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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Em vésperas do início de um já passado ano letivo, perguntaram-me do JL quais eram as minhas perspetivas de professora de português sobre esse ano, na altura a começar. E eu pus-me a imaginar que me tinha aparecido o Génio da Lâmpada da Lucidez no Ensino que, como é da tradição, me tinha proposto formular três desejos e que, sem hesitar, eu aproveitara para dar voz a três graves urgências. Assim, não demorei a responder.
Em primeiro lugar, pedi à minha aparição que a nossa literatura clássica regressasse em força aos programas de português; que a sua presença, agora tímida e residual, deixasse de ocupar um lugar distributivo, mas passasse a ser central nesses programas; que se desqualificassem os falsos argumentos que a têm retirado e que se qualificasse a experiência demonstrativa de que quem sabe ler Os Lusíadas ou os Sermões de Vieira sabe servir-se dos textos do quotidiano, enquanto o contrário não é verdadeiro; que a determinação das leituras programáticas deixasse de ser consequência de uma visão precária, pessoal ou grupal, e passasse a ser fruto de um pensamento estruturado sobre desígnios fundamentados; que se enfrentassem, lá onde elas verdadeiramente residem, as aduzidas dificuldades de leitura dos grandes, belos e indiscutíveis textos, em vez de perversamente os transformar na causa do miserabilismo literário dos programas; que a programação do ensino do português passasse a ser fonte de enriquecimento cultural e não consequência de administrativismos...
Obrigada, Génio da Lâmpada da Lucidez no Ensino! No próximo ano letivo, teremos, na escola, a LEITURA LITERÁRIA DOS CLÁSSICOS PORTUGUESES!
O FALCÃO DE MALTA
Porquê ler um livro, cujo título nos é familiar apenas por o termos ouvido referir com alguma frequência, mesmo se à revelia do nosso interesse? Ou, então, porquê deixar um título conhecido de ouvido permanecer como mera associação de palavras, como porta em que nunca entrámos, como referência de um livro que nunca leremos?
Paul Auster, em A Noite do Oráculo, fixa-se num fragmento do Falcão de Malta de Dashiell Hammett: aquele em que Sam Spade, aparentemente sem nenhuma razão senão a de ir entretendo Miss O’Shaughnessy — enquanto esperam que o toque de telefone reative a ação — lhe conta o caso de um tal Flitcraft, que nem faz parte desta história. Um tal Flitcraft que, um dia, se sentiu como se “tivesse levantado a pálpebra da vida” (maravilhosa metáfora) “e tivesse resolvido olhar para o que se passava lá dentro”, e que, daí, repentinamente resolveu desaparecer “como um punho fechado quando se abre a mão” (outra maravilhosa metáfora!) e ir viver uma outra vida. Paul Auster percebeu que aquela “pequena história” era “um ponto de partida bestial”, para quem inventando histórias abre a pálpebra da vida, e escreveu A Noite do Oráculo.
Aqui, porém, nós não somos escritores, somos leitores e... E, daí, que compreendemos que a história de Flitcraft, na sua aparente vacuidade de acontecimento meramente curioso, é uma forma de Sam Spade estar falando, à sua cliente, de si mesmo, da sua essência de detetive, ou seja, de alguém que levanta a pálpebra da vida e sabe o que se passa lá dentro.
Porque é que um leitor procura uma história policial, a detective novel? E porque é que, dentro de uma detective novel, há alguém que procura um detetive? Porque, por exemplo, se quer compreender o desaparecimento de um marido, como ingenuamente fez a mulher de Flitcraft? Ou o desaparecimento de um aparentemente valiosíssimo falcão de Malta, como tortuosamente fez Miss O’Shaughnessy? Fundamentalmente, porque um detetive é um especialista da arte ou da ciência, ou das duas, de levantar a pálpebra da vida, compreender o seu olhar e explicá-lo. Inopinadamente, por via da história que lhe conta, Spade explica à sua cliente que ela o procurou, porque ele é capaz de lhe reordenar a vida segundo a sua vontade, ou seja, ele sabe como consertar a desordem causada por um desaparecimento. Os detetives existem para consertar desaparecimentos, parciais ou radicais, de pessoas, de objetos, de sentimentos, de valores materiais. E é assim que, por acréscimo, também nós, os leitores, percebemos a razão de andarmos atrás de Spade, como se também o tivéssemos contratado, não obstante ser outro o nosso contrato: o da leitura. É que a leitura “levanta a pálpebra da vida” e todo o leitor é um detetive seguindo pistas capazes de a consertar, à vida, segundo a sua vontade de leitor.
Ler histórias policiais é alimentar o gosto de dobrar esquinas inesperadas até que o labirinto se desfaz na revelação da morada certa da razão do nosso investimento mental e emocional. E quem é os nossos olhos e os nossos pés de leitores duma história policial? O detetive. E como é que o crime encontra o detetive ou o detetive encontra o crime? Múltiplos são, atualmente, os caminhos das histórias policiais, mas aqui, nesta história, criada por Dashiell Hammett (que foi durante oito anos detetive na agência Pinkerton) no final dos anos vinte do século vinte, encontramos uma matriz fundadora dessa exaustiva multiplicidade.
Afinal, por trás de um desses títulos muito falados, repetidamente referidos, quase proverbiais, que se colam ao mero processo associativo das palavras no discurso, o que encontramos é, sobretudo, um detetive: Sam Spade, uma espécie de prototipo indiscutível, um ícone, uma figura fundadora de uma estirpe.
Sam Spade: um olhar.
Sam Spade: uma linguagem seca, rápida, económica, plena de autocontrolo, sincopada, elítica.
Sam Spade: movimentos, gestos, um tom.
Sam Spade: a vivência da cidade, São Francisco, as ruas, os hotéis, a noite, as luzes, as bebidas.
Sam Spade: a intuição, a inteligência, a força, o lobo mau da contracena com a bela perversa, depois glosada até à exaustão.
Sam Spade: o jogo da crueldade e da compaixão, comandado pelo durão que vai direto ao coração das coisas; a mestria na manipulação das emoções; o domínio antecipado da reação seguinte; a dosagem da violência e da inteligência; o cinismo.
Sam Spade: o poder atrativo do dinheiro e o código de honra, de conduta do detetive.
Acerca desta sua criação, diz Dashiell Hammett: «O que move os meus detetives é terem sido contratados». — este, o expoente máximo de uma ética profissional.
Para quê cedermos à leitura d’O Falcão de Malta?
Para que, mais do que uma intriga, encontremos a fonte ordenadora dessa intriga, o detetive que, a partir de díspares fragmentos, conserta uma história, pondo-a em ordem, e finalmente descansa numa nova rotina, já que, como a personagem da parábola que contou à sua perversa cliente, “se adaptou ao facto de as vigas caírem” ou, no caso, ao facto de uma bela e atrativa mulher ser afinal uma perversa assassina?
Para que não fiquemos à toa, como ficou a mulher de Flitcraft?!
Por trás de um título, O Falcão de Malta, descobrimos, ou confirmámos, que Dashiell Hammett foi seminal como criador de histórias policiais.
Afonso, refiro-me a Afonso da Maia, tinha um plano, uma ideia de futuro para Portugal, e alguém, um neto. Já que o filho falhara, era na vida desse neto que esperava desenhar o seu plano. Todavia, Afonso da Maia estava enganado. Tão enganado, que o desgosto da degenerescência dessa ideia, em que investira crença, princípios, amor, lhe foi mortal. Não resistiu à evidência do seu engano. Expatriado de um Portugal suicidado e suicidário, Afonso da Maia anglicizara-se e, daí, acarinhara a ideia de transplantar para a terra portuguesa a força de uma seiva estrangeirada. Para a realização de tal plano, aparentemente, tinha tudo: a anglofilia, a pessoa do neto e o que restava da pureza da terra, dos ares, da água, Santa Olávia. É aí que inicia a sua luta, educando à inglesa o neto Carlos. Mas...
Mas Portugal não é a Inglaterra.
Mas...
Mas Carlos não é apenas o seu neto. É o filho do suicida romântico e da romântica aventureira. É o neto do negreiro. Por mais fortes e invasores que sejam a convicção, a pureza de princípios, o amor de quem nele empenha o que lhe resta de vida, o alcance do sucesso do seu projeto não coincide com a grandeza desses princípios, convicção, amor. Tal grandeza minimiza a presença de outros elementos que a prejudicam, que conjuram a sua ruína, que polarizam a sua destruição. Combinações mortais! Uma educação transplantada não dá frutos em terra alheia, não medra em meio profundamente viciado nas pechas nacionais. Um ser feito de genes ancestrais resiste à força enformadora de uma educação que os contraria. A uma nação, política, ética, estética, material e animicamente doente, ainda que sob tratamento com remédio importado de 'povos superiores', o mal que a corrói regressa. Só cavando-o e arrancando-o da própria terra, dele se extrairá o princípio da cura. Porque o mal, parecendo promissivamente escorraçado, pairará, nem que seja no desconhecido, e acabará por seguir o seu caminho natural de regresso às suas raízes, de identificação incestuosa com a sua origem, desdenhando a inocuidade das ideias importadas. Assim, caiu Afonso da Maia e a sua ideia de energia, de inteligência, de progresso, de justiça, de superioridade, que julgara trazer de Inglaterra, e que julgara poder plantar em Portugal através do seu neto Carlos. Afinal, também Afonso se iludira, se encantara superficialmente com o espetáculo do que viu lá fora. Haveria que ter pensado mais profundamente, haveria que ter analisado mais profundamente a realidade portuguesa, haveria que ter procurado uma outra ideia genuinamente portuguesa...
Eça, não só faz falhar o plano de Afonso, como comete a subtileza trágica de o fazer sucumbir ao reencontro fatal, incestuoso, entre o vicioso romantismo nacional, atentatório do desejável carácter do neto, e o vicioso romantismo nacional, tragicamente escondido sob a aparência estrangeirada do louro dos cabelos, do porte, dos costumes, do sotaque de uma mulher, ramo da mesma árvore, também ela sua neta. A derrota é absoluta, porque, não só o velho sonhador morre, como também os seus protagonistas não a assumem, não tiram lição, e continuam a fechar círculos viciosos, fugindo para esse mítico e falso Estrangeiro, cá dentro ou lá fora. A derrota do projeto não é redentora.
Ironicamente, sobra a voz do velho Alencar: «é aqui que nascemos, é aqui que rebentamos».
E do Eça que, no subsequente A Cidade e as Serras, já não mata afonsos da maia. Mata o estrangeiro.
Por mais prolífero que seja um escritor e por mais insistente que seja um leitor, um dia vem em que, lidos e relidos os livros, chegado ao fim o fio de tanta leitura e impossibilitada a capacidade vital do autor criar novidades, o leitor pensa em tornar-se autor substituto: ‘se a tanto o ajudar o engenho e a arte’. Vamos ver se é o caso (o caso de ter engenho e arte) de Sophie Hannah, a leitora de Agatha Christie que, assim, se irá tornar uma espécie de escritora-fantasma-póstuma de uma história de Hercule Poirot não-christiana. Chama-se ela, a história, à boa maneira da grande criadora do inconfundível detetive, Os Crimes do Monograma (Asa) e vai ter lançamento simultâneo em todo o mundo, a 9 de Setembro.
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