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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Esta normalização comercial e comerciável, social e sociável, é naturalmente desmentida pela persistência de excecionais obras literárias que, sendo exceções, por definição, são poucas. São poucas e empurradas para um canto pela força de um cerco tão tenso que torna os prováveis criadores de literatura vulneráveis à conversão da sua arte literária em coisas híbridas feitas de História, de sociologia, de apontamentos, de anotações, de memórias, de biografias romanceadas ou não, todas estas coisas centrifugadas até ao complacente rótulo de romance com que se apresentam. Chamam-lhe romance e acabam por julgá-las um romance literário.
Em qualquer mistura, o que comanda a natureza do resultado é a dominante, a ideia dominante, e a literatura está a perder o domínio da arte da escrita. Literatura é uma arte de invenção, de palavras que inventam mundos sobre o Mundo. Que interrompem o Mundo. A literatura inventa mundos. E não o faz com quaisquer palavras. Fá-lo com arte, com a arte da palavra. Coisa que parece ter-se tornado de somenos importância. Em prol do choque da novidade ou da facilitação do serviço de leitura ou da ignorância do que há na língua para lá da meia dúzia de palavras de todos os dias. Vontade de dizer em vez de impulso criativo. Dizer uma mistura de coisas que andam por aí a boiar no variadíssimo e velocíssimo alinhamento dos dias.
O tempo dos puros acabou? Tudo híbrido, todos híbridos... Ora, a literatura...
O alargamento da leitura decorre, em grande parte, em parte crescente, da contrafação da literatura e da simultânea convergência, em quantidade e qualidade, de quem escreve e de quem lê. A proporção quantitativa entre quem escreve e quem lê altera-se: o número dos que escrevem alarga o seu espaço dentro do conjunto dos que poderão ler. Os que podem ler vão paulatina e facilmente conquistando lugares no espaço dos que escrevem. Não nascem lá, vão para lá. E, sendo geneticamente os mesmos, os que leem e os que escrevem, fecha-se o espaço literário, apaga-se a distância literária, extingue-se o horizonte literário, liquida-se a literatura, a tal «dor que eles [os leitores] não têm», dizia Pessoa. Inversa e simultaneamente, nos livros, prolifera a dor, exata ou quase exata, que eles, os leitores, têm. E com isso se contentam. Viceja o contentamento da leitura, definha a arte literária. Em vez de arte, contentamento! Fácil é trocar «tão compridos anos de tormento» por «horas breves de meu contentamento». Mais ainda, se nem sequer se sentir a obrigação de agradecer a Camões. Um dia, quem sabe, todos seremos escritores... Ora, a literatura...
A arte literária, na sua pureza genética, é em si mesma coisa humanamente criada, não coisa retratada. Nasce com as palavras que a criam. Palavras que criam e não palavras que buscam e exibem. Como dizia Barthes, a literatura não olha de frente o real. Através da bela fábula de Orfeu e Eurídice, Roland Barthes lembra que, como Orfeu, a literatura traz necessariamente atrás de si o real, a sua Eurídice, recuperando-o de um mundo baço, indistinto, quase ilegível. A arte literária faz ascender o real, que antecede, da condição escura e esquecida, à luz vital e livre da arte. Que antecede. Isto é vai à frente. A literatura vai à frente. Se o real a preceder, se Eurídice preceder Orfeu, se nesse processo de ascensão que é a escrita literária, o real preceder a literatura, se esta ceder à tentação fácil de olhar o real de frente e se deixar confundir com mera fixação verbal, ipso facto, decreta e executa a morte do genuíno elo, oblíquo, ambíguo, transverso, entre realidade e arte da palavra, que é a literatura.
Afundar-se-á no seu não-ser.
Hoje, muitas das histórias que vêm nos livros fizeram-se por inversão do lema de Novalis e, em vez de testemunharem o «quanto mais poético mais verdadeiro», enganam-se e enganam-nos com a falaz suposição de que quanto mais verdadeiro mais poético. Porquê? Porque é difícil ler o verdadeiro no poético. E porque o difícil é pertença de poucos, de muito poucos. E porque se pretende que tudo seja pertença de muitos, de máximos. E porque essa pretensão exige adaptação, contrafação, ou seja, manutenção do nome, da marca, numa coisa que o não é: literatura que não é literatura. Ora, a literatura...
A ciência facultou à tecnologia uma aceleração do tempo tal, que o encontro imediato, a ansiedade do encontro imediato, o desgosto da distância e da demora, se implantaram na vida. Ora, a literatura, embora já o tenhamos esquecido e por isso a estejamos a substituir, é uma coisa demorada e distante que exige caminhada, etapas, paragens, saber ver, ouvir, cheirar, bem ao longe. Tão longe que diríamos até, invisível, só captável no momento de ler. Ler o literário é simultaneamente reconhecimento, descoberta, invenção. De outro modo, de outro diferentíssimo modo, o real tout court cada vez se mete mais pelos olhos dentro. Fácil é anotá-lo e anotá-lo pode ser, é, cada vez mais, fazer um livro. E ler esse livro, ler esses livros, em que as palavras nada mais fazem do que substituir a imagem, do que pincelar o real, é, cada vez mais, empurrar a literatura para o tal nicho, onde se põem os ícones sobretudo do que já não é vivo.
Um livro é uma coisa complacente, venal mesmo, que nada, mas mesmo nada, se importa com o que leva dentro. Livros são mesmo, mesmo só, «papéis pintados com tinta em que está indistinta a diferença entre nada e coisa nenhuma». Anotar a realidade, ou mesmo martirizar a realidade teclando-a num livro, é nada ou coisa nenhuma de literário.
Posso sonhar com Diógenes saindo com a sua lanterna à procura de um livro literário. A vetusta lanterna de Diógenes, saindo do seu pudico barril à procura de um livro literário, confusa e de luz extinta pelo farfalhar de memórias, biografias, recombinações de episódios históricos, torcicolos de ângulos episódicos do mundo relatado nos media, patologias sociais... A vetusta lanterna de Diógenes tropeçando e quebrando-se no festivo entulho das emocionais histórias vividas, requentadas segundo brilhantes receitas-gourmet enlistadas em palmarés premiados. Ora, a literatura...
Depois de uns tempos de incerteza devidos a dificuldades logísticas, vai a comunidade de leitores LERDOCELER reiniciar a sua atividade.
Sob o signo da popularidade inimiga do conhecimento e do pulular de citações sobre o vazio, foram selecionados seis livros que constituirão o programa de mais este ciclo de leituras: convergentes/divergentes/cruzadas/paralelas... Servirão elas para descobrirmos outros alcances das referências que temos, para aprofundarmos o sentido de títulos que, por vezes, pouco pensadamente deixamos cair, das eternas citações, por vezes bastante remendadas, das personagens trânsfugas dos livros a que se sobrepuseram.
Descobrir as fontes destas figuras de superfície, ou seja, os livros lá por trás escondidos ou esquecidos, liofilizados por um conhecimento parcial, é o nosso fito. Através da leitura, único caminho para o conhecimento de um livro. Façamos perguntas:
— Porque continuam estes livros dando respostas a problemas que permanecem ou se transfiguram?
— Porque se tornaram estes livros linguagem? Porquê, os seus títulos, os nomes das suas personagens, as suas citações se coseram na nossa linguagem?
— Porque se tornaram fundamento, argumento, de opiniões, de convicções, numa espécie de homerização? Como nos tempos fundos de uma cultura que herdámos, a dos poemas homéricos que serviam de fundamento, quase diríamos jurisprudência, para sentenças em julgado, tempos míticos em que a literatura tinha jurisdição sobre a vida?
— Livros míticos?
Agora que estamos menos arcaicos nos costumes e nos nossos julgamentos deles, continuamos a sentenciar a partir de citações como «a minha pátria é a língua portuguesa»; ou «é preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma»; ou justificamos injustificáveis posições políticas de grandes escritores alegando o nome de Céline; ou tomamos como paradigma de comportamentos e atitudes pessoais ou profissionais um Mr. Ripley ou um Sam Spade; ou até acrescentamos o nosso vocabulário de nomes comuns com o nome próprio da personagem Lolita.
— Que nos dirá, sobre o assunto, a leitura dos livros-fonte destas nossas apropriações?
— Que referências culturais alargaremos/contraditaremos, subindo delas até aos livros onde residem?
Estas e outras perguntas/respostas partilharemos.
Vamos começar por Il Gattopardo (O Leopardo), um livro repleto de respostas e de perguntas.
Um monge jovem era o responsável pelo jardim do templo. Um dia, quando esperavam a visita de importantes convidados, o jovem monge tratou o jardim com extremo cuidado: tirou as ervas daninhas, podou os arbustos, varreu o musgo e gastou muito tempo passando o ancinho meticulosamente e cuidadosamente tirando as folhas secas do outono. Enquanto ele trabalhava, um velho monge observava-o. Quando terminou, o monge jovem afastou-se um pouco para admirar seu trabalho:
— Não está lindo? — perguntou ao velho monge.
— Sim — replicou o ancião — mas falta uma coisa muito importante.
Vagarosamente, o monge mais velho caminhou até à árvore mais próxima do centro do jardim e sacudiu-lhe o tronco com força. As folhas desceram suavemente com a brisa e caíram por sobre todo o jardim.
— Pronto! — disse o velho monge — Agora está bem.
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