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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
À semelhança da já citada cena de Lucinho e a flor, em Nítido Nulo, há, em Para Sempre, reiteradamente percutido como corda de lira, o quadro de uma garota que infinitamente espera a palavra da professora:
«Sentada a uma escrivaninha, os pés cruzados num escabelo de seda, uma garota suspende um envelope numa das mãos, o olhar erguido para a professora enquanto ela lhe lê a carta. Deve ter acabado de a escrever. Deve estar à espera que a professora lhe diga se está bem. Olho eu também atrás e espero. Espero desde a infância que a professora acabe, o meu olhar expectante preso ao da criança. É um olhar breve de espera, tudo vai decidir-se num momento. A professora é alta, um vestido apertado de cinta, amarelo e lilás até aos pés, um carrapito louro ao alto. Pelo sorriso dela, a carta deve estar bem. A criança sorri também, tranquilizada pelo sorriso da mestra. Faltam apenas decerto algumas linhas, concentrado tudo num instante, o breve ápice em que a cena se vai desatar. Mas o instante prolonga-se desde há sessenta anos, imóvel, subtil, a vida suspensa na graça delicada de uma criança que sorri.»
[Para Sempre, págs. 83-84]
Um olhar dentro doutro olhar, dentro doutro olhar: o que desde há sessenta anos olha a criança olhando a professora. O olhar narrador sobrepõe-se ao da criança no seu momento expectante, como se fosse sempre a criança, possuísse a criança e nela outorgasse à mestra o poder, o poder em suspenso pronto a exercer-se, mas fixado como um para sempre, uma essência, um domínio, uma condição de existência.
E à frente outra glosa:
«É uma miúda de braço suspenso com um envelope, aguarda que a professora em pé termine com a leitura da carta e lhe diga de uma vez se está bem. Aguarda desde a minha infância, têm ambas o ar risonho de um jogo infantil. Sorrio eu também como sempre sorri ansioso por que a professora se despache e a criança meta a carta no envelope e vá brincar.»
[Para Sempre, pág. 164]
Como um leixa-pren de cantiga medieval, que repete avançando, constrói o paradoxo semântico e melódico do parar avançando, do conter progredindo, imagem sublime da educação, um poder que sabe que só outro poder pode mover.
In Vergílio Ferreira - O Excesso da Arte num Professor por Defeito
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