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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
[...] Bem, avancemos, voltemos à coisa que, ainda agora, ficou pouco esclarecida, a propósito da conversa sobre Horácio e Roma e a Grécia e isso de ser vencido o vencedor, de saber aceitar a superioridade. Que bem que Roma fez em deixar-se vencer pelo vencido! Alguns dizem que foi esse o começo do fim de Roma. Talvez… mas, mais importante do que isso, foi o princípio do sem-fim de Grécia-Roma de que, ainda hoje, somos os herdeiros. Herança que há quem diga (e eu também) que andamos a desbaratar. Tende paciência, meus alunos, mas vou mesmo aborrecer-vos a falar, com alguma demora, deste encontro entre Roma e a Grécia. Roma era boa em três coisas: no trabalhar da terra, no fazer do Direito e o administrar, no ser soldado e combater. Nestas três coisas, eram imbatíveis, os romanos. Povo pragmático, com um apurado sentido do útil, do prover das necessidades de preservação. Vede que até grande parte do vocabulário latino tem um sentido original congruente com o contexto agrícola! Hei de falar-vos disto, mas agora não. Já chega de labirintos! Fica a promessa feita: por sinal, uma das que vos fiz e não cheguei a ter tempo de cumprir, antes de deixar de ser vossa professora. Hei de explicar-vos a curiosa origem do sentido de algumas palavras a que achais tanta graça, as tais curiosidades etimológicas de que tanto gostais, contrariando, assim, a ideia-feita de que só vos interessa o presente. Bom, enfim, isso das etimologias fica para outra altura, que esta carta também serve para remir promessas não cumpridas. Pois, como vos ia dizendo, Roma era o útil, o prático, o desinteresse da fantasia, o desinteresse do imaginário, o desinteresse da ideia puramente especulativa. E estas coisas de que Roma se desinteressava eram precisamente aquelas com que o límpido céu da Grécia fadou os gregos e os fez serem geniais inventores de deuses, de mitos, de artes, de ciências, de filosofias… Mas Roma, meus queridos alunos, Roma não foi boçal: abriu-se à superioridade grega, soube abrir os seus campos de fragilidade com inteligência, soube deixar-se conquistar pelo desconhecido que a seduzia, pela grande arte, pela grande literatura gregas… Percebeis agora como tudo isto tem implicações civilizacionais? Percebeis como é boçal dizerdes que não presta um livro que ainda não lestes? Também Roma poderia ter dito “não presta”, ficando apenas a rever-se no brilho das suas vitórias militares, mas não o fez e ainda bem que não o fez. Lembrais-vos da raposa a propósito das uvas: — «Não prestam nem cães as podem tragar.»? Boçal, a raposa! E era esperta, como sabeis, muito esperta. E, no entanto, boçal! As duas coisas não são antagónicas e andam até, muitas vezes, de mãos dadas. Não deixeis que façam de vós espertos boçais. Digo-vos isto, mas bem sei qual é o sentido da corrente e que vós não sabereis, não podereis opor-vos ao sentido da corrente. Até eu ainda aí estaria a dar-vos aulas, se não estivesse tão cansada de me opor ao sentido da corrente. Se não me sentisse, perdoai-me a ousadia, como o Camões naquele verso que lemos juntos e cujo sentido vos expliquei: «No mais, Musa, no mais, que a lira tenho/ destemperada e a voz enrouquecida/e não do canto…». Não mais a presumível pertença a esse mundo de «gente surda», cegos conduzindo cegos, como na epígrafe daquele livro que uma de vós leu e não percebeu totalmente; não percebeu totalmente mas leu. Sei que estas são palavras tristes, estas de vos confessar a minha impossibilidade de continuar a ser professora: para isto, também serve esta carta; para apaziguar algum efeito de má consciência provocado por esta minha decisão, de algum modo quixotesca, de deixar de ser professora. Teve de ser, meus últimos alunos, teve mesmo que ser. E percebereis bem porquê, se bem lerdes o que aqui vos vou escrevendo. «Ou isto ou aquilo» — escrevia Cecília Meireles. Há que fazer escolhas. No dia em que vos comecei a escrever esta carta, ainda era vossa professora, mas tinha já esta sensação azeda de como que traição; no dia em que vos dei a última aula, quando vos disse que era a última, vi nos vossos olhos, em alguns dos vossos olhos: — E agora? E agora quem é que me vai endireitar os contos que escrevo? — E agora? Agora com quem é que vou discutir o valor literário do Código Da Vinci? — E agora…? E lá tive que travar a comoção que senti por, talvez exageradamente, estar a sentir que, de certo modo, ao deixar-vos, estava a modificar o vosso futuro. Um professor pode interferir num futuro. Não já eu. Outros o farão. Vós sabereis ser o que quiserdes ser, pois, ao mesmo tempo que sinto que vos faço falta, sinto que falta não vos faço. Em todo o caso, a verdade é que já não estou aí convosco e, quanto à falta/não falta que vos possa fazer, a coisa resolve-se assim: o impossível nunca faz falta; fazer-vos falta seria contardes com o impossível. Se sentistes alguma falta, foi apenas no momento da passagem do possível ao impossível e esse momento já passou. Agora não serei para vós, se o for, senão uma lembrança. A vossa realidade será outra, toda, completa, e nela vivereis a vossa vida escolar. E vós a mim? Far-me-eis falta? Só um tempo do tamanho desta carta. Só, enquanto a escrever, vivereis ainda para mim como alunos. Depois, tornar-vos-eis, como outros antes de vós já se tornaram, pessoas que, por vezes, encontro aqui e ali, e dizem: — Fui seu aluno… e eu digo: — Pois foste, lembro-me bem.
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