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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Domingo, 16.02.14

A BOA-NOVA DE QUE O VERBO SE FAZ VERBA

 

 

 

 

Houve tempos em que a relação de sentido entre a arte literária e as movimentações comerciais foi de antonímia. Nesses românticos tempos, as primeiras linhas da arte literária eram antónimas dos desprezados mecanismos da  venda de suas obras que conseguiam apenas reduzidíssimo espaço de interseção com a possibilidade de leitura. Mais tarde, depois de um esforço de evolução semântica, a palavra literatura passou a cobrir o engano e a ilusão da homonímia, desdobrando-se em vocábulos materialmente iguais para realidades diferentes, abrindo-se em dois sentidos paralelos que em nenhum ponto se encontravam: o da a arte literária e o do alinhamento verbal de histórias e historietas de consumo garantido. Tudo, literatura. Nesses últimos tempos, dentro do campo semântico da arte literária, as mesmíssimas palavras passaram a cobrir referências polarmente diferentes: assistimos à palavra escritor a servir, tanto ao difícil génio capaz de construir espantosos quadros de significação e expressão nunca antes lidos, como ao semianalfabeto ajuntador de fáceis palavras, costureiras de fatiotas por molde recortado de revistas quiosqueiras, para revestirem o imaginário de largas camadas de leitores. Tais equívocos, porém, ainda não satisfaziam os sumos visionários de um profícuo quociente alisador de algum resto material de divisão. E foi assim que, finalmente, segundo a fatal necessidade de que o um e o dois se cumpram no três, chegamos à era da grande convergência. Aquilo que nunca se encontrava alcançou, finalmente, o ponto infinito em que todo o espaço de diferença se anula. Tudo graças à descoberta da insuficiência do abuso ilusionisticamente homónimo de palavras como escritor ou literatura, tudo graças à descoberta de que não basta que a dita convergência seja tão-só nominal. Precisa de ser material, para que, em consequência, coisa verdadeiramente interessante, se torne capital e, então, se instaure a boa-nova de que o verbo se faz verba. Para isso, não basta investir — como acontece, por exemplo, na área da política — na elasticidade semântica das palavras. Para isso, é necessário intervir no real. Não basta alargar o nome é preciso mudar a rosa. A rosa tem de mudar. Há que convencer a rosa a ser o que fizeram do seu nome. Isto é, há que convencer a literatura de que, para ser literatura, tem de ser comercial. Obreiros e obreiras trabalham afanosamente para preencher o espaço alveolar entre arte e mercadoria vendável, segregando mandamentos a cuja obediência a literatura deverá o direito a ser carimbada como vendável e despachada a caminho dos leitores que avidamente a consomem. Assim, se sintetiza a mixórdia vigente entre fontes genuínas de energia criadora e formulários, crismados de inovação, e comprovadamente apetecíveis por largos segmentos leitores. Finalmente, depois de perderem o ângulo da divergência e mesmo o espaço do paralelismo, os dois vês convergiram: o vê da vanguarda literária (agora brilhantemente tutoreada pelos sábios da divina arte da edição) e o vê da venda, insondável ambrósia alimentadora da divina fusão: a aventura é agora garantida. Mudaram os deuses. Já não há «árvores onde o Longe nada tinha», já não há «os beijos merecidos da Verdade».

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por Maria Almira Soares às 17:46


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