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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Até porque não o encontrei. Ao rio. Se fosse um rio, a corrente hipnótica das suas águas arrastaria o meu olhar levado pelas linhas contínuas do seu movimento. Mas mesmo que houvesse o rio, que eu não encontrei, a sua superfície juncada de detritos, de desvairados objetos desirmanados, encobriria a luz fascinante da água que corre, desviando o meu olhar, contrariado e interrompido por insistentes estímulos, distraindo-o com mais uma cor, mais um formato, mais a dúvida de uma identificação, de uma bizarria. Mesmo que houvesse rio, o meu olhar não se afundaria. Saltitaria de um par de botas para um pingo no sapato, de uma boina para uma bola, de uma bicicleta para um jornal, um comboio, uma harpa… Distração inconsequente, dispersão abrangente, destrutiva do mistério, do rio negro e subterrâneo, do náufrago da dor e da doença, talvez da morte, do fim no grande mar. Alimentar-me-ia a distração de passeante de margens que augura a feliz surpresa da descoberta de mais um objeto, estranho ou familiar, boiando, coisa leve, ocultadora do volume denso e negro das águas da dor. E eu, guarda-margens, poderia entreter-me com o jogo de associações, repetições, sobreposições, encaixes e, em vez de seguir um rio, entraria num bazar, numa loja de quinquilharias, espicaçada — e, às tantas, cansada — por trânsitos de compra e venda que igualizam ao sofrimento o desejo de um par de botas. Não fluiria, giraria. Nada me impulsionaria ou me arrastaria. Giraria, eixo de um carrossel habilmente manipulado para exibir as girândolas preferidas do manipulador.
Mas não.
Se não é filosófico, se não é corrente — de pensamento e de sofrimento — não é rio, não é camoniano, não é sálmico.
É uma arte privada de quem possui as figuras para as ir distribuindo na paisagem. Um diaporama de instantâneos risonhos, mesmo quando profundamente tristes. Pessoas e objetos pontuam e repetem. As palavras não são pedras a cortar a água e a levantar ondas. Não são barcos carregados de mistério. São cartões de um jogo demasiado pessoal para ser LEITURA. Não é rio. Talvez comboio. Talvez a paisagem fractada. A acelerada sequência quebrada de imagens, vista de um comboio em andamento. E, na paragem final, uma espécie de encolher de bicho articulado que, por inércia, entrechoca e chocalha tudo o que foi sendo lançado borda fora. E todos saem. Todos, objetos, porque, vítimas de sinédoques constantes, as pessoas são objetos. Não há transporte do sentido para a dimensão do imaginário revelador. Há a atribuição aos objetos de um poder imanente que vulgariza, como se, por si mesmo, um pingo fosse… um poço fosse…. uma metáfora. A metáfora é uma palavra preguiçosa, que não quer abrir o seu cerne, mas florir efemeramente tocada por uma luz ocasional. Se as palavras perdem o seu poder de avanço exploratório, revelador, ficam fixas como estampas num álbum da infância. Submetem-se à sobreposição habilidosa de jogos de transparências. Uma instalação: na loja de quinquilharias, pendem, do teto, das paredes, objetos, vidas, pessoas, lugares, algumas falas, alguns gestos; um bazar, em que, espalhadas pelo chão, vão ficando coisas. Uma instalação dividida por um pano de cena entre o hospital e a memória. E de que serve tudo isto? Está ao serviço de quê? De quem? Tudo serve a PERSONAGEM. O centro, a referência. Mãe, tio, mulher, barbeiro, guarda-linha, professora, criada, avó, avô, pai, amigas da mãe, bicicleta, botas… E para? Para o ajuste das contas. Das contas do mal julgado, do mal amado, do mal enganado. As contas da ausência. E as do medo de ficar ausente donde se esteve sempre ausente. As contas da queixa de si e não da construção de um mundo. Não hipotético testamento, dádiva, mas recolha, inventário dos trastes. Refluir. Não fluir. Refluxo sentenciador.
Não há viagem para. Há refluxo a um buraco negro. Contrário polar do rio.
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