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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sábado, 12.03.16

MEU QUERIDO LIVRiNHO!

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Por enquanto ainda só tem um livro mesmo seu. Não o larga. Umas vezes lê-o em voz alta, outras vezes só com os olhos e outras põe-se só a ver as figuras. Também gosta de andar de um lado para o outro com o seu livro na mão ou de ficar a olhar-lhe para a capa que é colorida e com desenhos muito bonitos.

Dentro deste livro, está escrita uma história de que ele gosta muito. Principalmente das páginas seis e sete, que são atravessadas pelo desenho de um barco e têm umas palavras que dizem assim:

— Adeus, adeus! Vou levar estes meninos para a ilha mais bela que existe no mundo.

O Luís, quando lê isto, sente-se a ir também naquele barco, a escorregar pela água macia pintada de azul e até imagina que vê a sua cara entre as dos meninos que estão debruçados do navio a dizer adeus. Às vezes, aponta para um menino do desenho que acha parecido consigo e diz:

— Este sou eu.

Ora acontece que, por gostar muito desta parte da história, o Luís deixa ficar o livro muito tempo aberto neste sítio. Abre-o tantas vezes aqui que, agora, quando pega nele e se prepara para o ler, mesmo antes de o começar a folhear, zás, é mesmo aí que ele se abre sozinho. Até parece que já percebeu que são estas as páginas preferidas do Luís. As páginas seis e sete é que já estão a ficar um bocadinho cansadas e com vontade de passarem algum tempo sossegadas, quietinhas uma sobre a outra a repousarem. Mas que hão de fazer? O trabalho de um livro é este: deixar as mãos das pessoas passarem as suas folhas, enquanto os olhos vão demorando o tempo que lhes apetece em cada uma delas.

Paciência! Parece que os livros têm mesmo de ser assim, muito pacientes, e deixarem-se levar pela vontade e pelo gosto dos seus leitores. Mas, às vezes, há casos em que a paciência tem limites, como costuma dizer a mãe do Luís quando ele faz tropelias demais. E, neste caso, o livro, coitado, está mesmo a começar a chegar ao limite da sua paciência. O Luís não o larga. Certamente porque só tem este e também porque gosta da novidade de já ser capaz de ler uma história sozinho, anda sempre a abri-lo e a fechá-lo, a lê-lo e a relê-lo. Ufa! E um dia:

— Isto é demais! Já não aguento mais!

Desabafa o livro, que tem vontade de variar. Quer experimentar outros leitores que tenham olhos, mãos, pensamentos, diferentes. Que se ponham a olhar demoradamente para outras páginas que também são lindas. Que leiam mais depressa ou mais devagar. Enfim, sente-se condenado às mãozinhas papudas, aos olhos muito abertos, à curiosidade nunca satisfeita deste menino que não o larga. E sonha que, se conseguir esconder-se e fugir da vista do Luís, talvez alguém diferente o encontre, pegue nele e se ponha a lê-lo...

 

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por Maria Almira Soares às 22:50

Sábado, 12.03.16

O VERDETE DA MEMÓRIA

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Parou, olhou em volta e apercebeu-se de que, à sua frente, se abria um cenário à primeira vista completamente desconhecido. Mas onde é que raio é que eu vim parar? Queres ver que, sem dar por isso, me meti por uma dessas estreitas transversais intermináveis… e vim desaguar aqui… mas aqui, onde? Aparentemente não sabia onde estava. Aparentemente não se lembrava de alguma vez ali ter estado. Não estava a conseguir articular aquele sítio com o resto da cidade. Eram vivendas antigas rodeadas de muros baixos, entranhados por um verdete viscoso escorrido de sebes desleixadas e com cancelas descaídas a rematar pedaços de terra vagamente ajardinados. Algumas das casas estavam claramente abandonadas, entaipadas e manchadas de graffiti. Movido pela curiosidade, em vez de dar meia volta sobre os passos perdidos e procurar o caminho do regresso, resolveu reduzir a passada para um modo mais tímido, exploratório, e entrar naquela atmosfera em que se misturava uma impressão de conforto antigo, deteriorado mas ainda pensável, com a ruína bem visível no presente. À medida que avançava, uma impressão de cerco incomodava-o. Simultaneamente, porém, a curiosidade crescia. Da estranheza inicial, começava a soltar-se a sensação de uma vaga lembrança: um cheiro antigo vindo dos buxos informes que talvez já tivessem sido sebes frescas e bem aparadas. Caminhava de olhos baixos, evitando fitar os raros passantes, madrugadores. Eram muito velhos, magros, curvados, deslocando-se devagar no silêncio húmido das ruas sinuosas como áleas de um jardim maltratado.

 

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por Maria Almira Soares às 22:07


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