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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
1.
— Porque é que és tão formosa?
Porque é que tens tanta vida?
— De manhã, como uma rosa.
À noite, uma margarida.
2.
Ao passares, paraste o vento,
Da noite abriste a fundura.
Só de sonhos foi um cento
Que te caiu da cintura.
3.
Em forma de caracol,
Um fio caiu do céu.
Era um cabelo do Sol
Que o meu olhar aqueceu.
RECREIO
Na minha alma há um balouço
Que está sempre a balouçar -
Balouço à beira de um poço,
Bem difícil de montar...
- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...
Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...
- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...
Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...
- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...
Mário de Sá-Carneiro
O teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há. Não têm procura os seus produtos enquanto o gosto não forma os hábitos e com eles a necessidade. Para principiar, pois, é mister criar um mercado factício. É o que fez Richelieu em Paris, e a corte de Espanha em Madrid; o que já tinham feito os certames e concursos públicos em Atenas, e o que em Lisboa tinham começado a fazer D. Manuel e D. João III.
Depois de criado o gosto público, o gosto público sustenta o teatro: é o que sucedeu em França e em Espanha; é o que teria sucedido em Portugal, se o misticismo belicoso de el-rei D. Sebastião, que não tratava senão de brigar e rezar — e logo a dominação estrangeira que nos absorveu, não tivessem cortado à nascença a planta que ainda precisava muito abrigo e muito amparo.[...]
O povo antes queria as óperas do Judeu. —Tinha razão; mas queimaram-lho e o povo deixou queimar.
Coitado do pobre povo! Com o dinheiro que ele suava para as óperas italianas, para castrados, para maestros e maestrinos, podia ter quatro teatros nacionais: e o Garção que lhe fizesse comédias que haviam de ser portuguesas deveras, porque o Garção era português às direitas.
Tinham-lhe queimado o António José porque diz que não comia toucinho; mataram--lhe o Garção numa enxovia por escrever uma carta em inglês.
E o povo deixou matar. Por isso ficou sem teatro. Não seja tolo.
Almeida Garrett*, Um Auto de Gil Vicente (Introdução), 2ª ed., Lisboa,
Publ. Europa-América, s.d., 29-31.
*Escritor português: 4/2/1799, Porto — 9/12/1854, Lisboa.
Fazia parte do painel. Decorria o debate. Ao ouvir o comentário aos dados estatísticos acabados de apresentar, levado pela sensação incerta de que, ali, talvez alguma coisa não batesse certo, num gesto impulsivo, pouco consciente, disse:
— Um dia a palavra pobreza ainda lhes estoura na boca!
O programa teve de ser interrompido, mas a coisa remediou-se. Não era dinheiro o que lhe faltava.
OUVE, POETA ROMÂNTICO:
Como queres que compreenda a tua dor de incompreendido
Se nunca deitei fogo aos problemas
Para fugir da terra
Num cavalo de asas de fumo?
Nem nunca pairei sobre os homens
De ouvidos tapados
Para ouvir melhor dentro de mim
As lágrimas das sereias
A insinuarem-me ilhas pessoais
Nos berços aéreos das manhãs de sal?
Como queres que entenda o teu desamparo de herói caído
Se nunca andei pelo céu
Com pés de estrelas…
Nem nunca desci à terra como tu
Para completar a paisagem com os olhos…
Ou dar aos escravos
— a pobre carne-de-viver dos escravos!
—A glória de comungar de joelhos
A aristocracia da minha dor
Do tamanho de uma cidade forrada de pele humana
Com ruas calcetadas de olhos tristes?
Não poeta romântico.
Cairia morto de vergonha
Se vagueasse pelo mundo
A enxugar lágrimas de pobres
Com lenços de nuvens.
E desceria à fundura Da raiz mais oculta dos frios
Se não fosse igual a todos
Menos a mim mesmo.
E cegar-me-ia com unhas
Até ao silêncio das imagens
Se passasse como tu os dias e as noites
A mirar-me ao espelho
Para ver o meu esqueleto genial
Dependurado com flores
Entre a terra e o céu
Num balouçar de deus
Que não se resigna às pedras nem às nuvens…
Enquanto no inferno da vida
Os outros esqueletos
Atiram pazadas de carvão
Para as fornalhas das máquinas
Que fabricam o fumo
Onde os poetas desenham quimeras de desdém.
Não, poeta romântico.
Eu nasci para cumprir outro destino mais novo.
Ser homem apenas sem sangue excepcional
A arder no desejo absurdo
De andar pelas ruas
Vestido de vidro
Para que todos possam ver na minha alma
A dor comum finalmente revelada!
E os sonhos de todos com terra!
E a fome sem estrelas!
E a cólera sem travões!
E a morte sem anjos!
E a revolta sem bandeiras!
E o sol com sol!
Não poeta romântico.
Como queres que compreenda a tua dor de incompreendido
Se só entendo os homens
Quando choram lágrima de terra?
(E nem me entendo a mim?)
José Gomes Ferreira
Todo o escritor que constrói uma obra cria uma marca. De um romance de António Lobo Antunes, d’O Esplendor de Portugal por exemplo, pode dizer-se é «um lobo antunes». Quase como se diz de um vinho.
Prova-se, saboreia-se: e lá está o acidulado das metáforas enlouquecidas; o travo de lugares e objetos que tomam conta dos humanos; a estrutura balanceada desde a raiz ampla de uma fazenda em África até desfazer-se nas terras estreitas, cubiculares, de um bairro lisboeta; a força e a vastidão quase selvagem de um aroma estrangulado em respiração apodrecida... Não há dúvida! É um «lobo antunes». Um puro.
Em O Esplendor de Portugal, a técnica de deformação do real, de enlouquecimento do real, é a mesma de sempre: o andar em círculos até à tontura que se desprende da solidez dos mundos habitados; o tempo feito contratempo, num encolhimento esmagador da duração; o adoecer de tudo e de todos, exceto, talvez, da infância de uma mulher que ainda era Isilda e não «patroa», na boca de outra mulher que era e sempre foi Maria da Boa Morte.
Círculos e espirais imparavelmente dançados sobre um estrado de solidão compassiva, de humanidade fina decantada do sarro grosso, areoso, com que se fazem construções mutantes, afinal sempre a mesma, essa construção: frágil, trágica, mortal, iludida, derrotada, humana...
E a fechar o leque de notas inconfundíveis, uma forte neurose maníaco-associativa a puxar tudo para dentro de tudo, brinquedo de feira de horrores, girando e girando e girando... até à eternização dos gestos, à repetição imobilizadora.
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