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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 21.03.16

POESIA

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AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
– Perdida voz que de entre as mais se exila,
– Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

 

Camilo Pessanha

   

 

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por Maria Almira Soares às 16:19

Domingo, 20.03.16

PRIMAVERA

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 «A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.»

Cecília Meireles

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por Maria Almira Soares às 13:41

Sábado, 19.03.16

O MINISTRO

   Olá, Detective das Palavras!

   Hoje vais encarregar-te de um caso que nem parece ser dos mais difíceis: o caso da palavra MINISTRO. À partida, ninguém parece desconhecer o significado desta palavra. Toda a gente sabe a quem a pode aplicar e, por isso, de um modo geral, ninguém se engana no seu uso.

E, muito menos tu, o experiente Detective das Palavras! Tenho a certeza de que sabes muito bem o que é um ministro. Porém, se estiveres disposto a fazer uma viagem ao passado, que grande surpresa não terás! Duvidas? Estás curioso? Queres saber de que surpresa se trata? Então, anda daí. Vá, confia em mim. Entra já, sem demora, nesta fantástica máquina do tempo! Está programada para te levar até à Roma antiga, a época em que tiveram origem muitas coisas que hoje usamos. Não tenhas medo. Eu sou o génio da Língua Portuguesa e, daqui, do século xxi em que me encontro, manter-me-ei sempre em contacto contigo.

Um, dois, tr… Não, espera! Não partas ainda. Leva contigo esta mágica folhinha de papel. Guarda-a bem. Não a percas. O que é?! Pois é um bocadinho de um desses livros que nos revelam os segredos das línguas que falamos: um dicionário.

Guardaste-a bem? Agora, vai!

     Depois de todas as voltas e cambalhotas em que vais às arrecuas pelos séculos fora, balatrum, balatrum, balatrum, balatrum, quando parares em Roma, no século i a. C., vais ver que, para além das tonturas de tanta reviravolta, alguma coisa mais terá acontecido. O quê? Enquanto transpões a barreira do tempo, o significado da palavra ministro, que levas aí escrito nesse pedaço de papel, vai apagar-se, desaparecer. O tempo roubará o que o tempo deu. Então, entre todas as perguntas que decerto irás fazer a ti mesmo, perante essa realidade longínqua e tão diferente da tua, haverá uma a que não escaparás: — Porque será que o significado que eu trazia do século xxi já não serve? Qual terá sido o sentido da palavra MINISTRO nesta época tão antiga?

Talvez te ocorra a ideia de ir ver ao dicionário… Mas, aí, nesse tempo, tal ideia de nada te valerá, porque… porque ainda não havia dicionários como os que viemos a conhecer mais tarde. Que fazer? Ora, sair da cápsula em que viajaste e explorar esse mundo dos antigos Romanos, que tão modernos foram na sua vez.

E é isso mesmo que já estás a fazer. Já te vejo a caminho do bulício dessa cidade inigualável. Andas pelas ruas, pelas praças, olhas as fachadas, as togas e as túnicas das pessoas apressadas, tão apressadas que nem parecem dar por ti, escondido atrás de uma coluna… Não sabes bem onde estás? Não sabes, mas eu sopro-te ao ouvido:

— Essa, atrás da qual te escondes, é uma coluna do templo de Júpiter Capitolino.

— Ah! — dizes baixinho. E vais pensando: — Os livros e os filmes não me enganaram. É tudo mesmo muito parecido com o que eu li e vi no cinema e na televisão. E estranhas a língua em que as pessoas falam: — Que esquisita! Uma ou outra palavra, porém, parece-te familiar. Parecida com o português? Pois claro! E recordas que aprendeste que o português descende da língua dos Romanos, o latim! Ah! É isso: os filhos normalmente são parecidos com os pais. Enquanto assim pensas e te espantas com a multidão que se agita nas ruas de Roma, uma voz mais alta salta-te aos ouvidos chamando insistentemente:

— Salve, Marce Tuli! Marce Tuli! Cicero!

É alguém que se aproxima de um homem magro, pensativo, de cara carrancuda, que acaba de sair da Cúria, onde esteve reunido com o Senado, e atravessa o Forum de Augusto. E outra vez: — Salve, Cicero!

— Marco Túlio Cícero?! Cícero?! Será mesmo o famoso escritor de que nunca ouviste falar? — exclama a minha voz espantada que, em surdina, chega até aos teus ouvidos.

   Mesmo sem o conheceres, pelo sim pelo não, quando termina a rápida conversa entre os dois romanos e Cícero se instala na sua liteira, resolves segui-lo. A tua intuição de detective nunca falha. Ofegante, mas sem dares nas vistas, como qualquer detective experiente que se preze, lá consegues ir acompanhando o passo acelerado dos escravos que carregam Cícero em direcção à sua casa no Monte Palatino. Uma vez aí chegados, arranjas maneira de ludibriar o porteiro e entras também. Os teus olhos atentos e curiosos, admiram as novidades de uma casa romana, com o seu vestíbulo, o seu átrio, o seu jardim interior, os seus tanques, os seus pórticos, os seus mosaicos… De momento perdeste Cícero de vista, mas eis que, de novo, através de uma janela, o vês já instalado dentro de casa.

Escondido atrás de uma sebe bem tratada, assistes, fascinado, à conversa do escritor com o seu querido escravo Tiro, que o acompanha na arte da escrita. Cícero vai escrever. Irás vê-lo a escrever. Que coisa fantástica para contares de volta ao século xxi: — Eu vi-o a escrever o… Oh! Mas não sabes o título do que escreve. Aliás, não sabes nenhum título de nenhuma das suas obras. Que pena! Mas eu digo-te: Cícero está a escrever um livro chamado Dos Deveres que foi muito famoso, mas agora anda muito esquecido. Escreve persistente e concentradamente e, de repente… de repente pára. Suspira, demora-se a olhar as fontes do seu belo jardim, pega no rolo de papiro e lê alto com a sua boa voz de orador treinado:

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Nada percebes desta bela tirada, senão que a coisa tem a ver com um ministro.

Ministro!? E não se trata de uma coincidência. Eu, é que, quando te preparei esta viagem, cuidei bem de todos os pormenores. — Ministro?! Olá! O teu faro de detective põe-se imediatamente em alerta: — Que se passará com os ministros aqui, na Roma Antiga, para que o Cícero fale deles com uma voz tão inflamada? E é precisamente quando estás a debater-te com a tua insaciável curiosidade que começas a sentir uma coisa estranhíssima: o pedacinho de papel, que te dei à partida e tu guardaste no bolso, está a mexer-se sozinho. Não pára de estremecer. Como um ovo quando está quase a partir-se para que nasça um passarinho. Tira-lo do bolso. Mas não… não é um passarinho a nascer! São letras! Magicamente, no espaço que, durante a viagem, tinha ficado em branco, estão agora novas palavras, as palavras de Cícero, que tu tentas ler. Primeiro, lês mal e sem nada perceberes do que lá está escrito em latim. Mas, logo a seguir, os meus poderes de Génio da Língua mudam o texto para português:

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Espantas-te: — O quê?! Com a tua prática de decifrador de códigos secretos, mesmo sem saber latim, tu percebes que, na passagem para português, em vez de ministrum, ficou escrito escravo. E continuas a espantar-te: — O quê?! Mas que grande bronca! Os ministros, no tempo dos Romanos, eram pessoas de classe inferior, escravos?!

Eu tinha-te avisado de que a surpresa iria ser grande. Aposto que nenhum dos teus amigos sabe disto! Estás tão contente com a posse deste segredo, que nem pensas em mais nada. De repente, tudo o resto deixa de ter interesse. Depois de rapidamente fazeres regressar a folha mágica ao seu lugar no bolso, ainda lanças um último olhar a Cícero e, discretamente, encaminhas-te para o local onde deixaste a cápsula do tempo escondida no meio de uns arbustos. Verificas se está tudo em ordem. Entras e, num instante, lá estás tu de novo às cambalhotas, agora em sentido contrário: tralabum, tralabum, tralabum, tralabum … Zás, já está!

     Cá estás tu outra vez. Portugal, século xxi! E cheio de entusiasmo com a grande descoberta que trazes no bolso! De facto, o teu entusiasmo é grande, mas… não dura muito tempo. Depois de sacudires o corpo para repores o equilíbrio, a tua mão procura rapidamente a folhinha mágica e… Deve ter sido por causa da trepidação da máquina que não deste conta, mas certamente que, durante o regresso, o papel deve ter estremecido de novo, porque… olhas, olhas, e nada… — Onde estão aquelas latinices que o Cícero escreveu lá no século i a. C. e a sua tradução para português? Para teu espanto, o que de novo vês escrito no papel é o significado do teu dicionário de rapaz do século xxi. Bah! Perdida a prova, ninguém acreditará em ti! Missão falhada! Que desgosto!

— Alto aí, que tu não és rapaz para desanimar! — Bem o sabemos. Por enquanto, ainda estás um pouco azoado, tomado pela lembrança da aventura extraordinária que viveste. Vês-te, ainda, lá em casa de Cícero, ouvindo-o a ler alto o que acabara de escrever. Tens bom ouvido. E boa memória. E é, então, que um pedacinho de frase, como um verso de cantiga, te vem à cabeça e, depois, à boca: … sed ministrum et praebitorem Repetes para fixares: … sed ministrum et praebitorem Alô! É uma pista! Que fazer com ela? Que fazer com ela, se na tua terra já quase ninguém sabe latim? Que desespero! Um bom detective nunca desespera. De repente, tens uma ideia. Ou antes, és atacado por uma pergunta: — Ainda haverá dicionários de latim?

Resolves guardar a pergunta para a mesa do pequeno-almoço. Decisão acertada! Enquanto bebes o leite e comes o pão, vais perguntando pela existência de dicionários de latim e pondo as tuas dúvidas sobre a estranha mudança de significado da palavra ministro. E é o teu pai quem acaba por te elucidar muito, mas muito mais do que poderias imaginar. Às vezes, nem calculamos que coisas os pais são capazes de saber. Pois não é que o teu pai, palavra-puxa-palavra, desatou a falar, a falar, e nunca mais se calava. Até deixou arrefecer o café!

— Ah! Não sabias? Pois claro que não sabias…

Estava tão entusiasmado a explicar, que nem se lembrou de se espantar com o estranho caso de te ouvir a citar Cícero. Cícero!!!! E explicou, explicou que… — Na origem, a palavra ministro estava relacionada com minus que era menos em latim. E, por isso, ficava bem aos que, naquela sociedade, tinham menos importância: os escravos.

E até acrescentou que… — Ao contrário de ministro, mestre vinha de uma palavra relacionada com mais, que em latim era magis. Em latim o mestre era o magister.

E terminou, dizendo: — As palavras dão muitas voltas, meu menino. No século xiv, a palavra ministro ainda significava, em português, servidor, mas aplicava-se a quem servia os deuses, o sacerdote. Ora, como, nesse tempo, os sacerdotes eram poderosos, foi aí que se deu a mudança: hoje, o ministro é o que tem poder de decisão! De escravo a senhor, já viste?!  

Tu, enquanto ouves a confirmação da tua secreta descoberta, vais pensando: — É sempre assim. Fico sempre espantado com as coisas que, afinal, os mais velhos já sabiam. E ainda pensas mais: — Tanta cambalhota dentro da cápsula do tempo e, afinal, a resposta estava mesmo aqui ao lado! Mas não estás nada arrependido, pois não? Foi tão giro, tão giro, andar lá por Roma, entrar na casa do Cícero…

— Ó rapaz, tu estás a ouvir-me ou não?

— ‘Tou, ‘tou.

O teu pai é professor. Gosta muito de explicar e de que o ouçam atentamente.

Mas tu… continuas muito desiludido por causa da prova se ter evaporado ao atravessar a barreira do tempo… Talvez… talvez… Talvez que naquele livro mágico que tantas curiosidades já te satisfez… O dicionário!

— Ó pai, há algum dicionário em que venha isso que estás a dizer?

— Claro!

— Claro? — E lá estás tu, de novo, a remoer contigo mesmo como a vida é fácil para os adultos, que parecem já saber tudo…

— Deixas-me ver um?

— Ah, queres ver, não acreditas…

— Acredito, acredito, mas…

— Se não acreditas… Olha, agora não tenho tempo, que já estou atrasado, mas logo vou-te mostrar.

Boa! Está feito! Já envolveste o teu pai na tua investigação. É que tu, esse dicionário esquisito que explica a história das palavras (o teu pai chamou-lhe qualquer coisa terminada em mológico), tu não sabes… ainda não sabes consultar.

O dia lá foi passando com alguma ansiedade à mistura. E, ao fim da tarde, depois do teu pai chegar…

— Ora, cá está um dicionário etimológico… (Ah, é isso mesmo!) … que explica de onde vêm as palavras e como se vão elas transformando.

Abriu-o. Leu. Explicou. E tu fixaste com força o número da página em que vinha a palavra MINISTRO e o lugar na estante onde ficava o dicionário. Um detective tem de ter boa memória. Guardar na mente os dados necessários às suas investigações.

Daqui para a frente tudo foi fácil. Não demorou muito para que tu tivesses copiado do Dicionário a prova de que MINISTRO já foi escravo. Até custa a crer! É esse o melhor sabor da tua descoberta: o espanto dos teus amigos.

E, quando eles se recusam a acreditar, é só meter a mão ao bolso e: — Queres ver a prova?

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por Maria Almira Soares às 00:01

Quinta-feira, 17.03.16

MAIS UM PEDACINHO

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   Na verdade, o João, imaginariamente, estava mesmo a ver a tinta das palavras de um poema, ali soterrado, a dissolver-se na água da chuva e, depois, sugada pela raiz, a subir até às folhas de uma planta, alimentando-a e fazendo-a crescer. Como se as folhinhas verdes estivessem a beber um refresco de poesia. Que grande imaginação! Achava giro imaginar que uma erva pequenina bebia ou lia um poema. E que, um dia, essa ervinha se transformaria numa árvore. E que a árvore seria transformada em papel. E que, depois, nesse papel, se voltaria a imprimir o poema que ela, quando era pequenina, tinha absorvido.

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por Maria Almira Soares às 23:04

Quarta-feira, 16.03.16

NÃO SEI SE É VERDADE...

  

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     Não sei se é verdade, mas acho que os livros, quando passam assim muito tempo quietinhos nas estantes, começam a ter ideias. Até acredito que, uma noite, quando estava tudo às escuras na casa velha, um deles se pôs a pensar assim:

     – Estou eu aqui, tão perto deste aqui ao lado, e nunca falámos! Afinal, para que tenho eu dentro de mim a palavra «Olá!»? E ele? Para que tem ele a frase «Gostei de falar contigo.»? Se eu nunca lhe disse «Olá!»… E ele nunca me disse «Gostei de falar contigo.»…

       De facto, parece natural que um livro saiba que palavras tem dentro de si e fique a saber as dos outros, quando os ouve a serem lidos em voz alta, como fazia frequentemente o professor Sousa. Mas aquele ia longe demais. Além de ser um livro refilão, como vimos ao escutar os seus pensamentos, sonhava com coisas impossíveis. Toda a gente sabe que é impossível os livros falarem directamente uns com os outros. Só através dos leitores… Por isso, lá continuavam todos, capa com capa, ao lado uns dos outros, muito caladinhos, a não ser quando eram lidos.

     O João é que não podia sequer imaginar semelhante coisa, pois, por enquanto, nem sonhava que o professor Sousa, afinal, vivesse na companhia de tantos e tantos livros. Durante muito tempo, limitou-se a passar por ali, entretendo-se a olhar com curiosidade aquela casa que achava tão bonita.

     Mas, um dia em que a vida ia decorrendo como de costume, de repente, aconteceu uma coisa terrível.

     Houve um terramoto naquela cidade. Quase todos os edifícios da rua do João se mantiveram de pé com poucos ou nenhuns estragos. Tinham sido construídos para resistirem. Só a casa velha é que não. Ruiu. Desfez-se em caliça.

   Por sorte, no momento do terramoto, o professor Sousa tinha saído. Fora comprar o jornal. Mas os livros não vão comprar jornais e, por isso, ficaram esmagados. Eles, que tinham sido tão bonitos, agora destroçados, desfeitos, espreitavam por debaixo dos escombros.

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por Maria Almira Soares às 22:00

Sábado, 12.03.16

MEU QUERIDO LIVRiNHO!

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Por enquanto ainda só tem um livro mesmo seu. Não o larga. Umas vezes lê-o em voz alta, outras vezes só com os olhos e outras põe-se só a ver as figuras. Também gosta de andar de um lado para o outro com o seu livro na mão ou de ficar a olhar-lhe para a capa que é colorida e com desenhos muito bonitos.

Dentro deste livro, está escrita uma história de que ele gosta muito. Principalmente das páginas seis e sete, que são atravessadas pelo desenho de um barco e têm umas palavras que dizem assim:

— Adeus, adeus! Vou levar estes meninos para a ilha mais bela que existe no mundo.

O Luís, quando lê isto, sente-se a ir também naquele barco, a escorregar pela água macia pintada de azul e até imagina que vê a sua cara entre as dos meninos que estão debruçados do navio a dizer adeus. Às vezes, aponta para um menino do desenho que acha parecido consigo e diz:

— Este sou eu.

Ora acontece que, por gostar muito desta parte da história, o Luís deixa ficar o livro muito tempo aberto neste sítio. Abre-o tantas vezes aqui que, agora, quando pega nele e se prepara para o ler, mesmo antes de o começar a folhear, zás, é mesmo aí que ele se abre sozinho. Até parece que já percebeu que são estas as páginas preferidas do Luís. As páginas seis e sete é que já estão a ficar um bocadinho cansadas e com vontade de passarem algum tempo sossegadas, quietinhas uma sobre a outra a repousarem. Mas que hão de fazer? O trabalho de um livro é este: deixar as mãos das pessoas passarem as suas folhas, enquanto os olhos vão demorando o tempo que lhes apetece em cada uma delas.

Paciência! Parece que os livros têm mesmo de ser assim, muito pacientes, e deixarem-se levar pela vontade e pelo gosto dos seus leitores. Mas, às vezes, há casos em que a paciência tem limites, como costuma dizer a mãe do Luís quando ele faz tropelias demais. E, neste caso, o livro, coitado, está mesmo a começar a chegar ao limite da sua paciência. O Luís não o larga. Certamente porque só tem este e também porque gosta da novidade de já ser capaz de ler uma história sozinho, anda sempre a abri-lo e a fechá-lo, a lê-lo e a relê-lo. Ufa! E um dia:

— Isto é demais! Já não aguento mais!

Desabafa o livro, que tem vontade de variar. Quer experimentar outros leitores que tenham olhos, mãos, pensamentos, diferentes. Que se ponham a olhar demoradamente para outras páginas que também são lindas. Que leiam mais depressa ou mais devagar. Enfim, sente-se condenado às mãozinhas papudas, aos olhos muito abertos, à curiosidade nunca satisfeita deste menino que não o larga. E sonha que, se conseguir esconder-se e fugir da vista do Luís, talvez alguém diferente o encontre, pegue nele e se ponha a lê-lo...

 

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por Maria Almira Soares às 22:50

Sábado, 12.03.16

O VERDETE DA MEMÓRIA

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Parou, olhou em volta e apercebeu-se de que, à sua frente, se abria um cenário à primeira vista completamente desconhecido. Mas onde é que raio é que eu vim parar? Queres ver que, sem dar por isso, me meti por uma dessas estreitas transversais intermináveis… e vim desaguar aqui… mas aqui, onde? Aparentemente não sabia onde estava. Aparentemente não se lembrava de alguma vez ali ter estado. Não estava a conseguir articular aquele sítio com o resto da cidade. Eram vivendas antigas rodeadas de muros baixos, entranhados por um verdete viscoso escorrido de sebes desleixadas e com cancelas descaídas a rematar pedaços de terra vagamente ajardinados. Algumas das casas estavam claramente abandonadas, entaipadas e manchadas de graffiti. Movido pela curiosidade, em vez de dar meia volta sobre os passos perdidos e procurar o caminho do regresso, resolveu reduzir a passada para um modo mais tímido, exploratório, e entrar naquela atmosfera em que se misturava uma impressão de conforto antigo, deteriorado mas ainda pensável, com a ruína bem visível no presente. À medida que avançava, uma impressão de cerco incomodava-o. Simultaneamente, porém, a curiosidade crescia. Da estranheza inicial, começava a soltar-se a sensação de uma vaga lembrança: um cheiro antigo vindo dos buxos informes que talvez já tivessem sido sebes frescas e bem aparadas. Caminhava de olhos baixos, evitando fitar os raros passantes, madrugadores. Eram muito velhos, magros, curvados, deslocando-se devagar no silêncio húmido das ruas sinuosas como áleas de um jardim maltratado.

 

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por Maria Almira Soares às 22:07

Sexta-feira, 11.03.16

GARRETT

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   O povo antes queria as óperas do Judeu. — Tinha razão; mas queimaram-lho e o povo deixou queimar.

   Coitado do pobre povo!

   Com o dinheiro que ele suava para as óperas italianas, para castrados, para maestro e maestrinos, podia ter quatro teatros nacionais; e o Garção que lhe fizesse comédias que haviam de ser portuguesas deveras, porque o Garção era português às direitas.

   Tinham-lhe queimado o António José porque diz que não comia toucinho; mataram-lhe o Garção numa enxovia por escrever uma carta em inglês.

   E o povo deixou matar. Por isso ficou sem teatro. Não seja tolo.

   E eram duas calúnias atrozes ambas elas; o António José comia um prato de torresmos como qualquer cristão velho, e o Garção nunca escreveu tal carta em inglês. Com o primeiro foi vingança ignóbil de algum frade fanático; com o segundo foi mais ignóbil vingança ainda, a de um ministro que blasonava de filósofo!

   No reinado seguinte era pecado subirem mulheres à cena. Façam lá Zairas ou Ifigénias para representarem barbatolas!

 

Introdução a Um Auto de Gil Vicente

 

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por Maria Almira Soares às 17:42

Terça-feira, 08.03.16

Ai, páscoa florida, que dura ano inteiro!

carlton-alfred-smith-1853-1946-at-the-garden-gate_CARLTON ALFRED SMITH 

Os Treze Anos

 

Já tenho treze anos,

que os fiz por Janeiro:

Madrinha, casai-me

com Pedro Gaiteiro.

 

Já sou mulherzinha,

já trago sombreiro,

já bailo ao domingo

com as mais no terreiro.

 

Já não sou Anita,

como era primeiro;

sou a Senhora Ana,

que mora no outeiro.

 

Nos serões já canto,

nas feiras já feiro,

já não me dá beijos

qualquer passageiro.

 

Quando levo as patas,

e as deito ao ribeiro,

olho tudo à roda,

de cima do outeiro.

 

E só se não vejo

ninguém pelo arneiro,

me banho co'as patas

Ao pé do salgueiro.

 

Miro-me nas águas,

rostinho trigueiro,

que mata de amores

a muito vaqueiro.

 

Miro-me, olhos pretos

e um riso fagueiro,

que diz a cantiga

que são cativeiro.

 

Em tudo, madrinha,

já por derradeiro

me vejo mui outra

da que era primeiro.

 

O meu gibão largo,

de arminho e cordeiro,

já o dei à neta

do Brás cabaneiro,

 

dizendo-lhe: «Toma

gibão, domingueiro,

de ilhoses de prata,

de arminho e cordeiro.

 

A mim já me aperta,

e a ti te é lasseiro;

tu brincas co'as outras

e eu danço em terreiro».

 

Já sou mulherzinha,

já trago sombreiro,

já tenho treze anos,

que os fiz por Janeiro.

 

Já não sou Anita,

sou a Ana do outeiro;

Madrinha, casai-me

com Pedro Gaiteiro.

 

Não quero o sargento,

que é muito guerreiro,

de barbas mui feras

e olhar sobranceiro.

 

O mineiro é velho,

não quero o mineiro:

Mais valem treze anos

que todo o dinheiro.

 

Tão-pouco me agrado

do pobre moleiro,

que vive na azenha

como um prisioneiro.

 

Marido pretendo

de humor galhofeiro,

que viva por festas,

que brilhe em terreiro.

 

Que em ele assomando

co'o tamborileiro,

logo se alvorote

o lugar inteiro.

 

Que todos acorram

por vê-lo primeiro,

e todas perguntem

se ainda é solteiro.

 

E eu sempre com ele,

romeira e romeiro,

vivendo de bodas,

bailando ao pandeiro.

 

Ai, vida de gostos!

Ai, céu verdadeiro!

Ai, páscoa florida,

que dura ano inteiro!

 

Da parte, madrinha,

de Deus vos requeiro:

Casai-me hoje mesmo

com Pedro Gaiteiro.

 

António Feliciano de Castilho

 

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por Maria Almira Soares às 15:32

Segunda-feira, 07.03.16

A TALENTOSA SRA. HIGHSMITH OU A EPOPEIA DE UM RAPAZ «DESVAIRADAMENTE BEM EDUCADO»

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   Como se nada fosse, Tom é apanhado pela onda narrativa num qualquer bar de Nova Iorque. Como se não tivesse antes nem depois. E, contudo, por baixo desta displicente superfície, existem, vão revelar-se existentes, seivosas raízes. A enxurrada de informações há de crescer empurrada por um volante que acelera dentro do texto, dentro de nós que o lemos. Trata-se de um ser talentoso, diz-nos o título?! E que talentos serão esses, os do senhor Ripley, perguntamos nós? Pois serão muitos e acompanhados dos seus espinhos, dos seus perigos. Os riscos de ser talentoso; de possuir uma poderosa e fria inteligência matemática; de ser senhor de uma agudíssima perceção de si enquanto imagem, dos outros enquanto imagem; de ser um monstro de atenção, um ser contraído de atenção, vivendo como num filme, cuidando rigorosamente das ações e reações como objeto do olhar, do olhar-porta para apropriações mais profundas e mais perigosas. E não é que, em resposta mágica ao seu enorme talento, Mr. Ripley vai mesmo ser ‘contratado’ para uma ‘fita’? E não é que a vida, encarnada no senhor Herbert Greenleaf, lhe faz um casting bem sucedido para entrar num «conto de fadas»?! Oferenda? Ou armadilha? Veremos! Passaremos o resto do romance a ver...

   Todavia, esta aparente inocência ou, no mínimo, leviandade, tem os seus subterrâneos. E, nesses subterrâneos, que se passa? Há uma lagarta na podridão interior e imperscrutável da sedutora maçã: uma luta ínvia contra constrangimentos lógicos sentidos como impossíveis; um desejo insuportável de uma liberdade anormal, inaceitável. O desejo de ser sem ser. A compulsão de alimentar uma carência absoluta. Não é na polida superfície, mas nestes lugares de delírio, que começa a vida como encenação. Encenação em que qualquer adereço — um frasco, um anel, uma peça de roupa — adquire uma importância definitiva para manter à tona e em movimento, sem derrapagem, o rapaz desvairadamente bem educado que se contorce com elegância e gere com espantosa precisão as horas, os lugares, os trajetos, as pessoas e suas relações. O vigarista de alto coturno que usa a verdade como arma estratégica da mentira.

   O exercício de tão enorme talento há de ter um preço, há de comportar perigos, dificuldades. Quais são eles, esses perigos? Os riscos de um sempre possível erro de avaliação; os medos da perda de controlo, do acaso, do imprevisto, do destino; as dificuldades de manter altos níveis de perícia no jogo esgrímico das fugas, dos ataques, das defesas, dos delírios; os outros como coisa insuportável, odiosa; as flutuações, os desequilíbrios, a inexistência do terreno firme da verdade; a tontura existencial, a somatização das emoções, o confronto doloroso com o sentimento de falsidade, com o riso que descama o verniz da mentira; o sempre iminente fracasso, a solidão, o vazio, o nada, a frieza arrepiante dos necessários crimes.

Por entre imparáveis provas — provas de talento e provas de percurso — Tom Ripley vai cumprindo as estações do seu caminho:

Primeira estação: carência — inveja — forçada camaradagem — artificioso divertimento — confiança — influência — companheirismo — familiaridade.

Segunda estação: cumplicidade — identificação — imitação — incorporação — despersonalização — transpersonalização — transfiguração.

Terceira estação: ódio — crime — loucura — morte — renascimento.

   Da carência à reconstrução. Maléfica regeneração: Tom mata Dickie para o poder ser. Com êxito. E com que arte!

   Que mente, por trás de Tom, é artífice de tal arte maléfica?

   A talentosa senhora Highsmith, ao longo de toda a narração feita com uma técnica apuradíssima, nunca perde o tom. Nem o tom nem o Tom. Numa tonalidade narrativa de um rigor perverso, nunca nos deixa perder de vista o nosso herói (anti-herói) que talentosamente constrói. Thomas Ripley, ora suspenso sobre o abismo, ora instalado em patamares mais ou menos precários, vai escalando uma rede discursiva, em que é desenhado tão engenhosamente, que, nos seus nós e bifurcações genialmente tecidos, sacrilegamente nos lembra Vieira. E outro magnífico ainda... Se Pessoa não se tivesse metido em tantos trabalhos e fragmentado por tantas máscaras, poderia ter escrito uma ‘coisa’ destas: a epopeia da mentira, da falsidade, do fingimento, da manipulação, da duplicidade, da máscara. Um magnífico ensaio sobre a despersonalização.

   A nós leitores, Patricia Highsmith reserva-nos a experiência da tontura constante, da bancada de circo em que, espectadores de saltos mortais e equilíbrios na perigosa corda-bamba, assistimos com o coração aos pulos murmurando: Cai? Não cai? Falha? Não falha? ‘Obriga-nos’ a simpatizar com um ser moralmente indefensável. Com uma frieza arrepiante, expõe a anatomia de um criminoso psicopata como se ele estivesse apenas a tratar de coisas da vida. A perversidade narrativa de contar uma história terrível num tom inócuo, neutro, quase-burocrático, quase faz o leitor esquecer-se do real, fá-lo quase-acreditar que Tom é Dickie ou, pelo menos, quase-esquecer-se de que o não é. Induz no leitor a sensação de que tudo está a correr bem precisamente porque e quando tudo está a correr mal. Moralmente.

   Patricia Highsmith constrói com perfeição os enganos da comédia no palco da tragédia (será?). Estarão os deuses algures, escondidos, à espera do momento único e apropriado para agir? Ou estarão os deuses, os supremos perversos, apenas a divertir-se com os ingénuos desígnios morais dos humanos? A pergunta que, sem parar, começa a perseguir o leitor é: Tom Ripley vai ser apanhado? Ou não? Não interessa quem é o criminoso como acontece num policial normal, mas: vai haver castigo?

   E, depois de fechar o livro, a pergunta é: Que pensar deste desfecho?

 

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por Maria Almira Soares às 11:56


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