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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Assim se desarticulou a aliança nuclear professor/aluno, como lugar singular da educação escolar. Outros termos, distensores do ponto de equilíbrio entre centro e periferias da escola, passaram a ter um lugar privilegiado no discurso e nas práticas da educação escolar. Entidades várias, de ordem social e ambiental, sobrepõem-se à singularidade da relação entre uma criança ou um jovem e um professor. Destituiu-se a relação: «esse imprevisível da relação pelo qual algo não é idêntico, mas eterno […] isso que define uma relação, o não estar determinada de fora, mas valer como tal, na sua complexidade», nas palavras de Silvina Rodrigues Lopes em Literatura, Defesa do Atrito. Subtrai-se da relação professor/aluno a potencialidade do seu carácter imprevisível e o seu horizonte de transcendência, dando-lhe um carácter finito de prestação social, cujos parâmetros passam a ser os de um serviço e cuja utopia é a da representação positiva daqueles a quem serve: a educação escolar procura a satisfação dos seus clientes.
Ilustração de Maria Portela
«Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito — um cágado. O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora estava a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na verdade, o tal cágado da zoologia. O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para contar ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás. 0uando chegou perto do tal sítio, o cágado, que já tinha desconfiado da primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa. O homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de muito espreitar não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto é, muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada. Tinham sido experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um homem dispõe até ao comprimento do braço e nada. Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda muito mais lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi por ali abaixo, exatamente como uma vara perdida.» [...]
Almada Negreiros
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