fica nefando. Sem discussão.»
Só que havia um pormenorzinho. E, como diz o ditado, nos pormenores é que... O caso é que toda a linha temática do romance assentava num homem roído por medos supersticiosos... o caso é que o momento crucial da intriga, fatalmente aziago, ocorrera quando o homem muito supersticioso fora olhado por alguém que, com esse olhar, lhe amaldiçoara o resto da vida, achava ele. E era esse o olhar que o escritor queria nefando e o revisor desejava nefasto. E o sábio revisor sabia. Retornadas as provas à editora, ei-lo que resolve telefonar ao romancista:
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— ... Oh, senhor doutor (o escritor também era doutor), o olhar que amaldiçoou o seu homem não pode ser nefando, ou seja, ‘indescritível’. Nem sequer 'demasiado horroroso que não deva ser mencionado'.Tanto assim é, que o senhor gasta duas páginas a descrevê-lo e, nelas, entre outros qualificativos usa os adjetivos belo e doce, atribuindo ao paranoico terror supersticioso do seu homem a interpretação que dele faz. Não obstante, ele é, sim isso é que ele é, bastante nefasto: estraga-lhe completamente o resto da vida.
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O escritor correu ao dicionário, a que nunca recorrera a este propósito, enfeitiçado que estava pela amada nasalidade da palavra nefando e preso que estava à convicção antiquíssima de que nefando e nefasto eram sinónimos. Mas não eram. Ali estava, preto no branco.
— O raio do picuinhas do revisor tem razão!
Deu uma palmada furiosa no inocente dicionário e encaixou. O encontro tinha sido verdadeiramente nefasto. Encaixou, mas recuperou. Recuperou até muito bem. Era vê-lo, passados uns tempos, a invetivar um ecrã de televisão:
— Ó parolo, essa não é uma série de acontecimentos nefandos! Nefastos, pá, nefastos! Os acontecimentos são ne-fas-tos. Se fossem nefandos, tu não tinhas passado os últimos dez minutos a...
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