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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Quinta-feira, 29.05.14

O EXCESSO DA ARTE NUM PROFESSOR POR DEFEITO

 

 

«Há em mim uma falta essencial, pecado original cometido na eternidade. Mas não o sei. Não é assim a maçã que Adão mordeu por mim, é qualquer coisa de mais profundo e ininteligível e absoluto. Qualquer coisa que me viciou a vida toda e se manifesta na culpa e na vergonha que me embaraça em todas as situações e me diminui absurdamente aos meus olhos (e aos dos outros que dão por isso) e me retira toda a satisfação do que é para satisfazer como se o não merecesse, e restringe tudo o que era de supor-se dar-me uma pequena glória ou triunfo. Há uma nódoa que dessa eternidade se distingue e vem a ser mancha em tudo que faça e brilhe. É fácil talvez determinar as razões dessa enfermidade sempre presente e aflitiva, mas são razões que não servem, porque não embaraçam os outros e os deixam livres para serem por inteiro.»

Conta-Corrente 4

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por Maria Almira Soares às 16:32

Terça-feira, 27.05.14

UMA VEZ, UM PORTUGUÊS...

 

 

Uma vez, um Português encontrou uma Superfície e ficou a congeminar que coisas estariam a mover-se por baixo dela. Como as não via, tudo poderia imaginar e, imaginando, multiplicava as coisas que, verdade ou mentira — isso não lhe interessava nada — poderiam estar por baixo da Superfície. E, multiplicando-as, todo um mundo de cores e sons o maravilhava, existisse ele ou não por baixo da Superfície. Achou isso tão divertido, tão excitante, que, entretido, nunca mais se lembrou de que, se se ocupasse a arredar a Superfície, poderia realmente ver e conhecer as coisas, em vez de ficar para sempre a fantasiar.

 

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por Maria Almira Soares às 21:49

Segunda-feira, 26.05.14

A LUTA ENTRE O SONHO E O REAL

 

[...]

«Dizia ele entre si:

— Demos que, por mal dos meus pecados (ou por minha boa sorte), me encontro por aí com algum gigante como de ordinário acontece aos cavaleiros andantes, e o derribo de um recontro, ou o parto em dois, ou finalmente o venço e rendo; não será bem ter a quem mandá-lo apresentar, para que ele entre, e se lance de joelhos aos pés da minha preciosa senhora e lhe diga com voz humilde e rendida: “Eu, senhora, sou o gigante Caraculiambro, senhor da ilha Malindrânia, a quem venceu em singular batalha o jamais dignamente louvado cavaleiro D. Quixote de la Mancha, o qual me ordenou me apresentasse perante Vossa Mercê, para que a vossa grandeza disponha de mim como for servida”?

Como se alegrou o nosso bom cavaleiro de ter engenhado este discurso, e especialmente quando atinou com quem pudesse chamar a sua dama

[...]

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por Maria Almira Soares às 13:05

Sexta-feira, 16.05.14

A REVOLTA DAS FRASES

Não fosse a maldita da frase voltar a saltar para a parede.

 

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por Maria Almira Soares às 23:46

Quinta-feira, 15.05.14

ELOGIO DA COUVE PORTUGUESA

 

 

[...]
O emigrante de quem falo tem hoje setenta e dois anos, emigrou aos cinquenta e quatro, e andou com as sementes no bolso durante dezassete anos - à espera de um quintal para as semear. Se isto não é dramático, não sei onde será hoje possível encontrar o drama. Durante dezassete anos, as sementes esperaram pacientemente a sua hora, o quintal prometido, a terra fertilíssima. Entretanto, o nosso compatriota, cada vez mais cansado, cada vez mais velho, mas sempre esperançoso, percorria a Austrália de ponta a ponta, cruzava os desertos, rondava os portos de mar, penetrava nas grandes cidades, inquiria do preço dos terrenos, numa busca ansiosa. Aos marinheiros do Gama deu Camões a Ilha dos Amores e o Canto Nono; este viajante português do século XX declara-se feliz, realizado, pleno, quando, de metro em punho, com os pés na regueira fresca, bate o recorde da altura em couve e comunica o feito às agências de informação. Convenhamos, amigos, que só um coração empedernido se não deixaria mover a uma lágrima de enternecimento. [...]

 

José Saramgo, «Elogio da Couve Portuguesa» in A Bagagem do Viajante

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por Maria Almira Soares às 22:32

Domingo, 11.05.14

VIAGEM A PORTUGAL

A COMUNIDADE DE LEITORES LERDOCELER, REÚNE-SE NO DIA 15 PARA FALAR DE

 

 

Se fosse um poema, era o contrário d’Os Lusíadas: um poema da descoberta da terra. Lê-lo — nesta era de fuga do interior do país, nesta era da presumida superioridade do litoral, nesta era de mapas feitos de mar — é um caminho para a consciência da terra que somos. Somos terra. Num ciclo de leituras sobre Portugal, que é atualmente o da LERDOCELER, este é o livro que nos lembra de que, para lá de todo o resto ou com todo o resto, somos a terra sobre a qual pomos os pés e da qual andamos sempre a querer fugir.

A Portugal — não em, não por — é a viagem cuja preposição marca, desde o título, o sentido do movimento: a partir de afastamento, à procura de um encontro. E muito encontramos. Dentre esse muito, talvez o motivo mais constante seja o da chave, o da questão importante de encontrarmos ou não encontrarmos a chave. Sem chave não se entra. Sem saber onde está a chave, sem ir à procura da chave, sem que o guardador ou a guardadora da chave a faculte, sem que a chave encontre a porta e a abra, não entraremos e não conheceremos, coisa que acontece muitíssimas vezes. Este motivo da chave — só pela sua frequência e sem qualquer esforço explícito do autor nesse sentido — torna-se alegórico de um país fechado, escondido, subtraído, secreto, de um país por abrir. É a metáfora da ignorância de que o valor só se revela partilhando. A terra também é isto: o olhar que a gente tem sobre ela, o lugar de nós em que a guardamos, o como, aos outros, a abrimos.

O Viajante, uma espécie de Vasco da Gama ao contrário que anda a descobrir a terra numa caravela disfarçada de automóvel, é o seu mapa mental, cultural, sensitivo. A viagem é o viajante: desenhado a traços de bonomia e exigência, de olhar agudo, opinioso e contemplativo, cumpridor registo de pormenores, inventivo e recriador, humano, às vezes poeta.

O Viajante foi a Portugal, trouxe de lá a terra e soube escrevê-la. A escrita rola, desdobra-se leitura abaixo com a presteza do Viajante a ir de serra em vale, de rio em charneca.  É uma escrita sem acidentes, sem solavancos, de palavras bem rodadas por experiente conhecedor do seu poder e da sua resistência. Linguagem plástica, rica, rigorosa, inventiva.

A viagem por esta Viagem a Portugal é um regresso: ao país anterior às autoestradas, riscado pelos ziguezagues caprichosos de um herdeiro de Cesário «que andava na cidade como quem anda no campo» ou de um Caeiro que tinha «o costume de andar pelas estradas», um viajante que vai apascentando o rebanho dos seus pensamentos. Sem pressa.

Dizem-nos que somos férteis em transformar viagens em literatura e falam-nos da Peregrinação, da História Trágico-Marítima, de Wenceslau de Moraes, de Camilo Pessanha, de Camões... Mas ter a ousadia de quase quatrocentas páginas de viagem sem sair do berço, nem Garrett, o claro patrono, que só foi até Santarém e, breve, se perdeu noutra ordem de caminhos, os da novela romântica! A viagem é sempre um risco e esta também os tem: os da repetição, da monotonia, do adormecimento... Aqui, os mostrengos não são dos que fazem tremer. Mas que quereis? É este o país: um país incubado no desleixo, na inércia, na indiferença, velado por belezas irreveladas cuja História e Geografia – e há aqui muita História e Geografia – progressivamente se apagam da mesa do que interessa...

De vez em quando, é bom que nos vejamos ao espelho, e talvez que um bom espelho de um país seja a sua terra, as suas terras, os seus topónimos, os seus monumentos, as pedras arruinadas de antigos domínios nobiliárquicos e eclesiásticos, o seu calor e o seu frio, a sua chuva, os caminhos, maus e bons, por onde andou e anda.

Como diz o Viajante, a viagem não acaba nunca e, por este livro acima, por este país que ele nos conta abaixo, vemos raízes, vemos sementes, vemos origens, modos, atitudes, diferenças, constantes, tonalidades, vemos a pedra e a água, os muros e as árvores, vemos causas e consequências: paisagem que também somos.

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por Maria Almira Soares às 22:12

Sexta-feira, 09.05.14

VIAGEM A PORTUGAL

"Não resta muito mais da antiga cidade por estas bandas: está aqui a Casa dos Bicos, modesta prima afastada do Palácio dos Diamantes de Ferrara" [...]

José Saramago, Viagem a Portugal (1980)

 

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por Maria Almira Soares às 23:05

Sexta-feira, 09.05.14

A LEITURA

 

1. Frente a um texto, eu não fico parada; ele começa logo a criar um processo de verbalização em mim. A leitura não é uma suspensão de um texto à minha frente, não é um ecrã.

 

2. Perigosamente, as necessidades de alimento do imaginário são apresentadas como absolutamente ligadas ao imaginário do dinheiro. Há as bibliotecas, mundo maravilhoso, gratuito e gratificante, fora do mundo dos negócios.

 

3. A criança não tem em si inscrita a dimensão do tempo. Quem governa o tempo da criança é o adulto. O adolescente não toma o tempo a sério. Sobrepõe-lhe a vontade. A Escola não deve apresentar a leitura como um dilema entre tempo livre e tempo ocupado.

 

4. As respostas de cruz são antileitura, significam o grau máximo da instrumentalização escolar do texto literário.

 

5. Para formar leitores, é imprescindível ser um grande leitor, o que implica quantidade, qualidade, critério, sentido crítico, abrangência e diversificação de leituras, sensibilidade. Implica dados, informação, mas também emoções. Implica experiência e reflexão. Motivar para a leitura não se reduz a «mandar ler», «aconselhar a ler», pregar a «bondade da leitura». É mostrar em pessoa, em espécie, quão interessante é ler. É contar pequenas histórias de quando se estava a ler o livro tal e tal, pequenas ou grandes descobertas, surpresas, curiosidades, episódios, tomando a leitura como uma das linhas interessantes do decorrer da vida. Presença, projeção, em vez de apuradas técnicas e de efeitos lúdicos, espetaculares.

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por Maria Almira Soares às 22:08

Sexta-feira, 09.05.14

A RECORDAR...

 

"Ser professor é colaborar mais eficazmente com o futuro"


Ler mais: http://visao.sapo.pt/maria-almira-soares-a-arte-de-ensinar=f573369#ixzz31Fe3Xyp4

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por Maria Almira Soares às 21:13

Terça-feira, 06.05.14

CARTA AOS MEUS ÚLTIMOS ALUNOS II

 

   

Nos últimos anos tornastes-vos mais cépticos, meus alunos! Noutros tempos, não o éreis tanto. Vínheis ainda bastante convencidos de que a Escola sabia algumas coisas importantes. De que a Escola era fiável. Agora nem tanto. Adoptastes a postura da desconfiança, da indiferença sobranceira. Coisa que, em verdade, nada me admira. A Escola esforça-se muito por evitar qualquer desnível entre o dentro e o fora dela; a Escola, pobre dela, atingida por um complexo gregário, força-se a tornar-se parecida com a vida, almejando ser reconhecida como sua igual, mas esse esforço inútil e impróprio, é evidente que está, por definição, votado ao fracasso. Malgrado esse tonto desiderato, restam sempre algumas coisas que a Escola tem de vos ensinar, coisas que desconheceis e que ela tem de vos ensinar. E vós, que, de certo modo, julgais já tudo saber, que julgais tratar-se da mania, que a Escola tem, de inventar qualquer coisa para marcar ainda algum terreno seu, encolheis os ombros e lá ides calculadamente disfarçando a vossa genuína indiferença.

    Quando me lembro de vós e vos vejo, parece-me que gostaríeis de que a Escola só vos dissesse que sim, servisse apenas para oficializar o que já sabeis, para vos ratificar a vós que vindes já todos feitinhos por um mundo superpovoado de tanta e tão truculenta informação. Gostaríeis que a escola só vos fizesse as perguntas para as quais já possuís as respostas. Ou, pelo menos, respostas aproximadas que estais convencidos de que servem perfeitamente e que a Escola, como um parceiro benévolo, deveria aceitar. Por isso, ficais de certo modo ofendidos e perplexos, como se não estivésseis a ouvir bem, como se se tratasse de um problema de tradução, quando vos recuso peremptoriamente respostas imprecisas, pouco rigorosas, ainda que sensivelmente parecidas com o que poderia e deveria ser. É como se, acerca de tudo e de cada coisa de que a Escola tem de tratar, já tivésseis ouvido falar neste mundo que de tudo fala.

 (Excerto de Carta aos meus últimos alunos - 2008)

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por Maria Almira Soares às 14:05

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