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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
O FALCÃO DE MALTA
Porquê ler um livro, cujo título nos é familiar apenas por o termos ouvido referir com alguma frequência, mesmo se à revelia do nosso interesse? Ou, então, porquê deixar um título conhecido de ouvido permanecer como mera associação de palavras, como porta em que nunca entrámos, como referência de um livro que nunca leremos?
Paul Auster, em A Noite do Oráculo, fixa-se num fragmento do Falcão de Malta de Dashiell Hammett: aquele em que Sam Spade, aparentemente sem nenhuma razão senão a de ir entretendo Miss O’Shaughnessy — enquanto esperam que o toque de telefone reative a ação — lhe conta o caso de um tal Flitcraft, que nem faz parte desta história. Um tal Flitcraft que, um dia, se sentiu como se “tivesse levantado a pálpebra da vida” (maravilhosa metáfora) “e tivesse resolvido olhar para o que se passava lá dentro”, e que, daí, repentinamente resolveu desaparecer “como um punho fechado quando se abre a mão” (outra maravilhosa metáfora!) e ir viver uma outra vida. Paul Auster percebeu que aquela “pequena história” era “um ponto de partida bestial”, para quem inventando histórias abre a pálpebra da vida, e escreveu A Noite do Oráculo.
Aqui, porém, nós não somos escritores, somos leitores e... E, daí, que compreendemos que a história de Flitcraft, na sua aparente vacuidade de acontecimento meramente curioso, é uma forma de Sam Spade estar falando, à sua cliente, de si mesmo, da sua essência de detetive, ou seja, de alguém que levanta a pálpebra da vida e sabe o que se passa lá dentro.
Porque é que um leitor procura uma história policial, a detective novel? E porque é que, dentro de uma detective novel, há alguém que procura um detetive? Porque, por exemplo, se quer compreender o desaparecimento de um marido, como ingenuamente fez a mulher de Flitcraft? Ou o desaparecimento de um aparentemente valiosíssimo falcão de Malta, como tortuosamente fez Miss O’Shaughnessy? Fundamentalmente, porque um detetive é um especialista da arte ou da ciência, ou das duas, de levantar a pálpebra da vida, compreender o seu olhar e explicá-lo. Inopinadamente, por via da história que lhe conta, Spade explica à sua cliente que ela o procurou, porque ele é capaz de lhe reordenar a vida segundo a sua vontade, ou seja, ele sabe como consertar a desordem causada por um desaparecimento. Os detetives existem para consertar desaparecimentos, parciais ou radicais, de pessoas, de objetos, de sentimentos, de valores materiais. E é assim que, por acréscimo, também nós, os leitores, percebemos a razão de andarmos atrás de Spade, como se também o tivéssemos contratado, não obstante ser outro o nosso contrato: o da leitura. É que a leitura “levanta a pálpebra da vida” e todo o leitor é um detetive seguindo pistas capazes de a consertar, à vida, segundo a sua vontade de leitor.
Ler histórias policiais é alimentar o gosto de dobrar esquinas inesperadas até que o labirinto se desfaz na revelação da morada certa da razão do nosso investimento mental e emocional. E quem é os nossos olhos e os nossos pés de leitores duma história policial? O detetive. E como é que o crime encontra o detetive ou o detetive encontra o crime? Múltiplos são, atualmente, os caminhos das histórias policiais, mas aqui, nesta história, criada por Dashiell Hammett (que foi durante oito anos detetive na agência Pinkerton) no final dos anos vinte do século vinte, encontramos uma matriz fundadora dessa exaustiva multiplicidade.
Afinal, por trás de um desses títulos muito falados, repetidamente referidos, quase proverbiais, que se colam ao mero processo associativo das palavras no discurso, o que encontramos é, sobretudo, um detetive: Sam Spade, uma espécie de prototipo indiscutível, um ícone, uma figura fundadora de uma estirpe.
Sam Spade: um olhar.
Sam Spade: uma linguagem seca, rápida, económica, plena de autocontrolo, sincopada, elítica.
Sam Spade: movimentos, gestos, um tom.
Sam Spade: a vivência da cidade, São Francisco, as ruas, os hotéis, a noite, as luzes, as bebidas.
Sam Spade: a intuição, a inteligência, a força, o lobo mau da contracena com a bela perversa, depois glosada até à exaustão.
Sam Spade: o jogo da crueldade e da compaixão, comandado pelo durão que vai direto ao coração das coisas; a mestria na manipulação das emoções; o domínio antecipado da reação seguinte; a dosagem da violência e da inteligência; o cinismo.
Sam Spade: o poder atrativo do dinheiro e o código de honra, de conduta do detetive.
Acerca desta sua criação, diz Dashiell Hammett: «O que move os meus detetives é terem sido contratados». — este, o expoente máximo de uma ética profissional.
Para quê cedermos à leitura d’O Falcão de Malta?
Para que, mais do que uma intriga, encontremos a fonte ordenadora dessa intriga, o detetive que, a partir de díspares fragmentos, conserta uma história, pondo-a em ordem, e finalmente descansa numa nova rotina, já que, como a personagem da parábola que contou à sua perversa cliente, “se adaptou ao facto de as vigas caírem” ou, no caso, ao facto de uma bela e atrativa mulher ser afinal uma perversa assassina?
Para que não fiquemos à toa, como ficou a mulher de Flitcraft?!
Por trás de um título, O Falcão de Malta, descobrimos, ou confirmámos, que Dashiell Hammett foi seminal como criador de histórias policiais.
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