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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sábado, 15.02.14

AS EXCELÊNCIAS E AS REVERÊNCIAS

 

 

 

Um país de habilidosos, que sabem da arte sem estudo, em que curioso também significa o que exerce uma atividade sem a devida preparação, mas com muito jeito. Um país que sabe quanta água tem o mar, quantas estrelas há no céu e sobretudo como enganar o rei. Um país em que vigora a universalidade do preceito de «adoçar a boca». Este é o país que não gasta vinagre a apanhar moscas, mas também não as afugenta, porque, afinal, elas são de graça e acabam por entreter o olhar e fazer companhia. Faz da mentira um investimento. Especializou-se e até desenvolveu uma gramática: a gramática da mentira, assente no princípio fundamental da elasticidade semântica, em que todos os processos, de flexão, conjugação, declinação, são elásticos e indeterminadamente proliferantes. Vejam-se as fórmulas de tratamento: as excelências e as reverências; os doutores e os engenheiros; os magníficos e os meritíssimos; as donas e as senhoras; os vocês e os tus e os pás e os meus… Espantoso como há povos que conseguem passar a mão pelo pelo com um seco e quase universal you! Neste país não, neste país gastam-se carradas de cobertura mole e escorrente, brilhante e colorida, a declinar o capítulo lisonja da gramática da mentira. A lisonja é, neste país, tão entranhadamente gramatical que permite conjugar a excelência formal com a grave acusação moral: — Eticamente, Vossa Excelência deixa muito a desejar! E, se a gramática parlamentar o permitisse, poder-se-ia, até produzir este exemplo ainda mais significativo: — Vossa excelência, é uma besta! A gramática da mentira apresenta uma fonética tonal. Não basta dizer doutor. É necessário pôr-lhe a interjeição adequada e dizê-lo no tom exclamativo/admirativo certo: — Oh! Doutor! E uma pragmática rigorosamente diversificada, desde a chapelada, a pancadinha nas costas, o olhar delambido, até à complexidade da coisificação, ou seja, da passagem do gesto ao objeto, à lembrancinha, ao cartão, à prendinha, passando a revestir a modalidade icónica. Esta é arte ancestral de ir direito ao coração, que recentemente evoluiu para a conquista do target, pela criação da empatia.

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por Maria Almira Soares às 13:59


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