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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Terça-feira, 19.01.16

DESENHANDO A PRÓPRIA JAULA

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LOLITA (Vladimir Nabokov)

Por muitas e variadas razões, sou levada a profetizar que ninguém ousará jamais aduzir que a troca do título deste romance, de Lolita para Humbert Humbert, seria de algum modo proveitosa. Por muitas e variadas razões, repito: umas intrínsecas à própria palavra (Lo-li-ta); outras intrínsecas à figura que lhe tem o nome; outras intrínsecas ao posterior espaço, imaginário e real, que este nome veio a preencher na linguagem-pensamento-emoções morais; outras, ainda e finalmente, intrínsecas ao prejuízo em ressonância musical, visual, plástica, que o nome (ou melhor, o pseudónimo) Humbert Humbert traria consigo.

E, no entanto...

E, no entanto, sem desautorizar a boa razão de tantas razões, Humbert Humbert é uma enorme criação literária. Muito mais extraordinária do que a rapariguinha americana que ele sonha como Lolita. Muito mais e muito mais além do que a vulgaridade e a típica ‘americanidade’ (vida escolar, hábitos e gostos juvenis, roupas, divertimentos...) de Dolores Haze, o seu predador é uma tremenda personagem, criada por Nabokov com a subtileza, a profundidade, a ambiguidade, a complexidade de uma personagem dostoievskiana. O seu comportamento nunca é simples, mecânico, dicotómico. Feito de um complexo de fatores culturais, familiares, educacionais, ambientais, anímicos, psíquicos, amarrados por um indesatável nó obsessivo, Humbert Humbert é uma personagem única, insubstituível como criação literária. Nabokov era russo e, embora declarasse não gostar de Dostoievski, tinha, com ele, esse traço cultural e anímico comum, o de ter nascido russo. No seu posfácio à edição de 1956, «On a Book Entitled Lolita», ao rebater pressupostas aproximações entre a sua vida e o enredo do romance, Nabokov declara que a sua única «verdadeira tragédia íntima foi a de ter sido obrigado a abandonar a sua língua natural», ou seja, o russo. E se o seu difícil brilhantismo literário em língua inglesa é indiscutível! Pois, se a língua é algo de tão íntimo a ponto de ser uma tragédia o arrancá-la de si, então, será natural que, mesmo que em língua inglesa, Nabokov crie tremendas personagens onde ecoam as do romance russo. Humbert Humbert é uma delas. Personagem modelada com uma lucidez finíssima, cheia de subtilezas, peneirada por grades analíticas que simultaneamente lhe dão coerência e a dividem. Humbert Humbert é o egocentrismo vicioso, avassalador, destruidor, psicopata, exposto de modo franco e chocante. É a figura da transgressão e até da loucura, transudando o sorriso amargo do sofrimento e da doença. Mente doentia que planeia, quantifica, detalha, interpreta, a uma luz mórbida, minada pelo mal, assumido como bem próprio, como prazer. Nabokov constrói a sua personagem com tal perfeição, que bastaria invertê-la, pô-la do avesso, para que tudo se transformasse numa admirável história de amor. Porque tudo é manchado, maculado, por um gigantesco MAS, por um monstruoso SE.

MAS Lolita é uma criança...

SE Lolita não fosse uma criança...

Eis o traço distintivo, intransponível senão pela trágica ‘ubris’ que é sempre avessa da VIDA. Em Lolita, Nabokov cria, de um modo genial, uma história cheia de vida que aniquila a vida.

Humbert Humbert é o manipulador infatigável, consciência reptilínea que absorve a própria culpa. Homem culto, ‘civilizado’, educado, aparentemente bem comportado, com boa apresentação... e? Um réptil inelutavelmente fascinado pelo seu alimento vivo, a sua presa: Lolita!

Pois, afinal, o título está certo, certíssimo, já que, sem Lolita, Humbert Humbert não existe. Ela é uma fatal necessidade sua. Ela é uma elaboração sua, a ‘ninfita’, encarnada numa real rapariguinha americana alheia a tal persecutória fantasia, trocista, até, das suas manifestações. Lolita existe em Humbert Humbert, não em Dolores Haze. Ele é Lolita!

 

Nabokov é senhor de uma escrita tremendamente criativa, bela e inteligente, notória sobretudo em traços e pinceladas subtis de atmosferas, ambientes, figuras, gestos. E nos jogos vocabulares e discursivos com que os elabora. Esta escrita empurra o leitor para o mergulho no mundo aqui imaginado. Mas o mergulho não é lustral, não é vital, é malsão, movediço, inquietante, talvez até repugnante como um pântano. Não obstante o horror, permanecemos na leitura presos no lodo genial da escrita nabokoviana. Se estivéssemos a ler esta história como um caso passado, semelhante a alguns que lemos hoje em dia, contado sinteticamente no económico registo jornalístico, será que a densidade do sabor da leitura seria a mesma? Seria a mesma, a nossa reação? Ou arrumá-la-íamos, acomodá-la-íamos mais facilmente? Sem esta inquietação perturbadora de estarmos a ler alta literatura sobre baixos, vis, comportamentos humanos? Sem esta experiência inesquecível, quiçá insuportável, de ler a beleza irremediavelmente suja?

Nesse posfácio que já citei, Nabokov revela que a primeira centelha deste seu futuro romance lhe surgira da leitura de uma história, publicada num jornal, acerca de um macaco do Jardin des Plantes que, depois de meses de persuasão por parte de um cientista, produziu o primeiro desenho a carvão feito por um animal: «o desenho mostrava as barras da jaula da pobre criatura»...

Humbert Humbert escreve da sua jaula de criminoso e desenha, ao longo da sua narrativa, a sua vida de enjaulado pela obsessão sitiante, intransponível: Lolita.

 

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por Maria Almira Soares às 18:03


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