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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Terça-feira, 13.01.15

O CANDIDATO

O DETECTIVE DAS PALAVRAS

O CANDIDATO

     Às vezes, acontece-me ir ao dicionário à procura de uma palavra nova, suficientemente estranha para que pouca gente a conheça. Para quê?! Para que quero eu palavras esquisitas? Ora, para surpreender os meus amigos. Como daquela vez em que o Carlos não parava de andar aos gritos e eu disse:

— Hoje estás mesmo estridente.

— Estri… quê?!

— … dente.

— Dente?! Qual dente?

Como vêem, um diálogo delicioso que ia acabando mal. Mas não:

— Estridentes, pá, são esses gritos que não paras de dar. Tão altos e agudos que quase nos furam os ouvidos.

Gosto de surpreender os outros com palavras novas, mas desta vez quem ficou surpreendido fui eu. E nem precisei de andar à procura de palavra nenhuma. Ela é que veio ter comigo.

Foi assim.

Ia começar a aula de História e todos estávamos à espera de irmos continuar a descobrir como eram as coisas no tempo dos Romanos. Mas não. Logo no início, a professora começou a falar-nos da necessidade de escolhermos entre nós um representante da turma. Explicou-nos o que era, para que servia, respondeu às nossas perguntas sobre as nossas dúvidas e concluiu dizendo:

— Agora, cada um de vós vai pensar bem, em silêncio, e, depois de ter pensado bem, vai escrever num papelinho o nome do colega que acha mais capaz de ser representante da turma. Cada um dos três mais indicados será candidato.

Não sei se foi por ser a última palavra que a professora disse antes de ficarmos em silêncio; se foi pelo próprio som da palavra; se pela força com que ela a disse, sílaba a sílaba: CAN-DI-DA-TO. O que eu sei é que esta palavra que nunca antes tinha ouvido ou de que, pelo menos, não me lembrava, me ficou a ressoar nos ouvidos de tal modo que quase não conseguia pensar em que amigo meu iria escolher para ser candidato.

O resto da aula correu bem. Os nomes indicados por nós foram escritos no quadro e, à sua frente, ia sendo acrescentado um risquinho por cada vez que ele aparecia num dos papelinhos que a professora ia desdobrando em cima da secretária. No fim, fez-se a contagem e, sobre o resultado, só vos digo que…

… que a primeira frase que soltei, ao chegar a casa, enquanto dava um beijo apressado na cara da minha mãe, foi:

— Sou candidato!

A minha mãe primeiro riu-se e, depois, quis saber que história era aquela. Eu lá lhe contei e, durante o resto do dia, de vez em quando, desatava a gritar aos quatro ventos: — Sou candidato! — Sou candidato! Tanto disse e redisse esta palavra que, à noite, tive um sonho estranhíssimo.

Sonhei que estava em pé à frente de muita gente que, com ar de poucos amigos, gritava: — Candidato! Candidato! E eu, cheio de medo, começava a recuar, a recuar até que lhes voltava as costas e desatava a fugir. Corria a toda a velocidade e, de repente, tropeçava e começava a cair, a cair como se tivesse deixado de haver chão. Eu caía, caía e, ao meu lado, ia caindo também, sílaba a sílaba, a palavra CANDIDATO: caía e badalava estridentemente aos meus ouvidos o seu próprio som. E eu lá ia, mais fundo, cada vez mais fundo, até que parei. Parei, mas… afinal eu já nem parecia eu: cada sílaba que andava a badalar à minha volta era, agora, uma bola de algodão em rama muito branquinha. E eu mais parecia uma nuvem a pairar no azul do céu. Não durou muito. Logo a seguir, o algodão em rama, como se estivesse a ser fiado e tecido, começou a transformar-se em pano e eu a ficar todo vestido com um manto branco, que até parecia que vinha de uma época antiga.

Estava nisto, quando voltei a ouvir: — Candidato! Candidato!

Era a minha mãe a acordar-me, brincando com a minha maluqueira de ontem: — Acorda, candidato!

— Os meus sonhos são sempre coisas malucas. Mais vale nem pensar mais no assunto.

Isto decidi eu, cansado de andar aos trambolhões toda a noite.

 

A palavra candidato, porém, deve ser muito teimosa. Saiu pela porta dos sonhos, mas voltou a entrar pela janela das conversas.

Foi assim.

O meu pai não é lá grande apreciador de livros que o façam rir às gargalhadas. Isto penso eu que, geralmente, o vejo sempre muito sério quando está a ler. Mas acontece que, ontem, a seguir ao jantar, pegou num livrinho e…

Folheava, lia, ria. Ria, folheava, lia.

Espreitei como pude e vi que o livro se chamava: «O meu nome incomoda-me!» Quando a minha mãe entrou na sala perguntou-lhe logo que livro era aquele e ele:

— Nem imaginas como é engraçado! Queres ouvir uma passagem?

E começou a ler em voz alta:

«A Dona Aparecida andava desaparecida. Há algum tempo que ninguém a via ali pelo bairro. Então os vizinhos começaram logo todos a coscuvilhar sobre o assunto. Para onde teria ido a Dona Aparecida? A Aurora, que era muito noctívaga, disse logo que a tinha visto sair de noite e apanhar um táxi e que, se calhar, ia para férias. Mas a Vera que, por ser muito mentirosa, não acreditava em ninguém, disse logo: — Não acredito. Passado algum tempo, começaram a temer que tivesse acontecido algum mal à Dona Aparecida, que estava desaparecida, e o Clemente, que era incapaz de perdoar fosse lá o que fosse, disse logo: — Se apanho quem lhe fez mal, vai ver como elas lhe doem. E resolveu ir pedir ao Valentim que o ajudasse a descobrir onde parava a Dona Aparecida. Só que o Valentim, cheio de medo de se meter em sarilhos, inventou uma desculpa qualquer e o assunto continuou por resolver.

— Talvez tenha ido visitar o primo. — Disse o senhor Cândido, um velhinho que andava sempre vestido de preto.

— Qual primo?

— O Celso, aquele que é muito baixinho.

— Talvez. — Disse timidamente a D. Vitória, que saía sempre derrotada das discussões com os amigos.

Afinal, foi a Constância, que andava sempre a mudar de um lado para o outro, que trouxe a solução:

— Sabem para onde foi a Dona Aparecida? Para casa do Urbano, aquele seu grande amigo que vive numa aldeia pequenina lá para o Norte.»

Bem, o meu pai ria-se tanto que nem conseguiu ler tudo seguido. E a minha mãe também. Riam-se os dois e eu sem perceber nada. Só aquilo da Aparecida desaparecida é que me parecia ter alguma graça. Mas não era razão para tanto riso. De repente, devem ter-se lembrado de que eu também existia e estava ali. Fitaram-me os dois ao mesmo tempo e o meu pai disse:

— Não estás a perceber nada, pois não?

Eu, sentindo a minha honra de Detective das Palavras a ser atingida, ainda disse hum, mas ele continuou:

— Aparecida/desaparecida

Aurora/noctívaga (que sai à noite)

Celso/muito baixinho

Clemente/que não perdoa

Valentim/cobarde

Vera/mentirosa

Vitória/sempre derrotada

Cândido/sempre vestido de preto

Constância/que nunca parava

Urbano/ que vive numa aldeia pequenina

— Estás a ver?

Eu realmente começava a ver qualquer coisa, a ver que as pessoas eram o contrário dos nomes e os nomes o contrário das pessoas, mas voltei a responder:

— Hum…

E o meu pai continuou:

— E, agora, vou explicar-te mais uma coisa: os nomes das pessoas têm um significado ligado à sua origem.

— Eu sei. Até há livros sobre isso. Noutro dia, na escola, andámos a fazer um trabalho sobre a origem dos nossos nomes.

— Então, se sabes, ouve lá:

Uma Aurora (nascer do dia) a preferir sair à noite?

O Celso (que significa alto) muito baixinho?

Um Clemente (que desculpa tudo) a não perdoar nada?

Estás a ver? Por aqui, já vês o resto.

Eu já me ria. Já estava a achar graça àquela brincadeira com as palavras.

— E a Vera?

— Vê lá se descobres.

— Verdadeira?

— Isso mesmo.

— E o Urbano? O Urbano não sei.

— Então, urbano é o que é da cidade.

— Ah, ah, ah!

— E o Cândido? O que é que tem o Cândido com andar sempre vestido de preto?

Pois foi neste ponto da conversa, em que o meu pai respirou fundo e estava a começar a responder-me, que a tal palavrinha teimosa, que se tinha ido embora pela porta dos sonhos, voltou a entrar.

Se eu não fosse o Detective das Palavras, talvez não tivesse sido assim, mas, para um verdadeiro detective, nenhuma coincidência se fica por ser uma simples coincidência. Há que investigar, há que querer saber.

Estava o meu pai a responder-me:

— Cândido, cândido… O significado de cândido tem a ver com uma cor… Vê lá se adivinhas…

E eu, pensando que o senhor Cândido se vestia de preto e que todos tinham nomes ao contrário do que eram, respondi logo a seguir:

— Branco!

— Bingo! Daí a graça de um Cândido vestido de preto…

E foi precisamente nesta altura que eu me lembrei do candidato.

— E um candidato? É parecido com cândido, não é? Um candidato também é branco?

— Ri-te, ri-te… Se calhar, tens mais razão do que imaginas…

— Ups!

— Tu sabes porque é que se chama candidato a quem está na situação de se apresentar ou ser indicado para um cargo, como tu estás, para seres representante da tua turma?

— Porque é que se chama candidato?! Ora, chama-se candidato, porque é candidato.

— Mas podia ter outro nome… dizer-se com outra palavra.

— Pois podia.

— Então, ouve lá: no tempo dos Romanos, quem era candidato tinha de se apresentar vestido com uma toga branca. Estás a ver agora?

— Ups! Já estou a ver qualquer coisa: cândido é branco e candidato é vestido de branco.

— Era. Agora já ninguém liga a isso.

— Até é mais vulgar aparecerem de fato escuro. As voltas que as palavras dão! — acrescentou a minha mãe sorrindo.

E quando ela falou em palavras às voltas é que eu me lembrei daquele sonho maluco, em que as sílabas e eu próprio tínhamos andado a rebolar pelo ar. E, olha a coincidência, no sonho também era tudo branco. Não sei quem é que inventa os sonhos, mas quem inventou aquele devia conhecer a origem da palavra candidato.

Depois de acabada a conversa, já no meu quarto, eu deixara de estar interessado em palavras. Agora, só pensava era na eleição do dia seguinte. Porque era no dia seguinte que a minha turma ia votar para escolher o seu representante. Pois nem imaginam o que me estava a passar pela cabeça! Imaginam? Não sei, mas era isto:

— Amanhã, vou vestido de branco. Sou candidato, não sou? Então, amanhã, vou vestido de branco.

E fui.

Com uma T-shirt e uns calções brancos. Até os ténis eram brancos. Os meus amigos olhavam para mim com algum espanto, mas ninguém perguntou porquê. Eu também não disse nada. Achava divertido ser só eu a saber e, ao mesmo tempo, tinha um bocadinho de vergonha de lhes contar porque estava todo vestido de branco. O problema é que, afinal, não era só eu que sabia. A professora de História, quando mandou levantar os três alunos que tinham sido indicados e me viu assim todo vestido de branco, disse logo:

— Ora aqui está um verdadeiro candidato!

— Porquê? — Perguntaram em coro, sem estarem a perceber nada.

— Vamos lá ter um bocadinho de paciência. Primeiro vamos fazer a votação e, depois, vamos todos à biblioteca. Lá encontrarão a resposta.

E assim foi.

Na biblioteca, a professora esteve a pesquisar numa enciclopédia na internet e quando encontrou o que queria virou o ecrã do computador para nós e começou a ler em voz alta o que lá estava escrito:

Untitled1.png

   Toda a minha turma ficou a saber que o primeiro significado que a palavra candidato teve foi: vestido com uma toga branca, a toga candida.

Ah, mas ainda ficou a saber outra coisa: que não é por vir vestido a preceito que um candidato ganha uma eleição, pois quem, nesse dia, foi eleito representante da nossa turma não fui eu. Foi o Carlos que, por acaso, até levava uma camisola azul.

É como diz a minha avó: o hábito não faz o monge!

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por Maria Almira Soares às 11:39


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