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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sábado, 28.11.15

ORA, A LITERATURA... [VIII]

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Nasceu o homem e com ele vontade, desejo, desígnio, diferença, arte. Sendo a arte um antidestino, os que a fazem concentram-se em criar. Por isso, são diferentes. Uma das artes com que se diferenciam chama-se literatura. Faz-se com palavras.

- Com palavras?! Só?! Olá! Coisa barata... — arreganharam-se os guarda-livros. — Se as palavras são de graça... há aqui grande «potencial» para o negócio. - Coçaram a cabeça - ... Isto pode... pode... mas, para isso, para render, tem de vender muito, muito, muito, muito.

E é aqui que entram os leitores. E é aqui que entra a leitura. Que interessa, comercialmente falando, que uma pessoa e um livro fechados num quarto subam ou desçam a paisagens impensadas, abram no mundo uma brecha inédita?

E de novo os guarda-livros: — Bem, bem, não podemos vender só livros, temos sobretudo de inculcar umas quantas ideias, uma quanta banha da cobra.

Quando o câmbio do produto é baixo, é fácil apostar no nada promissor de um remédio, mesmo que se venha a morrer da cura. Há conjunturas perfeitas, momentos fatais, inescapáveis aos bons negociantes, dos que têm olho para o negócio. Momentos em que o que podia correr mal se eclipsa, porque todos, ou quase todos, estão a olhar para o sol ou para a lua, ao mesmo tempo.

E os guarda-livros determinam: — Plante-se um horizonte de quantidade! Dificuldade, demora, exigência, falta de colorido, silêncio, paragem, lonjura, incorporalidade afastam, rarefazem, diminuem a quantidade. Facilite-se, acelere-se, abra-se, dê-se cor, barulhe-se, agite-se, aproxime-se, sensitive-se. Façam-se livros fáceis, rápidos, acessíveis, animados, coloridos, ruidosos, imparáveis, íntimos, próximos, iguais a ti, que te encham o olho e regalem os ouvidos, gostosos, têxteis, cheirosos, deliciosos, tormentosos, consoladores.

Ora, a literatura...

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por Maria Almira Soares às 12:53

Domingo, 22.11.15

ORA, A LITERATURA... [VII]

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Entretanto, os implícitos criadores literários retraem-se, timoratos de naufragarem se abandonados à absoluta criação literária, inseguros da superação do nível pífio e infamante que por aí viceja, ou, hipótese mais provável, incapazes de suportarem o menoscabo que a literatura pura e dura, que se atrevessem a criar, mereceria por parte dos donos da visibilidade dos livros e da possibilidade da sua leitura. Assim, preferem deixar de lado a genuína invenção literária e fazem desvantajosas e notórias parcerias com sólidas e emergentes matérias factuais. Descreem da esperança de leitura, ou sequer da esperança de vida, de uma história romanesca puramente inventada, meio indireto e ínvio de interpelar o real. Evitam tenros e novos ramos florescentes da, de antes amada, literatura. É que não estão cá para criarem objetos de desdém! E a literatura fica cada vez mais implícita, potencial, irrealizada, mítica. A criação literária retira-se para lugares com pouca luz, para quarteirões esconsos. Mal se vê. Ora, a literatura...

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por Maria Almira Soares às 15:21

Segunda-feira, 09.11.15

O LEOPARDO

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Comecemos pelo animal.

Comecemos pelo leopardo. O título. De muitos livros, leitores pouco atentos a tudo o que não seja a história esquecem involuntária e facilmente o título, habituando-se a referi-los perifrasticamente como aquele livro ou aquele livro que. Deste, não. Deste, de um modo geral, dizem lestamente coisas como estou a ler O Leopardo. Deste livro, o título é-lhes de uma configuração tão percetível que marca a sua memória. Como um animal de gesto forte, o título é-lhes leve. Talvez o não devesse ser, leve. Porque todo o romance, com seu peso, está no leopardo que lhe serve de título.De outro modo, porém, o título, literalmente, poucas vezes assoma no romance. Deixa-se entrever, aqui ou ali, como quem avisa, permanência heráldica, sombra dos muitos leopardos vivos, selvagens, que já foram, e que a Itália e a Europa caçaram incansavelmente até à extinção. Sombra heráldica, mas sombra que dança: dancemos enquanto tudo arde, porque, enquanto tudo arde, tudo fica. Na Europa, o tempo dos leopardos acabou e cada gato que olhamos admirativamente é a nossa não assumida saudade do tempo dos leopardos. A leitura deste livro, também. A leitura deste livro desperta-nos a saudade pungente e desconcertante do tempo em que os leopardos fulgurantemente dançavam. Grande parte do amor a este livro vem-nos da nostalgia de um tempo irrecuperável de cuja respiração ele nos impregna. Perante o último dos leopardos, ainda feroz, telúrico, o príncipe de Salina, interrompemos o nosso mundo e nele incorporamos, pela leitura, a outra grande personagem que Lampedusa tinha na alma: a Sicília.

Deixemos o animal, simbólico, e pisemos a terra, real.

Lampedusa era incuravelmente literário. E incuravelmente siciliano. Levou toda a vida a cultivar a doença da literatura e, não longe da morte, produziu este seu grande romance. Único. Quando o íntimo conhecimento de um mundo, de uma terra, encontra a poderosa arte das palavras, nascem grandes romances. A sua escrita não é apenas narrativa, nem é meramente reconstrutiva. É uma constante sinestesia e hipálage existenciais em que as sensações se misturam e as coisas, as casas, os lugares, as poeiras e os ventos e as chuvas e os sóis se humanizam até à comoção poética. Um grande romance é aquele que cria um mundo onde gostamos de entrar. Gosto de entrar neste mundo por três portas mágicas:

— a da beleza da escrita;

— a da beleza das personagens;

— a da beleza do espírito do lugar.

Por estas três portas, como em palácio siciliano, Lampedusa abre-nos o seu romance: o maravilhamento perante a escrita; a colocação exata, medida entre distância e proximidade, de personagens moldadas com paixão e humor; o visceral conhecimento de um tempo e de um lugar que ilumina o nosso aqui e agora.

Este romance é a transmutação literária das suas raízes, das figuras da sua ancestralidade, da sua Sicília. Da sua inteligibilidade da Sicília: divina porque imperfeita. Desdenhosa de mudanças. Humana para lá de qualquer revolução. Uma natureza. Um sangue. Neste romance, colhemos, do olhar que narra a história e descreve lugares e personagens, a intimidade profunda de Lampedusa com a Sicília. Um olhar simultaneamente animal, vital, telúrico e fino, inteligente, reflexivo. Tragicamente irónico. Nele, vemos a História, o devir. Um olhar que mistura a visão política, social, doméstica, ritual, pessoal, íntima. Não se limita a representar: diz. Ou antes: no modo como representa, diz. Como se interrompesse o humano para dizer o sagrado. Captando, nas pessoas, nos lugares, nos gestos, nos atos, nas casas, a ordem, o sentido, de uma genuína desordem.

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por Maria Almira Soares às 17:19

Domingo, 08.11.15

A SÍNTESE PERFEITA

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O meu diálogo vicentino preferido passa-se entre um anjo e uma moça e reza assim:

— Conhecias tu a Deus?

— Muito bem, era redondo.

 

Gosto muito desta cena pela argúcia e pela genial arte de encontrar a síntese perfeita da expressão de uma ideia.

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por Maria Almira Soares às 13:28

Quinta-feira, 05.11.15

ORA, A LITERATURA... [VI]

 

desenvolvim imagem 1.jpgE, sabem, até não há nisto nenhuma contradição, não há. Porque, se o que se quer é fazer da leitura um bem social e demonstrá-lo perante os alfabetizados do desenvolvimento económico, e convencê-los a porem os seus olhos a ver e a decifrar cada vez mais letras instituídas em sequências legíveis, em verdade, em boa verdade, com isto, a literatura nada teria a ver. Verdade é também, porém, que, com isto, com esta safra cultivadora de leitores, vem o esquecimento, a distração da literatura, o apagamento da relação difícil e dolorosa com um livro em que um dia tropeçámos e nos disse que afinal era tudo diferente. Mas que é que isso interessa, o que é que interessa um livro neste mundo quantitativo? Ora, a literatura...

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por Maria Almira Soares às 17:20

Segunda-feira, 02.11.15

ORA, A LITERATURA [V]

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E o velho e provado otium, de onde saíram Cíceros, Horácios e até Virgílios, torna-se negotium e as eneidas e os monumentum aere perennius e os de senectute são agora composições talhadas por mestres em efeitos agradáveis e comoventes. Uma gama de variações de modelos acertados nas chancelarias editoriais que antes de o ser já o eram. São histórias intencionadas, dirigidas, teleguiadas aos corações e às distrações dos leitores. Coisas parecidas com literatura. Que, na ausência ou no resguardo tímido da própria, lhe ocupam o lugar e respondem pelo nome quando são chamadas a debate. Quase ninguém dá conta e o regozijo parece geral. Que bom, que panóplia de excelentes escritores que, depois de corrigidos e aparados, enriquecem montras e fastos literários! E satisfazem leitores e geram leitores. Regozijo geral. Apenas uma coisa não comparece, ou comparece pouco, muito pouco, cada vez menos: a literatura. Quem, porque tem conhecimento e lucidez, apesar de se deixar navegar na onda, não consegue evitar a preocupação convence-se de que se trata apenas de um passo ínvio para se reencontrar o caminho certo mais à frente. Crise de crescimento, dizem, não reparando que a árvore cresce segundo a semente e que é na semente que se está a dar a troca. Ora, a literatura...

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por Maria Almira Soares às 13:28


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