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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
JULIO CORTÁZAR, A CASA TOMADA
«Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.»
TROCADILHOS OCASIONAIS
O professor acrescenta mais uma, à lista de citações com que resolveu testar a cultura literária dos alunos:
«Eu não tenho história, sou como a República do Vale de Andorra.»
E, logo a seguir, pergunta a um aluno:
— E esta, de quem é?
Responde o aluno:
— Estou a ver se me lembro... essa é que é essa!
O professor aplaude, satisfeito.
LEMBRANDO LEITURAS...
[Clique na imagem e veja um vídeo sobre este livro, no programa «Miolo do Livro» - São Miguel TV]
AQUI A PRAIA É UM AREAL SEM FIM...
De Ovar ao Furadouro são cinco quilómetros por uma estrada que vai a direito, como se quisesse lançar-se ao mar. Aqui a praia é um areal sem fim, encrespado de dunas para o sul, e a luz é um cristal fulgurante, que no entanto, providência deste tempo invernal, se mantém nos limites do suportável. A esta mesma hora, no verão, cegam-se aqui os olhos com as múltiplas reverberações do mar e da areia. Agora o viajante passeia na praia como se estivesse na aurora do mundo. É um momento solene.
José Saramago, Viagem a Portugal
O SUF-ICSO
Belo fim de tarde de sol! Ninguém tem pressa de correr para casa. Depois de dias de chuva e chuva e chuva, brilham as esplanadas cheias de gente e boa disposição. Atropelam-se, vivas, vozes trazidas pelo leve vento que sobrou, amaciado, dos dias de tempestade. Molhos de pessoas acomodam-se em torno da insuficiente superfície das mesas espalhadas na calçada. Torna-se difícil a circulação de quem serve as bicas e os sumos! Exceto talvez ali, onde se avista uma raleira: espaço vago em volta dos dois homens, jovens, que aceleradamente mecanizam uma troca de palavras sem pausa, mesmo junto a outra mesa pouco habitada, em que uma cabeça grisalha e repousada se inclina, atenta ao vaivém das suas falas. Aos ouvidos do dono dessa cabeça silenciosa, um cavalheiro solitário a olhar o movimento citadino, é-lhes fácil colher pedaços das mil conversas circulantes. Mas, por alguma razão não despicienda, é à conversa masterizada pelos dois homens jovens que esses ouvidos preferem dar atenção. Trata-se de dois moços bem aperaltados, fatinhos caros, telemóveis caríssimos. Ou serão iphones? A tanto a sabedoria do dos ouvidos escutadores não chega. E que divertida que parece a atenção do cavalheiro grisalho! Vão-se notando, até, umas crescentes ondinhas de sorriso a desenhar-se sob o seu bigode aparadinho, à medida que o mecanismo conversador dos de fatinhos escuros avança...
...
— Estive, hoje, a estudar o nível resistencial do projeto e...
— ... mas já olhaste para a estrutura informacional que suporta a face observacionável da sua sustentabilidade?
— Óbvio. Como te ia dizendo, relativamente ao... Desculpa, tenho de atender: «Sim? [...] Ah, sim, o vosso relatório foi rececionado. [...] De momento, estamos a avaliar a sua capacidade integracional de associabilidades. [...]
OK. [...] Até, lá!.» Era o gajo da análise prudencial...
— Sim, mas ainda relativamente ao grau de positividade da linha percursional estabelecida, o projeto dá-nos confortabilidade...
— Mas não te esqueças dos fatores de contraproducência atuantes nas ações incentivacionais do consumo...
...
O do bigode aparadinho está prestes a chegar à gargalhada. Já teremos percebido porquê... De facto, está a tornar-se-lhe difícil resistir às cócegas que a intragável salsaparrilhada daqueles torcionários de palavras, tresloucados enxertadores de sufixos, fazem no seu gosto pelo simples e escorreito uso da língua portuguesa: ele são contraproducências incentivacionais; ele são confortabilidades percursionais; ele são positividades e associabilidades prudenciais e integracionais em que qualquer coisa observacionável, informacional e resistencial é rececionada não se sabe por quem... Que estapafúrdia corrente de malformações verbais! Mas eis que, em vez de se entreter a gargalhar, o incomodado cavalheiro se levanta e, perante as caras surpresas e os lábios finalmente imobilizados dos vizinhos de mesa, se lhes dirige cerimoniosamente:
— Os meus amigos, dão-me licença? Desculpem, mas como podem compreender, não pude deixar de os ouvir. E estou verdadeiramente fascinado. Espantado. Tão espantado, que não resisti mesmo a cometer esta indelicadeza de interromper o vosso afã coloquial. Os meus parabéns! As minhas felicitações! A vossa ousadia no manuseamento do sufixo supera tudo o que eu poderia imaginar.
— Do suf-icso?!... Suf-icso... suf-icso... Está a escapar-me alguma coisa... não dei pela aquisição dessa funcionalidade... Ó, Velez, como é que eu não fui informado de que tínhamos investido nesse gadget... suf-icso...
Houve tempos em que a relação de sentido entre a arte literária e as movimentações comerciais foi de antonímia. Nesses românticos tempos, as primeiras linhas da arte literária eram antónimas dos desprezados mecanismos da venda de suas obras que conseguiam apenas reduzidíssimo espaço de interseção com a possibilidade de leitura. Mais tarde, depois de um esforço de evolução semântica, a palavra literatura passou a cobrir o engano e a ilusão da homonímia, desdobrando-se em vocábulos materialmente iguais para realidades diferentes, abrindo-se em dois sentidos paralelos que em nenhum ponto se encontravam: o da a arte literária e o do alinhamento verbal de histórias e historietas de consumo garantido. Tudo, literatura. Nesses últimos tempos, dentro do campo semântico da arte literária, as mesmíssimas palavras passaram a cobrir referências polarmente diferentes: assistimos à palavra escritor a servir, tanto ao difícil génio capaz de construir espantosos quadros de significação e expressão nunca antes lidos, como ao semianalfabeto ajuntador de fáceis palavras, costureiras de fatiotas por molde recortado de revistas quiosqueiras, para revestirem o imaginário de largas camadas de leitores. Tais equívocos, porém, ainda não satisfaziam os sumos visionários de um profícuo quociente alisador de algum resto material de divisão. E foi assim que, finalmente, segundo a fatal necessidade de que o um e o dois se cumpram no três, chegamos à era da grande convergência. Aquilo que nunca se encontrava alcançou, finalmente, o ponto infinito em que todo o espaço de diferença se anula. Tudo graças à descoberta da insuficiência do abuso ilusionisticamente homónimo de palavras como escritor ou literatura, tudo graças à descoberta de que não basta que a dita convergência seja tão-só nominal. Precisa de ser material, para que, em consequência, coisa verdadeiramente interessante, se torne capital e, então, se instaure a boa-nova de que o verbo se faz verba. Para isso, não basta investir — como acontece, por exemplo, na área da política — na elasticidade semântica das palavras. Para isso, é necessário intervir no real. Não basta alargar o nome é preciso mudar a rosa. A rosa tem de mudar. Há que convencer a rosa a ser o que fizeram do seu nome. Isto é, há que convencer a literatura de que, para ser literatura, tem de ser comercial. Obreiros e obreiras trabalham afanosamente para preencher o espaço alveolar entre arte e mercadoria vendável, segregando mandamentos a cuja obediência a literatura deverá o direito a ser carimbada como vendável e despachada a caminho dos leitores que avidamente a consomem. Assim, se sintetiza a mixórdia vigente entre fontes genuínas de energia criadora e formulários, crismados de inovação, e comprovadamente apetecíveis por largos segmentos leitores. Finalmente, depois de perderem o ângulo da divergência e mesmo o espaço do paralelismo, os dois vês convergiram: o vê da vanguarda literária (agora brilhantemente tutoreada pelos sábios da divina arte da edição) e o vê da venda, insondável ambrósia alimentadora da divina fusão: a aventura é agora garantida. Mudaram os deuses. Já não há «árvores onde o Longe nada tinha», já não há «os beijos merecidos da Verdade».
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