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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Se questo è un uomo
Voi che vivete sicuri
Nelle vostre tiepide case
voi che trovate tornando a sera
Il cibo caldo e visi amici:
Considerate se questo è un uomo
Che lavora nel fango
Che non conosce pace
Che lotta per mezzo pane
Che muore per un sì o per un no.
Considerate se questa è una donna
Senza capelli e senza nome
Senza più forza di ricordare
Vuoti gli occhi e freddo il grembo
Come una rana d'inverno.
Meditate che questo è stato
Vi comando queste parole.
Scolpitele nel vostro cuore
Stando in casa andando per via
Coricandovi alzandovi
Ripetetele ai vostri figli.
O vi si sfaccia la casa
La malattia vi impedisca
I vostri nati torcano il viso da voi.
À semelhança da já citada cena de Lucinho e a flor, em Nítido Nulo, há, em Para Sempre, reiteradamente percutido como corda de lira, o quadro de uma garota que infinitamente espera a palavra da professora:
«Sentada a uma escrivaninha, os pés cruzados num escabelo de seda, uma garota suspende um envelope numa das mãos, o olhar erguido para a professora enquanto ela lhe lê a carta. Deve ter acabado de a escrever. Deve estar à espera que a professora lhe diga se está bem. Olho eu também atrás e espero. Espero desde a infância que a professora acabe, o meu olhar expectante preso ao da criança. É um olhar breve de espera, tudo vai decidir-se num momento. A professora é alta, um vestido apertado de cinta, amarelo e lilás até aos pés, um carrapito louro ao alto. Pelo sorriso dela, a carta deve estar bem. A criança sorri também, tranquilizada pelo sorriso da mestra. Faltam apenas decerto algumas linhas, concentrado tudo num instante, o breve ápice em que a cena se vai desatar. Mas o instante prolonga-se desde há sessenta anos, imóvel, subtil, a vida suspensa na graça delicada de uma criança que sorri.»
[Para Sempre, págs. 83-84]
Um olhar dentro doutro olhar, dentro doutro olhar: o que desde há sessenta anos olha a criança olhando a professora. O olhar narrador sobrepõe-se ao da criança no seu momento expectante, como se fosse sempre a criança, possuísse a criança e nela outorgasse à mestra o poder, o poder em suspenso pronto a exercer-se, mas fixado como um para sempre, uma essência, um domínio, uma condição de existência.
E à frente outra glosa:
«É uma miúda de braço suspenso com um envelope, aguarda que a professora em pé termine com a leitura da carta e lhe diga de uma vez se está bem. Aguarda desde a minha infância, têm ambas o ar risonho de um jogo infantil. Sorrio eu também como sempre sorri ansioso por que a professora se despache e a criança meta a carta no envelope e vá brincar.»
[Para Sempre, pág. 164]
Como um leixa-pren de cantiga medieval, que repete avançando, constrói o paradoxo semântico e melódico do parar avançando, do conter progredindo, imagem sublime da educação, um poder que sabe que só outro poder pode mover.
In Vergílio Ferreira - O Excesso da Arte num Professor por Defeito
LOLITA (Vladimir Nabokov)
Por muitas e variadas razões, sou levada a profetizar que ninguém ousará jamais aduzir que a troca do título deste romance, de Lolita para Humbert Humbert, seria de algum modo proveitosa. Por muitas e variadas razões, repito: umas intrínsecas à própria palavra (Lo-li-ta); outras intrínsecas à figura que lhe tem o nome; outras intrínsecas ao posterior espaço, imaginário e real, que este nome veio a preencher na linguagem-pensamento-emoções morais; outras, ainda e finalmente, intrínsecas ao prejuízo em ressonância musical, visual, plástica, que o nome (ou melhor, o pseudónimo) Humbert Humbert traria consigo.
E, no entanto...
E, no entanto, sem desautorizar a boa razão de tantas razões, Humbert Humbert é uma enorme criação literária. Muito mais extraordinária do que a rapariguinha americana que ele sonha como Lolita. Muito mais e muito mais além do que a vulgaridade e a típica ‘americanidade’ (vida escolar, hábitos e gostos juvenis, roupas, divertimentos...) de Dolores Haze, o seu predador é uma tremenda personagem, criada por Nabokov com a subtileza, a profundidade, a ambiguidade, a complexidade de uma personagem dostoievskiana. O seu comportamento nunca é simples, mecânico, dicotómico. Feito de um complexo de fatores culturais, familiares, educacionais, ambientais, anímicos, psíquicos, amarrados por um indesatável nó obsessivo, Humbert Humbert é uma personagem única, insubstituível como criação literária. Nabokov era russo e, embora declarasse não gostar de Dostoievski, tinha, com ele, esse traço cultural e anímico comum, o de ter nascido russo. No seu posfácio à edição de 1956, «On a Book Entitled Lolita», ao rebater pressupostas aproximações entre a sua vida e o enredo do romance, Nabokov declara que a sua única «verdadeira tragédia íntima foi a de ter sido obrigado a abandonar a sua língua natural», ou seja, o russo. E se o seu difícil brilhantismo literário em língua inglesa é indiscutível! Pois, se a língua é algo de tão íntimo a ponto de ser uma tragédia o arrancá-la de si, então, será natural que, mesmo que em língua inglesa, Nabokov crie tremendas personagens onde ecoam as do romance russo. Humbert Humbert é uma delas. Personagem modelada com uma lucidez finíssima, cheia de subtilezas, peneirada por grades analíticas que simultaneamente lhe dão coerência e a dividem. Humbert Humbert é o egocentrismo vicioso, avassalador, destruidor, psicopata, exposto de modo franco e chocante. É a figura da transgressão e até da loucura, transudando o sorriso amargo do sofrimento e da doença. Mente doentia que planeia, quantifica, detalha, interpreta, a uma luz mórbida, minada pelo mal, assumido como bem próprio, como prazer. Nabokov constrói a sua personagem com tal perfeição, que bastaria invertê-la, pô-la do avesso, para que tudo se transformasse numa admirável história de amor. Porque tudo é manchado, maculado, por um gigantesco MAS, por um monstruoso SE.
MAS Lolita é uma criança...
SE Lolita não fosse uma criança...
Eis o traço distintivo, intransponível senão pela trágica ‘ubris’ que é sempre avessa da VIDA. Em Lolita, Nabokov cria, de um modo genial, uma história cheia de vida que aniquila a vida.
Humbert Humbert é o manipulador infatigável, consciência reptilínea que absorve a própria culpa. Homem culto, ‘civilizado’, educado, aparentemente bem comportado, com boa apresentação... e? Um réptil inelutavelmente fascinado pelo seu alimento vivo, a sua presa: Lolita!
Pois, afinal, o título está certo, certíssimo, já que, sem Lolita, Humbert Humbert não existe. Ela é uma fatal necessidade sua. Ela é uma elaboração sua, a ‘ninfita’, encarnada numa real rapariguinha americana alheia a tal persecutória fantasia, trocista, até, das suas manifestações. Lolita existe em Humbert Humbert, não em Dolores Haze. Ele é Lolita!
Nabokov é senhor de uma escrita tremendamente criativa, bela e inteligente, notória sobretudo em traços e pinceladas subtis de atmosferas, ambientes, figuras, gestos. E nos jogos vocabulares e discursivos com que os elabora. Esta escrita empurra o leitor para o mergulho no mundo aqui imaginado. Mas o mergulho não é lustral, não é vital, é malsão, movediço, inquietante, talvez até repugnante como um pântano. Não obstante o horror, permanecemos na leitura presos no lodo genial da escrita nabokoviana. Se estivéssemos a ler esta história como um caso passado, semelhante a alguns que lemos hoje em dia, contado sinteticamente no económico registo jornalístico, será que a densidade do sabor da leitura seria a mesma? Seria a mesma, a nossa reação? Ou arrumá-la-íamos, acomodá-la-íamos mais facilmente? Sem esta inquietação perturbadora de estarmos a ler alta literatura sobre baixos, vis, comportamentos humanos? Sem esta experiência inesquecível, quiçá insuportável, de ler a beleza irremediavelmente suja?
Nesse posfácio que já citei, Nabokov revela que a primeira centelha deste seu futuro romance lhe surgira da leitura de uma história, publicada num jornal, acerca de um macaco do Jardin des Plantes que, depois de meses de persuasão por parte de um cientista, produziu o primeiro desenho a carvão feito por um animal: «o desenho mostrava as barras da jaula da pobre criatura»...
Humbert Humbert escreve da sua jaula de criminoso e desenha, ao longo da sua narrativa, a sua vida de enjaulado pela obsessão sitiante, intransponível: Lolita.
«Chegou a apertar-lhe a garganta nas mãos; mas depressa perdeu o vigor dos dedos. Quando as damas chegaram a interpor-se entre os dois, Baltasar tinha o alto do crânio aberto por uma bala, que lhe entrara na fronte. Vacilou um segundo, e caiu desamparado aos pés de Teresa.
Tadeu de Albuquerque gritava a altos brados. Os liteireiros e criados rodearam Simão, que conservava o dedo no gatilho da outra pistola. Animados uns pelos outros e pelos brados do velho, iam lançar-se ao homicida, com risco de vida, quando um homem, com um lenço pela cara, correu da rua fronteira, e se colocou de bacamarte aperrado, à beira de Simão. Estacaram os homens.
– Fuja, que a égua está ao cabo da rua – disse o ferrador ao seu hóspede.
– Não fujo… Salve-se, e depressa – respondeu Simão.
– Fuja, que se ajunta o povo e não tardam aí soldados.
– Já lhe disse que não fujo – replicou o amante de Teresa, com os olhos postos nela, que caíra desfalecida sobre as escadas da igreja.
– Está perdido! – tornou João da Cruz.
– Já o estava. Vá-se embora, meu amigo, por sua filha lho rogo. Olhe que pode ser-me útil; fuja…
Abriram-se todas as portas e janelas, quando o ferrador se lançou na fuga até cavalgar a égua.
Um dos vizinhos do mosteiro, que, em razão de seu ofício, primeiro saiu à rua, era o meirinho-geral.
– Prendam-no, prendam-no, que é um matador – exclamava Tadeu de Albuquerque.
– Qual? – perguntou o meirinho-geral.
– Sou eu – respondeu o filho do corregedor.
– Vossa senhoria! – disse o meirinho espantado; e, aproximando-se, acrescentou a meia-voz:
– Venha, que eu deixo-o fugir.
– Eu não fujo – tornou Simão. – Estou preso. Aqui tem as minhas armas.»
«A distância de uma légua de Vila Real estava a nobreza da vila esperando o seu conterrâneo. Cada família tinha a sua liteira com o brasão da casa. A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada no feitio, e as librés dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam na comitiva. D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande luneta de oiro, e disse:
– Ó Meneses, aquilo que é?
– São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.
– Em que século estamos nós nesta montanha? – tornou a dama do paço.
– Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
– Ah! sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze… O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara grandemente.»
Do V volume de Acta Est Fabula de Eugénio Lisboa...
«Esta manhã, no Expresso (de Lima), num excelente artigo sobre cultura, o autor propõe que à estafada pergunta - "Para que serve a cultura?" - se responda: "Para acabar de vez com a vontade de fazer esta pergunta."»
E lembrei-me de Gil Vicente...
Soy portero de los vientos
Pastor de las tempestades
Ayo de las frialdades
Ira de los elementos
Maestre-sala de la luna
De los hielos corretor
Y soy capitan mayor
De la marina fortuna.
Aunque veais mi figura
Hecha un salvage bruto
Yo cubro el aire de luto
Y las sierras de blancura.
Quito las sombras graciosas
Debajo de los castaños
Y hago á los ermitaños
Encovar como raposas.
Hago mustios los perales
Los bosques frescos medoños
Y alegres los madroños
Y llorosos los rosales.
Hago sonar las campanas
Muy lejos con mis primores
Y callar los ruiseñores
Y los grillos y las ranas.
Triunfo do Inverno (Gil Vicente)
A leitura não serve para fazer bem ou fazer mal. A leitura não serve para. A leitura não serve para fazer. A leitura faz. Faz parte. Sem ela, somos incompletos. No bem e no mal.
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