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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Terça-feira, 27.01.15

PRIMO LEVI

Se questo è un uomo

 

Voi che vivete sicuri

Nelle vostre tiepide case

voi che trovate tornando a sera

Il cibo caldo e visi amici:

 

Considerate se questo è un uomo

Che lavora nel fango

Che non conosce pace

Che lotta per mezzo pane

Che muore per un sì o per un no.

Considerate se questa è una donna

Senza capelli e senza nome

Senza più forza di ricordare

Vuoti gli occhi e freddo il grembo

Come una rana d'inverno.

 

Meditate che questo è stato

Vi comando queste parole.

Scolpitele nel vostro cuore

Stando in casa andando per via

Coricandovi alzandovi

Ripetetele ai vostri figli.

 

O vi si sfaccia la casa

La malattia vi impedisca

I vostri nati torcano il viso da voi.

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por Maria Almira Soares às 10:47

Sexta-feira, 23.01.15

PALAVRA-PASSE

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A CRENÇA NA DESCRENÇA

 

A leitura dos romances de Saramago pressupõe que nos aventuremos a ficcionar a crença em coisas de que descremos para lá da dúvida razoável.

De facto, para os lermos e enquanto os lemos, ficcionamos respostas afirmativas a perguntas descrentes como, por exemplo, estas: E se a passarola não tivesse sido incapaz de voar desmentindo o que nos conta a História? E se a Península Ibérica fosse uma ilha à deriva, ao invés do que nos diz a Geografia? E se, contra a Lei das probabilidades biológicas, todos ficássemos cegos? E se, Impossível dos impossíveis, a morte parasse? E se, contra toda a Evidência, cada homem não fosse exemplar único? E se, contrariamente ao que rezam os Escritos pessoanos, Ricardo Reis tivesse tido existência real e, após a morte de Pessoa, não tivesse ficado no Brasil?

Tacitamente respondemos-lhes que sim: sim, a passarola voou; sim, a Península soltou-se e é ilha à deriva; sim, todos os humanos estão cegos; sim, a morte para de matar de vez em quando; sim, cada homem tem um duplicado; sim, Ricardo Reis regressou do Brasil depois da morte de Pessoa. Por que razão respondemos deste modo? Porque só assim a leitura funciona plenamente. Porque ler Saramago exige não apenas a intervalar suspensão da incredulidade, mas o compromisso com um edifício romanesco equilibrado sobre uma interpelação descrente: E se…?.

E se...? é, pois, a palavra-passe para entrarmos nos mundos ficcionais de Saramago que nos pedem que acreditemos na descrença. A sua escrita é a arte de desacreditar a realidade e respetivas versões aprovadas, infamando-as pela suspeita de que faltaram à verdade, prometendo-nos que vamos finalmente descobrir como seriam se tal não fossem e corrigindo-as pela ascensão à beleza de uma recriação descrente.

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por Maria Almira Soares às 13:14

Terça-feira, 20.01.15

HISTÓRIA BREVE

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ELE andava por aí, meio distraído, por entre as enxurradas de palavras sopradas aos quatro, aos seis, aos sete ventos... Volta, não volta, na ininterrupta corrente verbal, lá vinha, soprando mais alto à cabeça de uma frase, o EU: bom, muito, muito bom, varria tudo com rajadas de insulto, depreciação, crítica. E tudo, todos os eles incluindo ELE, sarabandeava para os cantos como coisa que não presta mesmo para nada. Então, ELE despertou da sua distração. Cabisbaixo mas furioso, investiu contra a força da corrente, correu, saltou e, chutando o EU do princípio da sua frase, conseguiu apanhar-lhe o lugar. Tranquilamente, sentou-se aos comandos e desatou a varrer tudo com críticas, insultos, depreciações. Sentiu-se bom, muito, muito bom. Sentiu-se EU.

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por Maria Almira Soares às 14:45

Segunda-feira, 19.01.15

O ESCRITO

 

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O escrito, ou seja, o que é para ser lido, não se gera espontânea e primariamente da momentânea vontade ou necessidade comunicativa, mas deriva da opção pela permanência. Scribere é «gravar», significado que absorve ainda as ideias de «pesar sobre», de «conservar, perpetuar-se» e até a de «transferir». Esta escolha da permanência que seleciona o escrito é simétrica da leitura como escolha por parte de um sujeito leitor que, ao ler, escolhe o que pretende gravar, aplica critérios de atribuição de peso, admite contribuir para a perpetuação, quer ser elo de uma transferência. Por isso, a qualidade da leitura está sujeita à tensão instabilidade/permanência do escrito que lê. Há escritos precários que se gastam na sua funcionalidade, correlatos de uma leitura com baixa gravidade que não se inscreve no leitor: a leitura utilitária. O escrito literário, de outro modo, desprovido de função utilitária, necessita de um cometimento um tanto misterioso do leitor para a efetivação da sua permanência. O leitor do literário não é mero mandatário do destino de um texto, simples destinatário, mas um cúmplice autónomo da sua vontade. A leitura não cria capital cultural através de um voluntarismo apassivante e evasivo do leitor; só o faz quando o leitor sabe exigir responsabilidade às palavras que, pela leitura, se intrometem no seu real. Um dos índices da capacidade cultural do escrito é a sua literariedade. Ao escrito literário concedemos, enquanto seus leitores, um grau de permanência considerável, sabendo reconhecer-lhe e exigir-lhe o poder de, com a nossa cumplicidade, fazer, no real, uma abertura para o imaginário. A leitura do escrito literário é particularmente exigente de uma implicação causativa do leitor e, por isso, tem um particular efeito de permanência transformadora do humano. Sobre a natureza do texto literário, diz Roland Barthes, na sua Lição inaugural da cadeira de Semiologia, proferida em circunstâncias, que ele próprio refere como «quando neste momento o ensino das Letras se encontra despedaçado até ao cansaço pelas pressões da exigência tecnocrática por um lado, e pelo desejo revolucionário dos estudantes por outro»:

     «Esta trapaça salutar, esta esquivança, este logro magnífico que permite conhecer a língua no exterior do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, é aquilo a que eu chamo literatura [...]»

São palavras, estas, sustentadoras de uma definição do literário como a possibilidade de a língua conjurar o seu poder de invenção, expondo a máxima força da sua natural capacidade de se engendrar diferente em si mesma, de se dar a saber sob metamorfoses reveladoras de todo o seu poder de ser arte. A criação literária que tem a natureza do «fingimento» no sentido pessoano do termo, a invenção de si mesmo como outro que o tomar literário das palavras cria, permite, através de um processo transfigurador que encerra ao mesmo tempo a chave do regresso ao autor, a expressão de uma intimidade.

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por Maria Almira Soares às 11:59

Sexta-feira, 16.01.15

O INFANTE

O DETECTIVE DAS PALAVRAS

O INFANTE

Hoje, cá em casa, andamos todos atarefadíssimos a preparar o dia de amanhã. E que coisa, assim tão importante, vai acontecer amanhã? Amanhã vamos partir para a terra da minha mãe, para lá passarmos as férias. Férias! Não devo ser o único a adorar esta palavra. É boa para pensarmos nela e sonharmos com ela. E é óptima para se dizerem frases como esta: — Como estou em férias, vou viajar. Outra palavra excelente: viajar! Férias e viajar são duas palavras que se dão mesmo bem uma com a outra. Pois é, estou mesmo feliz só de pensar que, por uns tempos, vou mudar de vida. Esta mudança para a terra da minha mãe até parece um passe de mágica, como se, ao mesmo tempo, fôssemos os mesmos e não fôssemos os mesmos. A mim, por exemplo, deixam-me muito mais à vontade. Posso fazer coisas que, na cidade, são muito mais difíceis de conseguir, como andar sozinho na rua. E as casas? As casas são, quase todas, já bastante velhas. Como a da minha avó, para onde vamos. Tão velha que, se dermos um passinho com mais força, começa logo a ranger. O pior (ou o melhor) são os fantasmas. É verdade! Dizem que há lá casas onde aparecem fantasmas. Às vezes, durante a noite, ouço uns barulhos estranhíssimos. O meu pai diz que é a casa a arrefecer, que as madeiras estão velhas e estalam à noite, quando arrefece… Não sei, mas eu, já metidinho na cama, adoro fechar muito os olhos e acreditar mesmo que andam fantasmas (Uuuuuhhhhh!) pelo corredor. Tenho um bocadinho de medo, mas gosto. Como quando vamos passear à noite para uma estrada velha que não tem nenhuma iluminação. É tão escuro, tão escuro, que quase só nos distinguimos pelos barulhos que fazemos. Mas, quando levantamos os olhos para o céu, as estrelas são tantas, tantas, que parece um tesouro a brilhar. Fantasmas! Tesouros! Segredos! É, na aldeia da minha mãe, que vivo as mais emocionantes aventuras. Às vezes, até descubro coisas interessantíssimas na minha área de especialidade que, como sabem, é a de detective das palavras. É que as pessoas da aldeia sabem coisas! Coisas antigas. E têm modos de falar misteriosos. Pelo menos para mim. O mais espantoso de todos é o professor Santiago. Gosto muito do professor Santiago e ele, embora se esteja sempre a meter comigo e a resmungar, também parece que gosta de mim. No fundo, damo-nos bem. Foi o primeiro professor da minha mãe e querem saber uma coisa de chorar a rir? Trata-a por Naninha. A minha mãe, a senhora D. Adriana, para o professor Santiago, é a Naninha! Era assim que lhe chamavam quando era pequenina. Adoro descobrir estas coisas! Para mim, o professor Santiago é uma fonte inesgotável de curiosidades. É um sábio. Sabe muito de velharias, de histórias antigas, e tem uma maneira de conversar que parece que está sempre a desafiar-nos para resolvermos alguma charada. Usa palavras estranhas. Então a mim, chama-me cada coisa: seu meliante, seu farsante, seu bargante… Olhem, ainda no ano passado, aconteceu uma coisa bem engraçada. Mas que grande barracada que eu dei! Mas fiz uma descoberta sensacional! Descobri que… Vou contar:

Um dia, ia eu todo contente pela rua abaixo em direcção ao largo para brincar com os meus amigos, quando vi, ao longe, que o professor Santiago estava à janela. Passei, olhei e cumprimentei-o: — Bom dia, senhor professor.

É assim que toda a gente na aldeia o trata.

— Olá, infante! Então como é que vai a vida?

Apanhado de surpresa e sem pensar, repliquei: — Infante?! Mas eu nem me chamo Henrique!

— Ah, sim? Olha, verdade, verdadinha, conheci-te ainda infante… mas infante é que tu já não és… Nem desses nem dos outros.

— Nem desses nem dos outros!? Que grande charada! — Fiquei eu a matutar, enquanto o professor continuava a fitar-me com o olhar desafiador do costume. Para mim, só havia um infante: aquele que se pusera a olhar o mar na ponta de Sagres, o infante D. Henrique. Quando cheguei a casa, perguntei ao meu pai se havia mais infantes para além deste. Ele interrompeu a leitura do jornal e explicou-me que antigamente se chamava infantes aos filhos dos reis, como era o caso de D. Henrique.

— Ah, então há esses infantes. E os outros?

— Quais outros?

— Foi o professor Santiago que disse.

— Deves ter percebido mal. O professor Santiago sabe bem o que diz.

— Mas porque é que os filhos dos reis se chamavam infantes?

— Então ainda não ouviste falar da infância?

— Claro.

— Então, como são mais novos e não têm o poder dos pais, os filhos dos reis, enquanto não reinam ou se nunca vierem a reinar, é como se ficassem sempre na infância, como se fossem sempre crianças: ficam sempre a ser chamados infantes. Percebeste?

Eu disse que sim, mas a minha dúvida ainda estava longe de estar totalmente esclarecida: porque é que, segundo o professor Santiago, eu, que sou uma criança, «não sou infante nem desses nem dos outros»? «Desses», tudo bem. Sei muito bem que o meu pai não é nenhum rei. Mas «dos outros»?! Quais outros? Que charada! Comecei a tentar lembrar-me de mais alguma coisa que me ajudasse a descobrir este mistério e, de repente, vieram-me à cabeça mais umas palavras que ele disse: «e logo tu, meu grande tagarela, que falas pelos cotovelos». Ora essa, que tinham os meus cotovelos a ver com os infantes? Tagarela ainda fui ver ao dicionário da minha avó e descobri que era fala-barato. Esta também é engraçada: quem fala muito é fala-barato! Mas não me resolveu o problema de eu não ser infante «nem desses nem dos outros». A minha curiosidade era tanta, que lá me resolvi a ir, com uma carinha de penitente e falinhas mansas, enfrentar de novo o Professor Santiago: — Ó senhor professor, vá lá, diga lá quais são os «outros infantes», para além dos filhos dos reis, diga lá.

— Ah, ah, seu farsante, de reis, já sabe alguma coisita… não é? Mas nesta dos outros infantes é que está mesmo às escuras…

— Vá lá, explique lá.

— Bem, bem. Para ter, é preciso merecer. Vou dar-te uma oportunidade de te ajudares a ti próprio na descoberta do que queres saber.

Tirou uma folha de um caderninho que trazia sempre no bolso e pôs-se a escrever devagarinho, como se estivesse a pensar ao mesmo tempo que escrevia. Quando acabou, disse:

— Aqui levas as pistas necessárias para encontrares aquilo de que precisamos para que eu satisfaça a tua curiosidade.

Eu já sentia no ar o cheirinho a aventura. Começava a ficar entusiasmado: — Até parece um mapa de tesouro.

— E é. E é. Não há melhor tesouro do que conhecermos bem a nossa língua portuguesa.

Mal saí dali, pus-me a olhar fixamente para o que estava escrito no papel que me dera o professor:

«Vai ao princípio da principal

E verás uma alta ao pé de uma baixa.

Entra na alta e vira à direita.

Abre o de duas portas.

Na 120 do vestido de amarelo, encontrarás as seguintes palavras: “pueros infantia linguae”.

Copia as três palavras que estão antes destas.

Traz-mas e dar-te-ei a solução.»

— Que charada! Até parece uma mensagem de um velho mágico! «Na 120»!? Será uma estrada? «O de duas portas»!? Será um carro? «O vestido de amarelo»!? Que charada!

Resolvi sentar-me numa pedra à beira do caminho para pensar com mais calma.

— Vamos lá ver isto. Uma coisa de cada vez: se no «vestido de amarelo» há palavras, o mais certo, o mais certo… é que… seja um livro! Mas um livro vestido!? De amarelo?! Só se for, só se for… um livro encapado com papel amarelo! Deve ser um livro antigo, que está encapado para não se estragar. Suspirei aliviado com estas pequenas descobertas, mas logo voltei à carga: — Mas onde? Onde estará este livro amarelo?

Recomecei a ler devagarinho a mensagem do professor:

«Vai ao…»

— «Vai»? Eu, quando vou, vou… pela rua… Rua principal! É isso. É na rua principal da aldeia! No princípio da rua principal da aldeia! Desatei a correr e quando cheguei à entrada da rua principal, levantei os olhos e que vejo eu? Uma casa alta mesmo ao pé de uma muito baixa. Entrei na alta, que era a escola, virei à direita e logo encarei… Sabem com quê? Com um armário de duas portas. Imediatamente o abri e, à minha frente, distinguia-se perfeitamente um grande livro encapado de amarelo! Só faltava a 120. Voltei à mensagem: «Na 120 do vestido de amarelo, encontrarás as seguintes palavras…» Se o vestido de amarelo era um livro, então, a 120 de um livro deveria ser… a página 120! Era isso. Abri o livro na página 120 e os meus olhos ansiosos, sem perceberem nada do que lá estava escrito, começaram a percorrê-la, linha a linha, à procura das palavras mágicas: — Bingo! Cá estão elas: Agora é só copiar as três palavras que estão antes destas.

Tirei do bolso um lápis que trago sempre comigo e, com alguma dificuldade, pois eram tudo palavras estranhas e completamente desconhecidas para mim, completei a frase: «protrahere ad gestum pueros infantia linguae».

— Safa! Que palavras esquisitas! Devem ser da língua dos mágicos.

Missão cumprida. Arrumei o livro no armário, guardei o papel no bolso e não perdi tempo a voltar ao encontro do professor Santiago.

— Estão aqui as palavras, senhor professor.

— Já, seu bargante? Hum, hum, vamos lá ver isso.

Eu dei-lhe o papel. E ele, muito calado, parecia divertido:

— Por Hércules, fizeste o trabalho, mereces a recompensa. Ora senta-te aqui ao pé de mim e escuta com muita atenção tudo o que te vou contar.

E começou: — O livro de onde copiaste estas palavras é muito antigo. Foi escrito em latim, por Lucrécio, um escritor romano, que viveu no século primeiro antes de Cristo, e chama-se De Rerum Natura, que significa Acerca da Natureza das Coisas. É um livro muito interessante e, até, engraçado porque tenta explicar a origem de todas as coisas, plantas, animais, pessoas, num tempo em que ainda não havia saber suficiente para o fazer cientificamente. E, então, o Lucrécio inventa teorias que, hoje, nos parecem muito curiosas.

— Ó senhor professor, mas o que é que isso tem a ver com os infantes?

— Calma, rapazinho. Já lá vamos. Uma coisa, cuja origem também é muito interessante saber, é a linguagem. Não gostavas de saber a origem da linguagem, das palavras que dizemos?

— Sim, sim. Isso interessa-me e muito.

— Pois, como eu te ia a dizer, Lucrécio também arranja uma explicação para a origem da linguagem. Queres ver?

Voltou-se para a secretária e pegou num livro que devia ser igual ao que estava guardado no armário da escola. Só que, como não estava encapado, via-se perfeitamente, gravado logo no princípio, o seguinte:

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Abriu-o e leu, adaptando-o para português, o pedacinho de que fazia parte a frase mágica que me iria revelar quem eram, afinal, os «outros infantes»: «… foi a natureza que obrigou os homens a criarem os vários sons da linguagem e a dar um nome a cada coisa, do mesmo modo que os bebés por não saberem ainda falar, se vêem obrigados a apontar com o dedo as coisas que querem…» E, logo a seguir, explicou: — Para Lucrécio, foi naturalmente que os homens, por necessidade, foram inventando as palavras e pondo um nome a cada coisa. Como, para lhes facilitar a realização das tarefas da vida, precisavam de dar nomes às coisas, naturalmente, foram dividindo os sons que faziam, separando-os em diferentes palavras, uma para cada coisa. Não está nada mal pensado. Estás a perceber?

— ‘Tou,’tou.

— Então, vamos lá, agora, aos infantes. A frase que me trouxeste: «protrahere ad gestum pueros infantia linguae» significa o seguinte: a incapacidade de falar obriga os bebés a fazer gestos. Ora, nesta frase, qual achas tu que é a palavra que significa bebés?

Infantia. — arrisquei eu rapidamente.

— Ah! Ah! Caíste que nem um patinho! Pois não é. É pueros. Pueros é que são os bebés, como na palavra puericultura, que significa o tratamento dos bebés.

— Mas, então, se infantia, que é tão parecida com infância, não significa bebés, o que é que ela significa?

— Ora aí é que está a solução de todo o problema: a palavra infância, na sua origem, em latim, significava incapacidade de falar. E o infante era aquele que ainda não sabia falar. Esta é que é a solução: os «outros infantes» são as crianças que ainda não sabiam falar. Por isso, é que tu, meu grande tagarela, também não és um infante desses outros.

— Ah! Ah! Agora percebo.

— Pois percebes, meu meliante. E ainda vais perceber outra coisa: quase todas as palavras que têm a ver com a fala: falar, falante, fama, afamado, difamar… e muitas outras, que ainda não conheces mas virás a conhecer, têm todas, como a palavra infante, a sílaba fa, que é a partícula mais pequenina com o significado de falar.

— Caramba! Nós até parecemos dois cientistas! Até parece que estamos a ver as palavras ao microscópio para descobrir as partículas das substâncias de que são formadas. Agora descobrimos o fa: a partícula do falar! É mesmo engraçado!

— Pois é, seu farsante!

— E agora já sei: eu não sou infante de uns, porque o meu pai não é rei; e, dos outros, porque já falo, já sei falar e, até falo pelos cotovelos!

— Brilhante!

Que grande descoberta e que grande lição! Antigamente, em latim, infante era a criança que ainda não sabia falar e eu, outro dia, ouvi a minha mãe dizer que a minha tia parecia uma criança, que era muito infantil, porque nunca se calava, estava sempre a falar! É mesmo engraçado descobrir como o sentido das palavras muda tanto.

Bem, isto foi no ano passado. Este ano, ainda não sei que aventuras é que me esperam na terra da minha mãe. Só sei que, amanhã, quando lá chegar e encontrar o professor Santiago, lhe vou logo contar como me diverti a chamar infante ao Rui! É que o Rui é um amigo meu que é muito, mas muito, caladinho!

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por Maria Almira Soares às 13:15

Quarta-feira, 14.01.15

O MINISTRO

O DETECTIVE DAS PALAVRAS

O MINISTRO    

   Olá, Detective das Palavras! Hoje vais encarregar-te de um caso que nem parece ser dos mais difíceis: o caso da palavra MINISTRO. À partida, ninguém parece desconhecer o significado desta palavra. Toda a gente sabe a quem a pode aplicar e, por isso, de um modo geral, ninguém se engana no seu uso. E, muito menos tu, o experiente Detective das Palavras! Tenho a certeza de que sabes muito bem o que é um ministro. Porém, se estiveres disposto a fazer uma viagem ao passado, que grande surpresa não terás! Duvidas? Estás curioso? Queres saber de que surpresa se trata? Então, anda daí. Vá, confia em mim. Entra já, sem demora, nesta fantástica máquina do tempo! Está programada para te levar até à Roma antiga, a época em que tiveram origem muitas coisas que hoje usamos. Não tenhas medo. Eu, o génio da Língua Portuguesa, daqui do século xxi em que me encontro, manter-me-ei sempre em contacto contigo. Um, dois, tr… Não, espera! Não partas ainda. Leva contigo esta mágica folhinha de papel. Guarda-a bem. Não a percas. O que é?! Pois é um bocadinho de um desses livros que nos revelam os segredos das línguas que falamos: um dicionário.

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Guardaste-a bem? Agora, vai!

     Depois de todas as voltas e cambalhotas em que vais às arrecuas pelos séculos fora, balatrum, balatrum, balatrum, balatrum, quando parares em Roma, no século i a. C., vais ver que, para além das tonturas de tanta reviravolta, alguma coisa mais terá acontecido. O quê? Enquanto transpões a barreira do tempo, o significado da palavra ministro, que levas aí escrito nesse pedaço de papel, vai apagar-se, desaparecer. O tempo roubará o que o tempo deu. Então, entre todas as perguntas que decerto irás fazer a ti mesmo, perante essa realidade longínqua e tão diferente da tua, haverá uma a que não escaparás: — Porque será que o significado que eu trazia do século xxi já não serve? Qual terá sido o sentido da palavra MINISTRO nesta época tão antiga? Talvez te ocorra a ideia de ir ver ao dicionário… Mas, aí, nesse tempo, tal ideia de nada te valerá, porque… porque ainda não há dicionários como os que viemos a conhecer mais tarde. Que fazer? Ora, sair da cápsula em que viajaste e explorar esse mundo dos antigos Romanos, que tão modernos foram na sua vez. E é isso mesmo que já estás a fazer. Já te vejo a caminho do bulício dessa cidade inigualável.Andas pelas ruas, pelas praças, olhas as fachadas, as togas e as túnicas das pessoas apressadas, tão apressadas que nem parecem dar por ti, escondido atrás de uma coluna… Não sabes bem onde estás? Não sabes, mas eu sopro-te ao ouvido:

— Essa, atrás da qual te escondes, é uma coluna do templo de Júpiter Capitolino.

— Ah! — dizes baixinho.

E vais pensando: — Os livros e os filmes não me enganaram. É tudo mesmo muito parecido com o que eu li e vi no cinema e na televisão. E estranhas a língua em que as pessoas falam: — Que esquisita! Uma ou outra palavra, porém, parece-te familiar. Parecida com o português? Pois claro! E recordas que aprendeste que o português descende da língua dos Romanos, o latim! Ah! É isso: os filhos normalmente são parecidos com os pais. Enquanto assim pensas e te espantas com a multidão que se agita nas ruas de Roma, uma voz mais alta salta-te aos ouvidos chamando insistentemente: — Salve, Marce Tuli! Marce Tuli! Cicero!

É alguém que se aproxima de um homem magro, pensativo, de cara carrancuda, que acaba de sair da Cúria, onde esteve reunido com o Senado, e atravessa o Forum de Augusto. E outra vez: — Salve, Cicero!

— Marco Túlio Cícero?! Cícero?! Será mesmo o famoso escritor de que nunca ouviste falar? — exclama a minha voz espantada que, em surdina, chega até aos teus ouvidos. Mesmo sem o conheceres, pelo sim pelo não, quando termina a rápida conversa entre os dois romanos e Cícero se instala na sua liteira, resolves segui-lo. A tua intuição de detective nunca falha. Ofegante, mas sem dares nas vistas, como qualquer detective experiente que se preze, lá consegues ir acompanhando o passo acelerado dos escravos que carregam Cícero em direcção à sua casa no Monte Palatino. Uma vez aí chegados, arranjas maneira de ludibriar o porteiro e entras também. Os teus olhos atentos e curiosos, admiram as novidades de uma casa romana, com o seu vestíbulo, o seu átrio, o seu jardim interior, os seus tanques, os seus pórticos, os seus mosaicos… De momento perdeste Cícero de vista, mas eis que, de novo, através de uma janela, o vês já instalado dentro de casa. Escondido atrás de uma sebe bem tratada, assistes, fascinado, à conversa do escritor com o seu querido escravo Tiro, que o acompanha na arte da escrita. Cícero vai escrever. Irás vê-lo a escrever. Que coisa fantástica para contares de volta ao século xxi: — Eu vi-o a escrever o… Oh! Mas não sabes o título do que escreve. Aliás, não sabes nenhum título de nenhuma das suas obras. Que pena! Mas eu digo-te: Cícero está a escrever um livro chamado Dos Deveres que foi muito famoso, mas agora anda muito esquecido. Escreve persistente e concentradamente e, de repente… de repente pára. Suspira, demora-se a olhar as fontes do seu belo jardim, pega no rolo de papiro e lê alto com a sua boa voz de orador treinado:

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 Nada percebes desta bela tirada, senão que a coisa tem a ver com um ministro. — Ministro!? E não se trata de uma coincidência. Eu, é que, quando te preparei esta viagem, cuidei bem de todos os pormenores. — Ministro?! Olá! O teu faro de detective põe-se imediatamente em alerta: — Que se passará com os ministros aqui, na Roma Antiga, para que o Cícero fale deles com uma voz tão inflamada? E é precisamente quando estás a debater-te com a tua insaciável curiosidade que começas a sentir uma coisa estranhíssima: o pedacinho de papel, que te dei à partida e tu guardaste no bolso, está a mexer-se sozinho. Não pára de estremecer. Como um ovo quando está quase a partir-se para que nasça um passarinho. Tira-lo do bolso. Mas não… não é um passarinho a nascer! São letras! Magicamente, no espaço que, durante a viagem, tinha ficado em branco, estão agora novas palavras, as palavras de Cícero, que tu tentas ler. Primeiro, lês mal e sem nada perceberes do que lá está escrito em latim. Mas, logo a seguir, os meus poderes de Génio da Língua mudam o texto para português:

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 Espantas-te: — O quê?! Com a tua prática de decifrador de códigos secretos, mesmo sem saber latim, tu percebes que, na passagem para português, em vez de ministrum, ficou escrito escravo. E continuas a espantar-te: — O quê?! Os ministros, no tempo dos Romanos, eram pessoas de classe inferior, escravos?! Mas que grande bronca! Eu tinha avisado que a surpresa iria ser grande. Aposto que nenhum dos teus amigos sabe disto! Estás tão contente com a posse deste segredo, que nem pensas em mais nada. De repente, tudo o resto deixa de ter interesse. Depois de rapidamente fazeres regressar a folha mágica ao seu lugar no bolso, ainda lanças um último olhar a Cícero e, discretamente, encaminhas-te para o local onde deixaste a cápsula do tempo escondida no meio de uns arbustos. Verificas se está tudo em ordem. Entras e, num instante, lá estás tu de novo às cambalhotas, agora em sentido contrário: tralabum, tralabum, tralabum, tralabum … Zás, já está! Cá estás tu outra vez. Portugal, século xxi! E cheio de entusiasmo com a grande descoberta que trazes no bolso! De facto, o teu entusiasmo é grande, mas… não dura muito tempo. Depois de sacudires o corpo para repores o equilíbrio, a tua mão procura rapidamente a folhinha mágica e… Deve ter sido por causa da trepidação da máquina que não deste conta, mas certamente que, durante o regresso, o papel deve ter estremecido de novo, porque… olhas, olhas, e nada… — Onde estão aquelas latinices que o Cícero escreveu lá no século i a. C. e a sua tradução para português? Para teu espanto, o que de novo vês escrito no papel é o significado do teu dicionário de rapaz do século xxi. Bah! Perdida a prova, ninguém acreditará em ti! Missão falhada! Que desgosto! — Alto aí, que tu não és rapaz para desanimar! — Bem o sabemos. Por enquanto, ainda estás um pouco azoado, tomado pela lembrança da aventura extraordinária que viveste. Vês-te, ainda, lá em casa de Cícero, ouvindo-o a ler alto o que acabara de escrever. Tens bom ouvido. E boa memória. E é, então, que um pedacinho de frase, como um verso de cantiga, te vem à cabeça e, depois, à boca: … sed ministrum et praebitorem Repetes para fixares: … sed ministrum et praebitorem Alô! É uma pista! Que fazer com ela? Que fazer com ela, se na tua terra já quase ninguém sabe latim? Que desespero! Um bom detective nunca desespera. De repente, tens uma ideia. Ou antes, és atacado por uma pergunta: — Ainda haverá dicionários de latim? Resolves guardar a pergunta para a mesa do pequeno-almoço. Decisão acertada! Enquanto bebes o leite e comes o pão, vais perguntando pela existência de dicionários de latim e pondo as tuas dúvidas sobre a estranha mudança de significado da palavra ministro. E é o teu pai quem acaba por te elucidar muito, mas muito mais do que poderias imaginar. Às vezes, nem calculamos que coisas os pais são capazes de saber. Pois não é que o teu pai, palavra-puxa-palavra, desatou a falar, a falar, e nunca mais se calava. Até deixou arrefecer o café!

— Ah! Não sabias? Pois claro que não sabias…

Estava tão entusiasmado a explicar, que nem se lembrou de se espantar com o estranho caso de te ouvir a citar Cícero. Cícero!!!! E explicou, explicou que…

— Na origem, a palavra ministro estava relacionada com minus que era menos em latim. E, por isso, ficava bem aos que, naquela sociedade, tinham menos importância: os escravos.

E até acrescentou que…

— Ao contrário de ministro, mestre vinha de uma palavra relacionada com mais, que em latim era magis. Em latim o mestre era o magister.

E terminou, dizendo:

— As palavras dão muitas voltas, meu menino. No século xiv, a palavra ministro ainda significava, em português, servidor, mas aplicava-se a quem servia os deuses, o sacerdote. Ora, como, nesse tempo, os sacerdotes eram poderosos, foi aí que se deu a mudança: hoje, o ministro é o que tem poder de decisão! De escravo a senhor, já viste?!  

Tu, enquanto ouves a confirmação da tua secreta descoberta, vais pensando: — É sempre assim. Fico sempre espantado com as coisas que, afinal, os mais velhos já sabiam. E ainda pensas mais: — Tanta cambalhota dentro da cápsula do tempo e, afinal, a resposta estava mesmo aqui ao lado! Mas não estás nada arrependido, pois não? Foi tão giro, tão giro, andar lá por Roma, entrar na casa do Cícero…

— Ó rapaz, tu estás a ouvir-me ou não?

— ‘Tou, ‘tou.

O teu pai é professor. Gosta muito de explicar e de que o ouçam atentamente. Mas tu… continuas muito desiludido por causa da prova se ter evaporado ao atravessar a barreira do tempo… Talvez… talvez… Talvez que naquele livro mágico que tantas curiosidades já te satisfez… O dicionário!

— Ó pai, há algum dicionário em que venha isso que estás a dizer?

— Claro!

— Claro? — E lá estás tu, de novo, a remoer contigo mesmo como a vida é fácil para os adultos, que parecem já saber tudo…

— Deixas-me ver um?

— Ah, queres ver, não acreditas…

— Acredito, acredito, mas…

— Se não acreditas… Olha, agora não tenho tempo, que já estou atrasado, mas logo vou-te mostrar.

Boa! Está feito! Já envolveste o teu pai na tua investigação. É que tu, esse dicionário esquisito que explica a história das palavras (o teu pai chamou-lhe qualquer coisa terminada em mológico), tu não sabes… ainda não sabes consultar. O dia lá foi passando com alguma ansiedade à mistura. E, ao fim da tarde, depois do teu pai chegar…

— Ora, cá está um dicionário etimológico…

(Ah, é isso mesmo!)

… que explica de onde vêm as palavras e como se vão elas transformando.

Abriu-o. Leu. Explicou. E tu fixaste com força o número da página em que vinha a palavra MINISTRO e o lugar na estante onde ficava o dicionário. Um detective tem de ter boa memória. Guardar na mente os dados necessários às suas investigações. Daqui para a frente tudo foi fácil. Não demorou muito para que tu tivesses copiado do Dicionário a prova de que MINISTRO já foi escravo. Até custa a crer! É esse o melhor sabor da tua descoberta: o espanto dos teus amigos. E, quando eles se recusam a acreditar, é só meter a mão ao bolso e:

— Queres ver a prova?

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por Maria Almira Soares às 15:52

Terça-feira, 13.01.15

O CANDIDATO

O DETECTIVE DAS PALAVRAS

O CANDIDATO

     Às vezes, acontece-me ir ao dicionário à procura de uma palavra nova, suficientemente estranha para que pouca gente a conheça. Para quê?! Para que quero eu palavras esquisitas? Ora, para surpreender os meus amigos. Como daquela vez em que o Carlos não parava de andar aos gritos e eu disse:

— Hoje estás mesmo estridente.

— Estri… quê?!

— … dente.

— Dente?! Qual dente?

Como vêem, um diálogo delicioso que ia acabando mal. Mas não:

— Estridentes, pá, são esses gritos que não paras de dar. Tão altos e agudos que quase nos furam os ouvidos.

Gosto de surpreender os outros com palavras novas, mas desta vez quem ficou surpreendido fui eu. E nem precisei de andar à procura de palavra nenhuma. Ela é que veio ter comigo.

Foi assim.

Ia começar a aula de História e todos estávamos à espera de irmos continuar a descobrir como eram as coisas no tempo dos Romanos. Mas não. Logo no início, a professora começou a falar-nos da necessidade de escolhermos entre nós um representante da turma. Explicou-nos o que era, para que servia, respondeu às nossas perguntas sobre as nossas dúvidas e concluiu dizendo:

— Agora, cada um de vós vai pensar bem, em silêncio, e, depois de ter pensado bem, vai escrever num papelinho o nome do colega que acha mais capaz de ser representante da turma. Cada um dos três mais indicados será candidato.

Não sei se foi por ser a última palavra que a professora disse antes de ficarmos em silêncio; se foi pelo próprio som da palavra; se pela força com que ela a disse, sílaba a sílaba: CAN-DI-DA-TO. O que eu sei é que esta palavra que nunca antes tinha ouvido ou de que, pelo menos, não me lembrava, me ficou a ressoar nos ouvidos de tal modo que quase não conseguia pensar em que amigo meu iria escolher para ser candidato.

O resto da aula correu bem. Os nomes indicados por nós foram escritos no quadro e, à sua frente, ia sendo acrescentado um risquinho por cada vez que ele aparecia num dos papelinhos que a professora ia desdobrando em cima da secretária. No fim, fez-se a contagem e, sobre o resultado, só vos digo que…

… que a primeira frase que soltei, ao chegar a casa, enquanto dava um beijo apressado na cara da minha mãe, foi:

— Sou candidato!

A minha mãe primeiro riu-se e, depois, quis saber que história era aquela. Eu lá lhe contei e, durante o resto do dia, de vez em quando, desatava a gritar aos quatro ventos: — Sou candidato! — Sou candidato! Tanto disse e redisse esta palavra que, à noite, tive um sonho estranhíssimo.

Sonhei que estava em pé à frente de muita gente que, com ar de poucos amigos, gritava: — Candidato! Candidato! E eu, cheio de medo, começava a recuar, a recuar até que lhes voltava as costas e desatava a fugir. Corria a toda a velocidade e, de repente, tropeçava e começava a cair, a cair como se tivesse deixado de haver chão. Eu caía, caía e, ao meu lado, ia caindo também, sílaba a sílaba, a palavra CANDIDATO: caía e badalava estridentemente aos meus ouvidos o seu próprio som. E eu lá ia, mais fundo, cada vez mais fundo, até que parei. Parei, mas… afinal eu já nem parecia eu: cada sílaba que andava a badalar à minha volta era, agora, uma bola de algodão em rama muito branquinha. E eu mais parecia uma nuvem a pairar no azul do céu. Não durou muito. Logo a seguir, o algodão em rama, como se estivesse a ser fiado e tecido, começou a transformar-se em pano e eu a ficar todo vestido com um manto branco, que até parecia que vinha de uma época antiga.

Estava nisto, quando voltei a ouvir: — Candidato! Candidato!

Era a minha mãe a acordar-me, brincando com a minha maluqueira de ontem: — Acorda, candidato!

— Os meus sonhos são sempre coisas malucas. Mais vale nem pensar mais no assunto.

Isto decidi eu, cansado de andar aos trambolhões toda a noite.

 

A palavra candidato, porém, deve ser muito teimosa. Saiu pela porta dos sonhos, mas voltou a entrar pela janela das conversas.

Foi assim.

O meu pai não é lá grande apreciador de livros que o façam rir às gargalhadas. Isto penso eu que, geralmente, o vejo sempre muito sério quando está a ler. Mas acontece que, ontem, a seguir ao jantar, pegou num livrinho e…

Folheava, lia, ria. Ria, folheava, lia.

Espreitei como pude e vi que o livro se chamava: «O meu nome incomoda-me!» Quando a minha mãe entrou na sala perguntou-lhe logo que livro era aquele e ele:

— Nem imaginas como é engraçado! Queres ouvir uma passagem?

E começou a ler em voz alta:

«A Dona Aparecida andava desaparecida. Há algum tempo que ninguém a via ali pelo bairro. Então os vizinhos começaram logo todos a coscuvilhar sobre o assunto. Para onde teria ido a Dona Aparecida? A Aurora, que era muito noctívaga, disse logo que a tinha visto sair de noite e apanhar um táxi e que, se calhar, ia para férias. Mas a Vera que, por ser muito mentirosa, não acreditava em ninguém, disse logo: — Não acredito. Passado algum tempo, começaram a temer que tivesse acontecido algum mal à Dona Aparecida, que estava desaparecida, e o Clemente, que era incapaz de perdoar fosse lá o que fosse, disse logo: — Se apanho quem lhe fez mal, vai ver como elas lhe doem. E resolveu ir pedir ao Valentim que o ajudasse a descobrir onde parava a Dona Aparecida. Só que o Valentim, cheio de medo de se meter em sarilhos, inventou uma desculpa qualquer e o assunto continuou por resolver.

— Talvez tenha ido visitar o primo. — Disse o senhor Cândido, um velhinho que andava sempre vestido de preto.

— Qual primo?

— O Celso, aquele que é muito baixinho.

— Talvez. — Disse timidamente a D. Vitória, que saía sempre derrotada das discussões com os amigos.

Afinal, foi a Constância, que andava sempre a mudar de um lado para o outro, que trouxe a solução:

— Sabem para onde foi a Dona Aparecida? Para casa do Urbano, aquele seu grande amigo que vive numa aldeia pequenina lá para o Norte.»

Bem, o meu pai ria-se tanto que nem conseguiu ler tudo seguido. E a minha mãe também. Riam-se os dois e eu sem perceber nada. Só aquilo da Aparecida desaparecida é que me parecia ter alguma graça. Mas não era razão para tanto riso. De repente, devem ter-se lembrado de que eu também existia e estava ali. Fitaram-me os dois ao mesmo tempo e o meu pai disse:

— Não estás a perceber nada, pois não?

Eu, sentindo a minha honra de Detective das Palavras a ser atingida, ainda disse hum, mas ele continuou:

— Aparecida/desaparecida

Aurora/noctívaga (que sai à noite)

Celso/muito baixinho

Clemente/que não perdoa

Valentim/cobarde

Vera/mentirosa

Vitória/sempre derrotada

Cândido/sempre vestido de preto

Constância/que nunca parava

Urbano/ que vive numa aldeia pequenina

— Estás a ver?

Eu realmente começava a ver qualquer coisa, a ver que as pessoas eram o contrário dos nomes e os nomes o contrário das pessoas, mas voltei a responder:

— Hum…

E o meu pai continuou:

— E, agora, vou explicar-te mais uma coisa: os nomes das pessoas têm um significado ligado à sua origem.

— Eu sei. Até há livros sobre isso. Noutro dia, na escola, andámos a fazer um trabalho sobre a origem dos nossos nomes.

— Então, se sabes, ouve lá:

Uma Aurora (nascer do dia) a preferir sair à noite?

O Celso (que significa alto) muito baixinho?

Um Clemente (que desculpa tudo) a não perdoar nada?

Estás a ver? Por aqui, já vês o resto.

Eu já me ria. Já estava a achar graça àquela brincadeira com as palavras.

— E a Vera?

— Vê lá se descobres.

— Verdadeira?

— Isso mesmo.

— E o Urbano? O Urbano não sei.

— Então, urbano é o que é da cidade.

— Ah, ah, ah!

— E o Cândido? O que é que tem o Cândido com andar sempre vestido de preto?

Pois foi neste ponto da conversa, em que o meu pai respirou fundo e estava a começar a responder-me, que a tal palavrinha teimosa, que se tinha ido embora pela porta dos sonhos, voltou a entrar.

Se eu não fosse o Detective das Palavras, talvez não tivesse sido assim, mas, para um verdadeiro detective, nenhuma coincidência se fica por ser uma simples coincidência. Há que investigar, há que querer saber.

Estava o meu pai a responder-me:

— Cândido, cândido… O significado de cândido tem a ver com uma cor… Vê lá se adivinhas…

E eu, pensando que o senhor Cândido se vestia de preto e que todos tinham nomes ao contrário do que eram, respondi logo a seguir:

— Branco!

— Bingo! Daí a graça de um Cândido vestido de preto…

E foi precisamente nesta altura que eu me lembrei do candidato.

— E um candidato? É parecido com cândido, não é? Um candidato também é branco?

— Ri-te, ri-te… Se calhar, tens mais razão do que imaginas…

— Ups!

— Tu sabes porque é que se chama candidato a quem está na situação de se apresentar ou ser indicado para um cargo, como tu estás, para seres representante da tua turma?

— Porque é que se chama candidato?! Ora, chama-se candidato, porque é candidato.

— Mas podia ter outro nome… dizer-se com outra palavra.

— Pois podia.

— Então, ouve lá: no tempo dos Romanos, quem era candidato tinha de se apresentar vestido com uma toga branca. Estás a ver agora?

— Ups! Já estou a ver qualquer coisa: cândido é branco e candidato é vestido de branco.

— Era. Agora já ninguém liga a isso.

— Até é mais vulgar aparecerem de fato escuro. As voltas que as palavras dão! — acrescentou a minha mãe sorrindo.

E quando ela falou em palavras às voltas é que eu me lembrei daquele sonho maluco, em que as sílabas e eu próprio tínhamos andado a rebolar pelo ar. E, olha a coincidência, no sonho também era tudo branco. Não sei quem é que inventa os sonhos, mas quem inventou aquele devia conhecer a origem da palavra candidato.

Depois de acabada a conversa, já no meu quarto, eu deixara de estar interessado em palavras. Agora, só pensava era na eleição do dia seguinte. Porque era no dia seguinte que a minha turma ia votar para escolher o seu representante. Pois nem imaginam o que me estava a passar pela cabeça! Imaginam? Não sei, mas era isto:

— Amanhã, vou vestido de branco. Sou candidato, não sou? Então, amanhã, vou vestido de branco.

E fui.

Com uma T-shirt e uns calções brancos. Até os ténis eram brancos. Os meus amigos olhavam para mim com algum espanto, mas ninguém perguntou porquê. Eu também não disse nada. Achava divertido ser só eu a saber e, ao mesmo tempo, tinha um bocadinho de vergonha de lhes contar porque estava todo vestido de branco. O problema é que, afinal, não era só eu que sabia. A professora de História, quando mandou levantar os três alunos que tinham sido indicados e me viu assim todo vestido de branco, disse logo:

— Ora aqui está um verdadeiro candidato!

— Porquê? — Perguntaram em coro, sem estarem a perceber nada.

— Vamos lá ter um bocadinho de paciência. Primeiro vamos fazer a votação e, depois, vamos todos à biblioteca. Lá encontrarão a resposta.

E assim foi.

Na biblioteca, a professora esteve a pesquisar numa enciclopédia na internet e quando encontrou o que queria virou o ecrã do computador para nós e começou a ler em voz alta o que lá estava escrito:

Untitled1.png

   Toda a minha turma ficou a saber que o primeiro significado que a palavra candidato teve foi: vestido com uma toga branca, a toga candida.

Ah, mas ainda ficou a saber outra coisa: que não é por vir vestido a preceito que um candidato ganha uma eleição, pois quem, nesse dia, foi eleito representante da nossa turma não fui eu. Foi o Carlos que, por acaso, até levava uma camisola azul.

É como diz a minha avó: o hábito não faz o monge!

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por Maria Almira Soares às 11:39


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