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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Como se nada fosse, Tom é apanhado pela onda narrativa num qualquer bar de Nova Iorque. Como se não tivesse antes nem depois. E, contudo, por baixo desta displicente superfície, existem, vão revelar-se existentes, seivosas raízes. A enxurrada de informações há de crescer empurrada por um volante que acelera dentro do texto, dentro de nós que o lemos. Trata-se de um ser talentoso, diz-nos o título?! E que talentos serão esses, os do senhor Ripley, perguntamos nós? Pois serão muitos e acompanhados dos seus espinhos, dos seus perigos. Os riscos de ser talentoso; de possuir uma poderosa e fria inteligência matemática; de ser senhor de uma agudíssima perceção de si enquanto imagem, dos outros enquanto imagem; de ser um monstro de atenção, um ser contraído de atenção, vivendo como num filme, cuidando rigorosamente das ações e reações como objeto do olhar, do olhar-porta para apropriações mais profundas e mais perigosas. E não é que, em resposta mágica ao seu enorme talento, Mr. Ripley vai mesmo ser ‘contratado’ para uma ‘fita’? E não é que a vida, encarnada no senhor Herbert Greenleaf, lhe faz um casting bem sucedido para entrar num «conto de fadas»?! Oferenda? Ou armadilha? Veremos! Passaremos o resto do romance a ver...
Todavia, esta aparente inocência ou, no mínimo, leviandade, tem os seus subterrâneos. E, nesses subterrâneos, que se passa? Há uma lagarta na podridão interior e imperscrutável da sedutora maçã: uma luta ínvia contra constrangimentos lógicos sentidos como impossíveis; um desejo insuportável de uma liberdade anormal, inaceitável. O desejo de ser sem ser. A compulsão de alimentar uma carência absoluta. Não é na polida superfície, mas nestes lugares de delírio, que começa a vida como encenação. Encenação em que qualquer adereço — um frasco, um anel, uma peça de roupa — adquire uma importância definitiva para manter à tona e em movimento, sem derrapagem, o rapaz desvairadamente bem educado que se contorce com elegância e gere com espantosa precisão as horas, os lugares, os trajetos, as pessoas e suas relações. O vigarista de alto coturno que usa a verdade como arma estratégica da mentira.
O exercício de tão enorme talento há de ter um preço, há de comportar perigos, dificuldades. Quais são eles, esses perigos? Os riscos de um sempre possível erro de avaliação; os medos da perda de controlo, do acaso, do imprevisto, do destino; as dificuldades de manter altos níveis de perícia no jogo esgrímico das fugas, dos ataques, das defesas, dos delírios; os outros como coisa insuportável, odiosa; as flutuações, os desequilíbrios, a inexistência do terreno firme da verdade; a tontura existencial, a somatização das emoções, o confronto doloroso com o sentimento de falsidade, com o riso que descama o verniz da mentira; o sempre iminente fracasso, a solidão, o vazio, o nada, a frieza arrepiante dos necessários crimes.
Por entre imparáveis provas — provas de talento e provas de percurso — Tom Ripley vai cumprindo as estações do seu caminho:
Primeira estação: carência — inveja — forçada camaradagem — artificioso divertimento — confiança — influência — companheirismo — familiaridade.
Segunda estação: cumplicidade — identificação — imitação — incorporação — despersonalização — transpersonalização — transfiguração.
Terceira estação: ódio — crime — loucura — morte — renascimento.
Da carência à reconstrução. Maléfica regeneração: Tom mata Dickie para o poder ser. Com êxito. E com que arte!
Que mente, por trás de Tom, é artífice de tal arte maléfica?
A talentosa senhora Highsmith, ao longo de toda a narração feita com uma técnica apuradíssima, nunca perde o tom. Nem o tom nem o Tom. Numa tonalidade narrativa de um rigor perverso, nunca nos deixa perder de vista o nosso herói (anti-herói) que talentosamente constrói. Thomas Ripley, ora suspenso sobre o abismo, ora instalado em patamares mais ou menos precários, vai escalando uma rede discursiva, em que é desenhado tão engenhosamente, que, nos seus nós e bifurcações genialmente tecidos, sacrilegamente nos lembra Vieira. E outro magnífico ainda... Se Pessoa não se tivesse metido em tantos trabalhos e fragmentado por tantas máscaras, poderia ter escrito uma ‘coisa’ destas: a epopeia da mentira, da falsidade, do fingimento, da manipulação, da duplicidade, da máscara. Um magnífico ensaio sobre a despersonalização.
A nós leitores, Patricia Highsmith reserva-nos a experiência da tontura constante, da bancada de circo em que, espectadores de saltos mortais e equilíbrios na perigosa corda-bamba, assistimos com o coração aos pulos murmurando: Cai? Não cai? Falha? Não falha? ‘Obriga-nos’ a simpatizar com um ser moralmente indefensável. Com uma frieza arrepiante, expõe a anatomia de um criminoso psicopata como se ele estivesse apenas a tratar de coisas da vida. A perversidade narrativa de contar uma história terrível num tom inócuo, neutro, quase-burocrático, quase faz o leitor esquecer-se do real, fá-lo quase-acreditar que Tom é Dickie ou, pelo menos, quase-esquecer-se de que o não é. Induz no leitor a sensação de que tudo está a correr bem precisamente porque e quando tudo está a correr mal. Moralmente.
Patricia Highsmith constrói com perfeição os enganos da comédia no palco da tragédia (será?). Estarão os deuses algures, escondidos, à espera do momento único e apropriado para agir? Ou estarão os deuses, os supremos perversos, apenas a divertir-se com os ingénuos desígnios morais dos humanos? A pergunta que, sem parar, começa a perseguir o leitor é: Tom Ripley vai ser apanhado? Ou não? Não interessa quem é o criminoso como acontece num policial normal, mas: vai haver castigo?
E, depois de fechar o livro, a pergunta é: Que pensar deste desfecho?
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