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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Quarta-feira, 23.04.14

A DÁDIVA ENCARCERADA

 

 

 Na cena da leitura em educação escolar, o aluno é um possível reconstrutor de versões dos modelos de leitura que o professor, aí, protagoniza. Convém, entretanto, explicitar que, neste ambiente da leitura escolar, constituído essencialmente pelo professor e pelo aluno, operam outros entes: o currículo, o programa, o manual, a biblioteca, a ideia de promoção do gosto de ler, o ofício de vencer a incapacidade de conseguir servir-se de escritos da vida corrente; e que, para além de povoado por estes entes/agentes, ele se insere ainda no encontro de um eixo horizontal que é o da porosidade da escola em relação a outros meios contíguos e de um eixo vertical construído na dialéctica entre tradição e renovação, sob formas de reverência e desestruturação. O professor ocupa aqui, aparentemente, o lugar do poder mais discricionário, entre os limites da qualidade e da comunicabilidade, consciente ou inconscientemente afectado pela vizinhança intertextual dos variados registos da cultura escrita, sobre a qual exerce uma função de controlo.

         Experimentemos admitir que os textos que se leem na escola, saídos da encruzilhada do currículo, do programa, do manual, da biblioteca, da ideia da promoção do gosto de ler ou da utilidade da leitura, da porosidade da escola, da dialéctica tradição/renovação, da função de controlo do professor, sejam aquilo a que chamamos textos clássicos: —  O que é ler um clássico? — O que é ler um clássico na escola? Tomando como aceitável que o texto é reconstruído pela leitura que dele se faz, que tipo de tensão gerará a leitura escolar dos clássicos: Estranheza? Diferença? Exotismo? Curiosidade? Que tipo de intervenção decifradora se tornará necessária? Esta necessidade decifradora desarmará a força impregnadora do texto ou será mobilizadora da sua ação em sede de processos cognitivos, tornando-se uma mais valia em termos educativos? Os textos clássicos capitalizam as dificuldades da leitura, ampliando-as? A descompensação provocada pela vizinhança da leitura fácil vitimiza os clássicos? A leitura dos clássicos esconjura a leitura fácil e fortalece a capacidade de ler? A leitura naïve de um texto clássico pode inverter positivamente a vivência da leitura fácil? A observação, ainda que imprecisa,  da  realidade  escolar devolve-me um cenário em que os alunos parecem olhar os clássicos como uma dádiva encarcerada numa porta aberta que lhos pretende franquear. Isto é, como que se olham mutuamente: o texto dentro da leitura decifradora do professor e o aluno tolhido pelos insistentes acenos dessa leitura. Seja como for, o texto clássico, em leitura escolar, surge sempre como um habitante estranho exposto no enquadramento de uma moldura, que é a aula. Que reconfiguração no imaginário do aluno é a da aula quando nela o professor lê um texto clássico? Lugar inóspito aos olhos daquele a quem se pede que seja um leitor heroico? Lugar tão cerrado de indicações de conduta que não vale sequer a pena pensar no ato heroico? E, daí, essa paralisia de que falei atrás? Será possível desafetar esta ecologia da aula do seu munus paralisador de moldura coercitiva?

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por Maria Almira Soares às 15:46

Quarta-feira, 23.04.14

O LIVRO

 

         

 

Pensar o livro. Pensá-lo antes de mais como objecto na simples volúpia de o ter na mão. Na beleza do seu esquadriado, da sua apresentação, do volume, da gramagem. Na tessitura e tom das suas folhas, na possível cartonagem ou encadernação, no halo de mistério que o envolve. Perdeu-se o deleite de o desflorar, agora com as folhas cortadas a cutelo. O prazer de lhe revelar o oculto de si, agora que tudo é público e envidraçado e exposto na rua. Pensar o livro na sua intimidade connosco sem mais ninguém a assistir. Pensá-lo no silêncio de quatro paredes, no que só a nós nos diz. A leitura colectiva de outrora tinha também decerto o seu mistério mas que era outro. Como a comunidade de uma catedral ou de um cinema. […] Mas se o vídeo destruiu tudo e deixou para si apenas a comodidade do sofá e de não sair à rua, o livro solitário fala-nos mais intensamente no secreto de nós. […] Pensar o livro. E amá-lo desde a sua materialidade ao mistério da criação a que nele poderás assistir…

Vergílio Ferreira, Escrever

 

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por Maria Almira Soares às 14:54

Quarta-feira, 23.04.14

DIA MUNDIAL DO LIVRO

 

 HOMERO, ODISSEIA

 versos 210-214 do canto 11

(Papiro) 

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por Maria Almira Soares às 10:51

Sexta-feira, 18.04.14

TEORIA DA LITERATURA

 

 

... que aquilo a que hoje chamamos língua começou por ser uma primeva literatura, genuína e livremente criativa... mas, depois, institucionalizou-se, decaiu em léxico e gramática... que o primeiro pensamento gramático roubou a língua a essa primitiva natureza de criação literária... e que, depois de separada da sua génese literária, a língua nunca mais deixou de tentar o regresso à sua natureza original... daí a persistência da criação literária... é a língua em fuga da gramática, em subversão do léxico, à procura da sua primeira natureza de literatura.

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por Maria Almira Soares às 23:02

Quinta-feira, 17.04.14

17 DE ABRIL - INÍCIO DA CRISE ACADÉMICA DE COIMBRA, 1969

17 DE ABRIL

Em 1969, no mesmo dia do calendário, mas num dia muito diferente nas condições de vida, em Coimbra os estudantes saíram à rua para se fazerem ouvir... Eu estava lá.

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por Maria Almira Soares às 13:07

Sábado, 12.04.14

O GENE DA LEITURA

 

Existirá? Haverá um gene da leitura? Será o gosto da leitura de ordem genética? Estará no nosso corpo o desejo de ler e a satisfação com a leitura? Há leitores analfabetos. Há gente que não sabe ler, mas tem em si o gosto de ler. O Amor de Perdição era nacionalmente conhecido e querido num país cuja taxa de analfabetismo rondava os 90%. Não possuíam a técnica, mas como tinham o gosto, pediam-no emprestado a quem o tinha e tornavam-se leitores pelos ouvidos. Hoje ainda há gente que tem todo o perfil do bom leitor, mas, como não sabe ou mal sabe ler, não pode ler. Será a leitura uma aquisição meramente social, cultural? O que é um leitor? Pode ter-se adquirido a técnica da leitura, que é oficialmente obrigatória, e não se ser leitor. Os números das estatísticas estão à vista e comprovam-no. Pode, por outro lado, não se ter essa técnica e ser-se um leitor impotente…Como é ser-se leitor? É gostar de se achegar ao aconchego de uma boa história generosamente dada pela faculdade das palavras; é gostar de gastar os olhos nas letrinhas do jornal, molhar os dedos para lhes soltar as folhas; estreitar a vista coluna acima, coluna abaixo, perder-se na busca da continuação. Ser leitor é: gostar de estar sossegado e só esforçar os olhos e a cabeça para ficar a saber coisas que, magicamente, sem pincéis nem tinta, têm cor e forma e, sem projetor, têm movimento; é ser-se curioso, e gostar de seguir roteiros e de encontrar respostas; é ser infantil na abertura à fantasia e adulto no jogo dos sonhos escondidos; é o gosto da intriga, do enredo, da novidade e da descoberta; é o gosto dos nomes, das referências, das frases bem-dizentes; o gosto das palavras bem-soantes; o gosto da fuga, de ultrapassar o real pela fuga e lhe fazer uma espera mais à frente, já ficticiamente senhor das suas estratégias. Ideal é que o ensino da técnica garanta a realização do desejo. Mas o desejo, esse, não se ensina. Provoca-se. Desperta-se. Provoca-se a curiosidade, proporciona-se o agrado com o efeito de surpresa. Faz-se com que ler seja acontecer. A escola pode ser um lugar onde, enquanto se ensina o ler, se desperta a fantasia. O tempo e o modo de ler podem ser vividos na escola como quem aviva um desejo, um fogo que velaremos ao abrigo das coisas da vida que tendem a apagá-lo, fazendo dos livros um espaço pessoal de liberdade, aprendendo que ninguém está no espaço incolor em que as histórias que lemos se tornam reais, senão nós. Só se quisermos e quando quisermos o partilhamos. A escola pode ensinar que ler é uma porta que se abre, um acesso, uma entrada; que, quando alguém abre um livro e se põe a ler, como que fica intocável. Mas não só a escola. Desejável é que aqueles que parecem geneticamente mais dados à leitura contrariem a tendência social para ler pouco, peguem ostensivamente em livros, juntem dinheiro para comprar livros, a prestações, se for preciso, como fazem com outros bens; em segredo primeiro, se tiverem vergonha, e, depois, à vista de todos, causem o escândalo da leitura, numa sociedade que não lê, e, depois, talvez, o respeito. Se não há um gene da leitura reconhecível num exame médico, que se garanta, pelo menos, meios de transmissão social: a escola, e todos os que gostam de ler. Que ninguém diga: quem não quer ler que não leia, colocando no mesmo leque de opções coisas ontologicamente distintas. Pasmoso é o esforço insano que fazem as escolas para desenvolverem práticas, às vezes espantosas, e espantoso é que ninguém se lembre da hipótese de haver nelas coisas como, por exemplo, a Leitura ao Fim da Tarde. Ler já foi uma arma da adolescência. Esta perdeu-a, mas deve recuperá-la. A leitura já foi um espaço de mudez-surdez, tão caro aos adolescentes, habitado por sonhos e ousadias; era um espaço de imobilidade pesada, atirada contra a presteza e prontidão dos adultos; era um espaço de atraso e de demora, de desculpa, de teimosia, de ultrapassagem subterrânea dos legítimos superiores. Hoje, o adolescente não suspeita de quão estrategicamente útil lhe poderia ser a leitura, e foge a desgastar-se noutras andanças. Há um vazio imenso a fingir que é movimento e alta voz. Ler não é uma atividade essencialmente grupal, mas garante ao grupo a existência do indivíduo. Um grupo não é só uma coincidência de gente na mesma escola, na mesma rua, na mesma praia, na mesma discoteca. Não é apenas uma simultaneidade. No equilíbrio das forças que sustentam um grupo tem de haver um lugar para a distância, para a pertença a si próprio. A leitura é um elo que nos solda a alguma coisa de sólido que vai havendo em nós, enquanto a diversidade nos interpela, ao som de uma voz pública que nos pretende ditar, como se fôssemos só uma folha branca onde nos vão inscrevendo. Porque ler é também rejeitar, revelar, identificar, abrir, descobrir. É muito provável que não haja o gene da leitura, mas tem de haver a educação para a leitura, como imperativo de uma cultura humanista.

 

 

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por Maria Almira Soares às 01:33

Quarta-feira, 09.04.14

O 25 DE ABRIL DE 1974

 

Aparentemente, iria ser um dia como outro qualquer daquela era cinzenta... Levantar cedo e entrar na correria de tratar do meu filho (de um ano de idade), e de me pôr a caminho do liceu da Amadora onde dava aulas. Nem tempo havia para espreitar notícias que, aliás, eram de um modo geral desinteressantes. Iria ser um dia como outro qualquer, mas... GRANDE MAS! Mas, mal saí a porta de casa e pus o pé no patamar da escada, a D. Lurdes, a porteira, madrugadora e informada como é próprio das porteiras, com ar de maus augúrios, quase me barrou o passo:  — Ó menina, deixe-se ficar em casa, que anda a tropa na rua. Acho que é uma revolução. Não saia, que é perigoso.

Qual não saia! Aí é que eu tive vontade de sair. Claro que iria até ao liceu ver o que se passava, saber coisas... Tirando o aviso da D. Lurdes, eu não tinha mais nenhuma informação. E fui. E vi que o reitor estava tomado de um ataque de pânico, o que me fez de imediato perceber em que sentido ia o fazer da História. Aulas, nem vê-las. Tirando algumas funcionárias, que nesse tempo se chamavam contínuas, e o reitor, o liceu estava vazio. Lembro-me de quase ter dito em voz alta: — UFA! FINALMENTE! Alguma coisa estava a começar: finalmente, o início do cheiro da LIBERDADE!

Rapidamente voltei para casa a trocar informações com o Pedro, o meu marido. A ele, mandado para a guerra em Moçambique,  calhou-lhe a sorte de estar cá a passar o mês de férias a que tinha direito e viver em Lisboa o 25 de Abril! Durante o resto do dia parecíamos duas esponjas a tentar absorver informação e saber o mais possível do que se estava a passar. Eu, que me tinha desinteressado quase completamente dos meios de informação até aí algemados pela censura, nesse dia só queria ouvir rádio, ir à rua espreitar, perguntar, tentar saber e ficar segura de que os tempos negros iam acabar. E televisão? Não tínhamos. Era uma das nossas formas, talvez um tanto infantil, de ser do contra: não ter televisão. Mas, nesse dia, fomos à loja da esquina e fizemos apressadamente talvez a pior compra das nossas vidas: um televisor em que vimos e ouvimos a proclamação da «junta de salvação nacional» e o cantar constante de um slogan que dizia que «o povo unido...» O Luís, o meu filho, repetia-o, em versão muito própria, pela casa fora, interminavelmente. Passado pouco tempo, o televisor estava avariado. E o 25 de abril? Também se avariou?

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por Maria Almira Soares às 12:57

Terça-feira, 08.04.14

ONDE TUDO FOI NASCENDO...

O PIRES CAVALEIRO

 

 

Tenho a honra de lhes apresentar o Pires cavaleiro: oito anos e meio. Boca alegre e de resposta pronta; menino prodígio, portanto. Rosto oval e penugento. Olhos redondos, doirados, frescos como dois bagos d'uva branca em manhã orvalhada d'agosto. Traço final do esquema: sobrinho duma casa d'hóspedes na Travessa das Mercês, ao Calhariz. Em rigorosa verdade, ele não é sobrinho da casa, mas da proprietária da pensão, Dona Ana Fernandes, senhora de rija têmpera para o trabalho e de maternal condescendência para os calotes; como porém o grosso dos comensais é constituído por solteirões, todos nós nos consideramos um bocado tios do pequeno. Claro que o Pires cavaleiro, não é cavaleiro de Cristo, nem d'Avis, nem d'ordem nenhuma; chamamos-lhe assim por ter  um cavalo de cartão com que dorme na cama, abraçadíssimo, sonhando galopadas relampagueantes, por montes, vales e terras de maravilha . .

 No convívio com gente do mais desencontrado feitio — jornalistas, homens de negócio, literatos, oficiais de terra e mar, atrizes, clérigos — O Pires adquirira desenvoltura de modos e firmeza d'opiniões. Nas berrantes controvérsias que se levantavam à mesa metia sempre o seu bedelho autoritariamente.

— Eu cá sou republicano . .

— Mas porquê, Pires ? Porque és tu republicano? perguntou-lhe duma vez um jornalista vermelho.

— Porque sou teu amigo . .

Se não era bem uma razão, era metade dela. Não é o sentimento o melhor filtro do raciocínio ? Não é a consciência a harmonia entre o coração e o cérebro? Pires é visitante assíduo do meu quarto. Cá passou ontem a tarde inteira a folhear ilustrações, salivando no dedito para voltar as páginas, e fazendo em solilóquio a apreciação das estampas:

— Esta não presta . . . Huum, também não presta. Desta gosto.

A certa altura, deteve-se a examinar atentamente um pónei esquissado de perfil. Mirou-o. Remirou-o. Depois, ficando com a lauda segura na mão, a noventa graus sobre o plano da mesa, inclinou a cabeça e espreitou para o outro lado da página. Olhou a seguir para  mim e como eu disfarçasse mostrando-me absorvido na leitura do Notícias, o Pires tirou com gesto subtil uma caneta, molhou-a em tinta e, voltando a página, traçou no reverso da gravura  um círculo negro com uma pinta ao centro. Era o outro olho do cavalo. Dado aquele quinau no animalista e farto já de belas artes, pôs-se a lambuzar de goma arábica quantos papéis achou à unha. Dessa feita, estava eu deveras alheado a ver o que ia pelo mundo nos telegramas da Havas. Quando dei pela coisa, tinha-se o Pires esgueirado e não havia no frasco — nem gota . . . Em compensação, havia goma por toda parte: na colcha da cama, em livros, cartas, fotografias . . . Que fazer? O que fiz. Chamar a criada para limpar a bodega e mandar comprar outro vidro de goma.

Esta manhã entrou o cavaleiro, cumprimentador e álacre, de peito feito para a colagem. Ao ver na secretária  um frasco cheiinho, com a cápsula reluzente e o pincel muito aprumado, mais se lhe aguçou o desejo.

— Oh Gil, tu tens goma?

— Tenho. E apontei-lhe o vidro despejado.

— Está vazio . . .

— Está? Então não tenho.

Pausa d'instantes.

— E isto? perguntou, indicando outro frasco.

— Isso não é goma. É  um remédio.

Segunda pausa.

— Andas a tomá-lo?

— Ando. Ando a tomá-lo às colheres.

Terceira pausa, mais longa. Pires adiantou-se para a janela e quedou-se por momentos, d'olhos fitos na esquina fronteira, meditativo, contrariado. De repente, girou sobre os calcanhares e encarando-me face a face, inquiriu com  um sorrisinho arguto:

— Olha lá! e também tomas o pincel? . . .

 

Augusto Gil

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por Maria Almira Soares às 17:59

Segunda-feira, 07.04.14

SHELFIE EM VEZ DE SELFIE

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por Maria Almira Soares às 13:16

Domingo, 06.04.14

O DUENDE DA MERCEARIA

 

Era uma vez um estudante, um autêntico estudante; vivia num sótão e não possuía nada. E era uma vez um merceeiro, um autêntico merceeiro; vivia no rés-do-chão e era dono do prédio inteiro. E foi por isso que o duende decidiu morar com o merceeiro. Além disso, todos os Natais recebia uma tigela de papa de aveia com um grande pedaço de manteiga lá dentro. O merceeiro tinha posses para isso, de maneira que o duende continuava a morar na loja. Há por aqui algures uma moral, se a procurarem bem. Uma noite, o estudante entrou na mercearia pela porta das traseiras para comprar um pedaço de queijo e velas. Fez as compras e depois pagou, e o merceeiro e a mulher acenaram-lhe com a cabeça e disseram «boa noite». A mulher, contudo, era bem capaz de fazer mais do que acenar; era muito faladora — falava, falava, falava. Tinha o que se chama o hábito de falar pelos cotovelos, disso não havia dúvida. O estudante também fez um aceno — e foi nessa altura que viu qualquer coisa escrita no papel que embrulhava o queijo e parou para ler. Era uma página de um velho livro de poemas, uma página que nunca devia ter sido arrancada.

— Tenho aqui mais desse livro, se quiser — disse o merceeiro. — Dei a uma velhota alguns grãos de café por ele. Pode ficar com o resto por seis dinheiros, se estiver interessado.

— Obrigado — respondeu o estudante. — Dê-mo em vez do queijo. Passo bem só com pão. É uma pena usar um livro destes para papel de embrulho! O senhor é muito boa pessoa e bastante prático, mas percebe tanto de poesia como aquela banheira ali ao canto.

Ora isto foi uma frase indelicada, especialmente aquela parte respeitante à banheira, mas o merceeiro riu-se, e o estudante também; afinal de contas, fora apenas uma brincadeira. Mas o duende ficou aborrecido por alguém se atrever a falar assim com o merceeiro — ainda por cima o senhorio, uma pessoa importante que era dono do prédio todo e vendia manteiga da melhor qualidade.

Nessa noite, quando a loja estava fechada e toda a gente, excepto o estudante, estava na cama, o duende entrou no quarto do merceeiro em bicos de pés e roubou à mulher do merceeiro o dom de falar pelos cotovelos, porque ela não precisava dele enquanto dormia. A seguir, fez com que cada objecto em que tocava ficasse capaz de exprimir as suas opiniões tão bem como a mulher do merceeiro. Mas só podia falar um de cada vez, o que era uma bênção, se não desatavam todos a falar ao mesmo tempo.

Primeiro, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos à banheira onde se guardavam os jornais velhos.

— É mesmo verdade que não percebes nada de poesia? — perguntou.

— Claro que percebo! — respondeu a banheira. — A poesia é uma coisa que vem no fim das folhas dos jornais e que as pessoas costumam recortar. Acho até que tenho mais poesia dentro de mim do que o estudante; e, apesar disso, sou apenas uma humilde banheira, comparada com o merceeiro.

Depois, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos ao moinho de café. Meu Deus, que chinfrineira! Depois, deu-o ao pote de manteiga, e depois à caixa registadora. Todos eram da mesma opinião da banheira e as opiniões da maioria têm de ser respeitadas.

— Agora posso pôr o estudante no seu lugar! — exclamou o duende.

E lá foi em bicos de pés, pela escada das traseiras acima, até ao sótão onde morava o estudante. Havia luz lá dentro. O duende espreitou pelo buraco da fechadura e viu o estudante a ler o velho livro da loja. Que grande claridade havia no quarto! Do livro saía um brilhante raio de luz, que se tornou num tronco de árvore, de uma nobre árvore que subiu e espalhou os seus ramos por cima do estudante. As folhas eram novas e verdes, e cada flor tinha o rosto de uma linda rapariga, algumas com olhos escuros e misteriosos e outras com olhos azuis cintilantes. Cada fruto era uma estrela luminosa e o ar estava impregnado de um belo som de canções. O duende nunca tinha visto nem ouvido falar de tais maravilhas; e muito menos seria capaz de as imaginar. Portanto, ficou ali à porta, em bicos de pés, a espreitar, de olhos muito abertos, até que a luz se apagou. O estudante devia ter assoprado a vela e ido para a cama — mas o duende continuava sem ser capaz de arredar pé. Parecia-lhe ouvir a linda música, que ainda ecoava no ar, ajudando o estudante a adormecer.

— Isto custa a crer — murmurou o duende para consigo. — Nunca esperei nada do género. Acho que vou ficar no sótão com o estudante. — Depois pensou um bocado e suspirou: — Tenho de ser sensato; o estudante não tem papas de aveia.

E portanto, é claro, voltou para baixo, para a mercearia. Ainda bem que o fez, porque a banheira tinha quase esgotado o dom de falar pelos cotovelos, contando todas as notícias dos jornais que estavam guardados dentro dela. Tinha falado para um lado e estava prestes a virar-se para o outro e a continuar quando o duende devolveu o dom de falar pelos cotovelos à mulher do merceeiro adormecida. E, a partir dessa altura, todas as coisas da loja, desde a caixa registadora até à lenha, seguiram as opiniões da banheira; tinham-lhe tanto respeito que, depois daquilo, quando o merceeiro lia nos jornais críticas de peças ou de livros, pensavam que ele tinha aprendido tudo com a banheira. Mas o duende já não aguentava ficar ali sentado a ouvir toda a sabedoria e bom senso pronunciados na loja; assim que via luz através das frinchas da porta do sótão, parecia ser atraído para lá por cordelinhos, e tinha de subir a escada e pôr-se a espreitar pelo buraco da fechadura. Sempre que o fazia, sentia-se invadido por uma sensação de indizível grandeza — a espécie de sensação que se tem quando se vê o mar encapelado com ondas tão fortes que o próprio Deus podia vir montado nelas! Que maravilha seria sentar-se debaixo da árvore com o estudante! Mas era impossível. Entretanto, contentava-se com o buraco da fechadura. Olhava através dele todas as noites, ali parado no patamar deserto, mesmo quando o vento do Outono começou a soprar pela claraboia, fazendo-o quase morrer de frio. Mas ele nem o sentia até a luz se apagar no quartinho do sótão e a música se calar a pouco e pouco, ficando apenas o uivar do vento. Brr! Então, sentia como estava gelado e descia sem fazer barulho para o seu canto secreto da loja, quente e confortável. Em breve viria a tigela de papas de aveia do Natal, com o seu grande pedaço de manteiga. Sim, o merceeiro era a escolha certa.

Mas uma noite, já bem tarde, o duende acordou com uma grande agitação à sua volta. Estavam pessoas a bater nos estores, o guarda-noturno apitava: havia fogo, e toda a rua parecia estar em chamas. Que casa é que estava a arder? Aquela ou a do lado? Onde era o fogo? Que gritos! Que pânico! Que agitação! A mulher do merceeiro estava tão desorientada que tirou os brincos de ouro das orelhas e meteu-os num bolso, para salvar pelo menos alguma coisa... O merceeiro foi a correr buscar os seus valores, a criadita foi buscar o seu xaile de seda que tinha comprado com o ordenado. Toda a gente foi a correr buscar aquilo a que dava mais valor. E o duende fez o mesmo. Num pulo ou dois subiu a escada e entrou no quarto do estudante, que estava calmamente à janela, vendo o incêndio na casa em frente. O duende pegou no livro maravilhoso, que estava em cima da mesa, meteu-o dentro do boné vermelho e agarrou-se a ele com os dois bracitos. A coisa mais preciosa da casa estava salva! Depois, foi a correr para cima do telhado, mesmo para o alto da chaminé, e ficou ali sentado, iluminado pelas chamas da casa a arder do outro lado da rua, sempre firmemente agarrado ao boné vermelho com o tesouro lá dentro. Agora sabia para onde o seu coração o puxava: estudante?, merceeiro? — a escolha era clara. Mas, quando o fogo ficou extinto e o duende já tinha tido tempo para pensar com mais calma, bem... — Divido o tempo entre eles — decidiu. — Não sou capaz de abandonar o merceeiro, por causa das papas de aveia. Mesmo coisa de ser humano, francamente! Também nós gostamos de nos dar bem com o merceeiro por causa das papas de aveia.

Hans Christian Andersen 

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por Maria Almira Soares às 22:48

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