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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Terça-feira, 16.06.15

SEM GRANDEZA NÃO HÁ EDUCAÇÃO

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       Há coisas difíceis de avaliar no sentido mercantil da palavra: a leitura, por exemplo. O que vale ler? Muito. Ler os grandes autores de uma literatura? Muitíssimo. Fazer os nossos jovens lerem na escola os autores máximos da literatura portuguesa? Sem preço. Haverá, desta questão, outra consciência e razões para a razão dela. Poderão, no entanto, consciência e razões serem falsas e a falsidade é uma coisa precária. Todos os que aduzem razões têm razões para isso. Mas ter a sua razão não é ainda ter razão. Melhor do que ter a sua razão é ter a verificação da experiência de que o melhor lugar onde está a língua portuguesa são os grandes textos literários. Ter a longa experiência de que se ensina/aprende com grande clareza e eficácia a língua portuguesa lendo os grandes textos literários portugueses. O resto mora noutra morada. Se não se ensina língua com os grandes textos literários, a causa não está nos textos, mas alhures. Se não se sabe ensinar língua com os textos literários deve aprender-se a fazê-lo. Saber--se-á fazê-lo com outros textos? Que uso da língua dar-se a saber? E que inibição no conhecimento da língua não plantar? O olhar que desenraiza a língua das grandes realizações humanas que com ela se fazem; que a vê, formal e abstractamente, numa pulsão de a explorar de modo entrópico; que a estuda na solidão da frase e da palavra cortada dos mundos que inevitavelmente elas constroem e do desdobramento de versões que de si mesmas fazem na comunicação literária, está apenas a assegurar-se uma coerência auto-protectora, uma defesa contra o tormento da verdade. A clareza da gramática ou se entende na riqueza da língua ou torna-se uma técnica, uma linguagem, no pior sentido. A dificuldade em integrar riqueza e clareza manifesta-se na escolha da estreiteza e da facilidade e pode levar a destruir a casa para matar a pulga. Ou nem sequer para matar a pulga. Ficar-se-á sem a casa, sem a casa do ser, enquanto se saltita muito pelos variados discursos utilitários ou até, num profundo desperdício, de uns Lusíadas como intertexto para uma Mensagem sem contexto.

       A escola tem obrigação de ensinar a Língua Portuguesa no e com o que Gil Vicente, Camões, Vieira, Cesário, Pessoa... fizeram com ela. Aprendida nestes lugares, não se tornará pólo de nenhuma antinomia, abrir-se-á à leitura e ao uso com uma grande bonomia. Orientar a leitura não é sinónimo de estreitar; é uma coisa laboriosa e difícil que se faz enquanto se lê. A escola deve alimentar, deve aumentar, deve engrandecer, e não fornecer doses de fast language, de repulsão do maravilhamento da polissemia, do desencanto de jamais encontrar, lá no meio da mágica floresta verbal da literatura, a pedra dura da gramática bem explícita. Deve levar a aprender na diferença e na estranheza e não na massificação verbal, na bata estilística do texto que serve para. Esta literacia é pouco, é muito pouco: aos iletrados sem escola, ou resultantes das inabilidades e leviandades da escola, não são devidas apenas meia dúzia de técnicas textuais ou discursivas em que a língua significa em fórmulas fechadas, prontas a funcionar.

         Este não é um debate ocioso sobre a presença ou ausência deste ou daquele autor ou ainda de um restinho daqueloutro; trata-se do modo de aprender: imediatista, tecnicista. Aprender a fazer um relatório é só aprender a fazer um relatório e imitar uma notícia de jornal nem sequer ensina a ler a notícia do jornal, porque o jornal só é bom de ler quando se lê com os nossos olhos e, sobretudo, se os nossos olhos vierem cheios de Gil Vicente e Vieira e Camões... Em educação é pelo máximo que se vai ao mínimo. Quando só se dá o mínimo, apenas se suscita o íntimo desprezo ou a nula aceitação. Sem grandeza não há grande educação.

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por Maria Almira Soares às 20:46

Domingo, 07.06.15

A FALTA ESSENCIAL

17031392_PpvVv.jpegTrata-se de um texto suficientemente misterioso para desafiar uma interpretação e suficientemente carregado de índices significativos para abrir, nessa interpretação, o seu mistério:

 

«Há em mim uma falta essencial, pecado original cometido na eternidade. Mas não o sei. Não é assim a maçã que Adão mordeu por mim, é qualquer coisa de mais profundo e ininteligível e absoluto. Qualquer coisa que me viciou a vida toda e se manifesta na culpa e na vergonha que me embaraça em todas as situações e me diminui absurdamente aos meus olhos (e aos dos outros que dão por isso) e me retira toda a satisfação do que é para satisfazer como se o não merecesse, e restringe tudo o que era de supor-se dar-me uma pequena glória ou triunfo. Há uma nódoa que dessa eternidade se distingue e vem a ser mancha em tudo que faça e brilhe. É fácil talvez determinar as razões dessa enfermidade sempre presente e aflitiva, mas são razões que não servem, porque não embaraçam os outros e os deixam livres para serem por inteiro.

         Assim aquilo mesmo que era de contentar-me e os outros julgam que seria, encurta-se-me logo no ser contentamento, porque o seu negrume o escurece e o que me fica é quase piedade por essa irrisão, esse motivo de prazer que logo o é menos, não porque eu ambicionasse mais, mas porque isso fica sendo menos do que é. Há um olhar fito da distância absoluta que me julga sem me julgar e é julgamento e acusação com só fixar em mim a sua dureza e gravidade e o brilho imóvel do seu fitar-me. Fui mandado para a vida com esse ferrete, como ave que anilhassem e fosse largada em liberdade mas com o controle que fica atrás e a segue até ser morta e ser-lhe lida a anilha. Fui largado para a vida mas ficou atrás o olhar que me segue e me faz sentir constantemente uma culpa que cometi e não consigo identificar e esclarecer. Sei só em todo o instante e em cada acto e em cada situação que cometi essa falta de que me resta o vexame sentido em cada situação e em cada acto. É por isso que nunca estou à vontade, contente comigo, é por isso que nenhum acto meu meritório eu o julgo com merecimento, mas sinto antes que ele pouco significa em face de não sei quê que me diminui e confrange e quase faz sorrir de pena de eu poder pensar que não é assim. Toda a minha vida deste modo se me realiza por metade e mesmo o que é em mim faltoso se diminui em face de uma falta maior e mais grave e incognoscível e o que é de contentar-me eu o julgo pequeno para compensar essa falta longínqua e incompreensível. Assim me causa espanto que os outros se estabeleçam à vontade no mundo que é seu e triunfem com o seu triunfo e exerçam a sua importância como se tivessem nascido sem um pecado cometido antes de nascerem. Assim os admiro sem saber ao certo se são inconscientes ou se de facto não nasceram anilhados na sua pata de gente. Há uma falta na minha origem mas é duro que uma vida inteira não baste para a remir. E concentradamente olho os meus pulsos e tornozelos para decifrar as anilhas que alguém aí me pôs e não vejo e de que jamais conseguirei desembaraçar-me.» 

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por Maria Almira Soares às 12:18

Segunda-feira, 01.06.15

A CANETA CRICRI

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Já é quase de noite, a casa começa a ficar escura. Lá para dentro, ao fundo do corredor, fica a sala de trabalho da Mãe da Catarina. À porta da sua sala de trabalho, pronta a entrar, está a Mãe e, encostada às pernas dela, pronta a entrar também, está a Catarina. A Mãe empurra a porta e, procura na parede o interruptor de abrir a luz. Click! De repente, uma onda luminosa enche a sala e a Catarina desata a rir e a bater palmas de contente. Que coisa bonita é aquela sala em que estão a entrar! Eu explico: em volta, a toda a volta, em todas as paredes, só há tirinhas de papel de cores variadas a brilhar! Entra-se ali como numa caixa mágica forrada das mais variadas cores. — O quê?!O que é isso das tirinhas de papel colorido a toda a volta?! Eu explico. Livros! São livros. Todas as paredes da sala de trabalho da Mãe estão cobertas de estantes completamente carregadinhas de livros. São tantos que as estantes quase não se veem. E mesmo dos livros, só se veem... Sabes o que se vê daqueles livros todos, em pé, uns ao lado dos outros? Tirinhas. Muitas tirinhas de papel colorido numa sucessão interminável. Acendia-se a luz e, de repente, de todos os lados saltavam fitas de cor. Para a Catarina pequenina que ainda nada ou quase nada sabia de livros, aquilo eram fitas de papel de todas as cores que saltavam a brilhar, quando, à noite, de repente se acendia a luz. Quantas vezes a Mãe e a Catarina fizeram aquela brincadeira: acende/apaga, acende/apaga. E as mil cores a saltarem na luz, a toda a volta. Linda e grande «caixa mágica» dentro da qual a Mãe trabalhava! Ora era precisamente nessa sala, em cima de uma mesa, dentro de uma caneca de vidro azul, que, depois de comprada na papelaria da D. Adelina, passou a morar a Cricri que ainda não se chamava Cricri.

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por Maria Almira Soares às 16:53


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