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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 09.11.15

O LEOPARDO

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Comecemos pelo animal.

Comecemos pelo leopardo. O título. De muitos livros, leitores pouco atentos a tudo o que não seja a história esquecem involuntária e facilmente o título, habituando-se a referi-los perifrasticamente como aquele livro ou aquele livro que. Deste, não. Deste, de um modo geral, dizem lestamente coisas como estou a ler O Leopardo. Deste livro, o título é-lhes de uma configuração tão percetível que marca a sua memória. Como um animal de gesto forte, o título é-lhes leve. Talvez o não devesse ser, leve. Porque todo o romance, com seu peso, está no leopardo que lhe serve de título.De outro modo, porém, o título, literalmente, poucas vezes assoma no romance. Deixa-se entrever, aqui ou ali, como quem avisa, permanência heráldica, sombra dos muitos leopardos vivos, selvagens, que já foram, e que a Itália e a Europa caçaram incansavelmente até à extinção. Sombra heráldica, mas sombra que dança: dancemos enquanto tudo arde, porque, enquanto tudo arde, tudo fica. Na Europa, o tempo dos leopardos acabou e cada gato que olhamos admirativamente é a nossa não assumida saudade do tempo dos leopardos. A leitura deste livro, também. A leitura deste livro desperta-nos a saudade pungente e desconcertante do tempo em que os leopardos fulgurantemente dançavam. Grande parte do amor a este livro vem-nos da nostalgia de um tempo irrecuperável de cuja respiração ele nos impregna. Perante o último dos leopardos, ainda feroz, telúrico, o príncipe de Salina, interrompemos o nosso mundo e nele incorporamos, pela leitura, a outra grande personagem que Lampedusa tinha na alma: a Sicília.

Deixemos o animal, simbólico, e pisemos a terra, real.

Lampedusa era incuravelmente literário. E incuravelmente siciliano. Levou toda a vida a cultivar a doença da literatura e, não longe da morte, produziu este seu grande romance. Único. Quando o íntimo conhecimento de um mundo, de uma terra, encontra a poderosa arte das palavras, nascem grandes romances. A sua escrita não é apenas narrativa, nem é meramente reconstrutiva. É uma constante sinestesia e hipálage existenciais em que as sensações se misturam e as coisas, as casas, os lugares, as poeiras e os ventos e as chuvas e os sóis se humanizam até à comoção poética. Um grande romance é aquele que cria um mundo onde gostamos de entrar. Gosto de entrar neste mundo por três portas mágicas:

— a da beleza da escrita;

— a da beleza das personagens;

— a da beleza do espírito do lugar.

Por estas três portas, como em palácio siciliano, Lampedusa abre-nos o seu romance: o maravilhamento perante a escrita; a colocação exata, medida entre distância e proximidade, de personagens moldadas com paixão e humor; o visceral conhecimento de um tempo e de um lugar que ilumina o nosso aqui e agora.

Este romance é a transmutação literária das suas raízes, das figuras da sua ancestralidade, da sua Sicília. Da sua inteligibilidade da Sicília: divina porque imperfeita. Desdenhosa de mudanças. Humana para lá de qualquer revolução. Uma natureza. Um sangue. Neste romance, colhemos, do olhar que narra a história e descreve lugares e personagens, a intimidade profunda de Lampedusa com a Sicília. Um olhar simultaneamente animal, vital, telúrico e fino, inteligente, reflexivo. Tragicamente irónico. Nele, vemos a História, o devir. Um olhar que mistura a visão política, social, doméstica, ritual, pessoal, íntima. Não se limita a representar: diz. Ou antes: no modo como representa, diz. Como se interrompesse o humano para dizer o sagrado. Captando, nas pessoas, nos lugares, nos gestos, nos atos, nas casas, a ordem, o sentido, de uma genuína desordem.

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por Maria Almira Soares às 17:19


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