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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Domingo, 16.03.14

A DEGRADAÇÃO DA MOBÍLIA

 

Na Escola, a degradação da mobília não é mera degradação da mobília: estou aqui sentada a uma mesa, pobre móvel, um tampo e quatro pernas, esquálido, sem qualquer personalidade, sem identidade, prestável para tudo, que em nada diferente seria, se fosse, por exemplo, uma vulgar mesa de comer. Estou aqui, na vossa frente, sentada a uma mesa esvaziada de qualquer alma docente. É verdade, meus alunos, que vos venho ensinando que os objetos têm alma e, no entanto, vedes que dificilmente podereis encontrar a alma dos objetos escolares que usais e de que estais rodeados. Por falta de tempo vivido, não podeis realmente saber de secretárias pesadas, belas à sua maneira, secretas como convém a secretárias, capazes de guardar segredos e surpresas, de cobiçar curiosidades, sem leveza nem vazio, sem brilhos sujos e frios, mas oferecendo a macieza da madeira polida, como um leito para a dolência do folhear de livros e cadernos, para o amparo dos gestos da escrita. Não podeis realmente saber de cadeiras com costas acolhedoras arredondando-se confortavelmente em torno do meu corpo, rodando à ordem da necessidade de direção do meu olhar que vos sobrevoava, que vos procurava, a vós quando éreis outros. Não sabeis que, na Escola, nem sempre todas as mesas e cadeiras foram iguais. Havia mesas que eram secretárias; havia cadeiras que tinham feitio de cadeira de secretária e que aqueles que não éreis vós, mas eram vós, arriscavam castigos para nelas se sentarem, nelas rodarem como num carrossel. Mas que interessa que vos fale disto que é coisa de museu, passada, enterrada, sem sentido, ultrapassada, errada neste vosso tempo? Porque vos falo eu disto? Apenas por uma razão, meus últimos alunos: porque se perdeu uma alma velha e não se encontrou uma alma nova e, neste desencontro de almas, se perdeu a alma da Escola, a alma que, na Escola, tudo haveria de habitar, mesmo pobres coisas como mesas e cadeiras.

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por Maria Almira Soares às 22:16

Domingo, 16.03.14

LEMBRANDO LEITURAS...

CONVERSA NA CATEDRAL

AMBROSIO e ZAVALITA! BIG BANG! Por um momento de quinhentas páginas, a partir deste encontro, tão denso e tão negro como o mais denso buraco negro,  expande-se o tempo em todas as direções. E, enquanto cresce, o tempo cria espaço, múltiplos espaços habitados. Assim se engana o efeito destruidor de Cronos, devorador de seus filhos, dando-lhe a comer a pedra amassada da ternura e da raiva, do amor e do medo, da violência e da tristeza, da mentira, da vergonha, da inocência e da maldade, da crueldade… enfim, o Homem. O Homem: luz, água, ave, árvore, pedra… Nascido água e andando até se adensar em pedra. Pedra que vamos lendo, enquanto se adensa e o tempo a não devora. Do encontro entre Ambrosio e Zavalita, expande-se a narrativa, explode a criação de um universo. Uma rede finíssima de pontos de vista, uma coreografia minimal e exata de vozes, lança sobre este universo uma gaze alucinante, pontilhada de omina, de sombras pairantes que encobre/descobre, elaborando com perícia a arte da surpresa, a arte clássica, grega, do reconhecimento: «O gorila é o guarda-costas dele. Chama-se Ambrosio.» O Humano esculpido nas palavras, nas pequenas falas como na larga maré dos pensamentos, golfadas, ondas, vómitos, jorros de luz, conversa. Puxa-se uma ponta e larga-se… e volta-se atrás a puxar outra ponta… um veio que ficou em espera, por explorar… Deixa-se de pousio uma cepa já bem pegada, a que mais adiante se há de regressar para puxar outro rebento… Sábias mudanças de tom, harmonias musicais. Este livro não descreve nem narra, faz música com a volubilidade dos tons certos para cada tema: o tema de Ambrosio, o tema de Amalia, o tema de D. Cayo, o tema de D. Fermin… Numa poética desmesurada, mas certa, certeira, cabe ainda a escala rítmica do thriller em busca da cara mais vil da política, em busca da exibição negra do poder, uma coisa escorregadia, movediça, vil, lacaiesca. Painel espectral, turvo — de figuras, de situações, disseminadas, cruzadas, sobrepostas  — que filtra, isola a luz sombria mas nítida da consciência de um homem: Santiago Zavala. Expiação e amor.

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por Maria Almira Soares às 21:10


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