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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
O SUF-ICSO
Belo fim de tarde de sol! Ninguém tem pressa de correr para casa. Depois de dias de chuva e chuva e chuva, brilham as esplanadas cheias de gente e boa disposição. Atropelam-se, vivas, vozes trazidas pelo leve vento que sobrou, amaciado, dos dias de tempestade. Molhos de pessoas acomodam-se em torno da insuficiente superfície das mesas espalhadas na calçada. Torna-se difícil a circulação de quem serve as bicas e os sumos! Exceto talvez ali, onde se avista uma raleira: espaço vago em volta dos dois homens, jovens, que aceleradamente mecanizam uma troca de palavras sem pausa, mesmo junto a outra mesa pouco habitada, em que uma cabeça grisalha e repousada se inclina, atenta ao vaivém das suas falas. Aos ouvidos do dono dessa cabeça silenciosa, um cavalheiro solitário a olhar o movimento citadino, é-lhes fácil colher pedaços das mil conversas circulantes. Mas, por alguma razão não despicienda, é à conversa masterizada pelos dois homens jovens que esses ouvidos preferem dar atenção. Trata-se de dois moços bem aperaltados, fatinhos caros, telemóveis caríssimos. Ou serão iphones? A tanto a sabedoria do dos ouvidos escutadores não chega. E que divertida que parece a atenção do cavalheiro grisalho! Vão-se notando, até, umas crescentes ondinhas de sorriso a desenhar-se sob o seu bigode aparadinho, à medida que o mecanismo conversador dos de fatinhos escuros avança...
...
— Estive, hoje, a estudar o nível resistencial do projeto e...
— ... mas já olhaste para a estrutura informacional que suporta a face observacionável da sua sustentabilidade?
— Óbvio. Como te ia dizendo, relativamente ao... Desculpa, tenho de atender: «Sim? [...] Ah, sim, o vosso relatório foi rececionado. [...] De momento, estamos a avaliar a sua capacidade integracional de associabilidades. [...]
OK. [...] Até, lá!.» Era o gajo da análise prudencial...
— Sim, mas ainda relativamente ao grau de positividade da linha percursional estabelecida, o projeto dá-nos confortabilidade...
— Mas não te esqueças dos fatores de contraproducência atuantes nas ações incentivacionais do consumo...
...
O do bigode aparadinho está prestes a chegar à gargalhada. Já teremos percebido porquê... De facto, está a tornar-se-lhe difícil resistir às cócegas que a intragável salsaparrilhada daqueles torcionários de palavras, tresloucados enxertadores de sufixos, fazem no seu gosto pelo simples e escorreito uso da língua portuguesa: ele são contraproducências incentivacionais; ele são confortabilidades percursionais; ele são positividades e associabilidades prudenciais e integracionais em que qualquer coisa observacionável, informacional e resistencial é rececionada não se sabe por quem... Que estapafúrdia corrente de malformações verbais! Mas eis que, em vez de se entreter a gargalhar, o incomodado cavalheiro se levanta e, perante as caras surpresas e os lábios finalmente imobilizados dos vizinhos de mesa, se lhes dirige cerimoniosamente:
— Os meus amigos, dão-me licença? Desculpem, mas como podem compreender, não pude deixar de os ouvir. E estou verdadeiramente fascinado. Espantado. Tão espantado, que não resisti mesmo a cometer esta indelicadeza de interromper o vosso afã coloquial. Os meus parabéns! As minhas felicitações! A vossa ousadia no manuseamento do sufixo supera tudo o que eu poderia imaginar.
— Do suf-icso?!... Suf-icso... suf-icso... Está a escapar-me alguma coisa... não dei pela aquisição dessa funcionalidade... Ó, Velez, como é que eu não fui informado de que tínhamos investido nesse gadget... suf-icso...
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