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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Olá, Detective das Palavras!
Hoje vais encarregar-te de um caso que nem parece ser dos mais difíceis: o caso da palavra MINISTRO. À partida, ninguém parece desconhecer o significado desta palavra. Toda a gente sabe a quem a pode aplicar e, por isso, de um modo geral, ninguém se engana no seu uso.
E, muito menos tu, o experiente Detective das Palavras! Tenho a certeza de que sabes muito bem o que é um ministro. Porém, se estiveres disposto a fazer uma viagem ao passado, que grande surpresa não terás! Duvidas? Estás curioso? Queres saber de que surpresa se trata? Então, anda daí. Vá, confia em mim. Entra já, sem demora, nesta fantástica máquina do tempo! Está programada para te levar até à Roma antiga, a época em que tiveram origem muitas coisas que hoje usamos. Não tenhas medo. Eu sou o génio da Língua Portuguesa e, daqui, do século xxi em que me encontro, manter-me-ei sempre em contacto contigo.
Um, dois, tr… Não, espera! Não partas ainda. Leva contigo esta mágica folhinha de papel. Guarda-a bem. Não a percas. O que é?! Pois é um bocadinho de um desses livros que nos revelam os segredos das línguas que falamos: um dicionário.
Guardaste-a bem? Agora, vai!
Depois de todas as voltas e cambalhotas em que vais às arrecuas pelos séculos fora, balatrum, balatrum, balatrum, balatrum, quando parares em Roma, no século i a. C., vais ver que, para além das tonturas de tanta reviravolta, alguma coisa mais terá acontecido. O quê? Enquanto transpões a barreira do tempo, o significado da palavra ministro, que levas aí escrito nesse pedaço de papel, vai apagar-se, desaparecer. O tempo roubará o que o tempo deu. Então, entre todas as perguntas que decerto irás fazer a ti mesmo, perante essa realidade longínqua e tão diferente da tua, haverá uma a que não escaparás: — Porque será que o significado que eu trazia do século xxi já não serve? Qual terá sido o sentido da palavra MINISTRO nesta época tão antiga?
Talvez te ocorra a ideia de ir ver ao dicionário… Mas, aí, nesse tempo, tal ideia de nada te valerá, porque… porque ainda não havia dicionários como os que viemos a conhecer mais tarde. Que fazer? Ora, sair da cápsula em que viajaste e explorar esse mundo dos antigos Romanos, que tão modernos foram na sua vez.
E é isso mesmo que já estás a fazer. Já te vejo a caminho do bulício dessa cidade inigualável. Andas pelas ruas, pelas praças, olhas as fachadas, as togas e as túnicas das pessoas apressadas, tão apressadas que nem parecem dar por ti, escondido atrás de uma coluna… Não sabes bem onde estás? Não sabes, mas eu sopro-te ao ouvido:
— Essa, atrás da qual te escondes, é uma coluna do templo de Júpiter Capitolino.
— Ah! — dizes baixinho. E vais pensando: — Os livros e os filmes não me enganaram. É tudo mesmo muito parecido com o que eu li e vi no cinema e na televisão. E estranhas a língua em que as pessoas falam: — Que esquisita! Uma ou outra palavra, porém, parece-te familiar. Parecida com o português? Pois claro! E recordas que aprendeste que o português descende da língua dos Romanos, o latim! Ah! É isso: os filhos normalmente são parecidos com os pais. Enquanto assim pensas e te espantas com a multidão que se agita nas ruas de Roma, uma voz mais alta salta-te aos ouvidos chamando insistentemente:
— Salve, Marce Tuli! Marce Tuli! Cicero!
É alguém que se aproxima de um homem magro, pensativo, de cara carrancuda, que acaba de sair da Cúria, onde esteve reunido com o Senado, e atravessa o Forum de Augusto. E outra vez: — Salve, Cicero!
— Marco Túlio Cícero?! Cícero?! Será mesmo o famoso escritor de que nunca ouviste falar? — exclama a minha voz espantada que, em surdina, chega até aos teus ouvidos.
Mesmo sem o conheceres, pelo sim pelo não, quando termina a rápida conversa entre os dois romanos e Cícero se instala na sua liteira, resolves segui-lo. A tua intuição de detective nunca falha. Ofegante, mas sem dares nas vistas, como qualquer detective experiente que se preze, lá consegues ir acompanhando o passo acelerado dos escravos que carregam Cícero em direcção à sua casa no Monte Palatino. Uma vez aí chegados, arranjas maneira de ludibriar o porteiro e entras também. Os teus olhos atentos e curiosos, admiram as novidades de uma casa romana, com o seu vestíbulo, o seu átrio, o seu jardim interior, os seus tanques, os seus pórticos, os seus mosaicos… De momento perdeste Cícero de vista, mas eis que, de novo, através de uma janela, o vês já instalado dentro de casa.
Escondido atrás de uma sebe bem tratada, assistes, fascinado, à conversa do escritor com o seu querido escravo Tiro, que o acompanha na arte da escrita. Cícero vai escrever. Irás vê-lo a escrever. Que coisa fantástica para contares de volta ao século xxi: — Eu vi-o a escrever o… Oh! Mas não sabes o título do que escreve. Aliás, não sabes nenhum título de nenhuma das suas obras. Que pena! Mas eu digo-te: Cícero está a escrever um livro chamado Dos Deveres que foi muito famoso, mas agora anda muito esquecido. Escreve persistente e concentradamente e, de repente… de repente pára. Suspira, demora-se a olhar as fontes do seu belo jardim, pega no rolo de papiro e lê alto com a sua boa voz de orador treinado:
Nada percebes desta bela tirada, senão que a coisa tem a ver com um ministro.
— Ministro!? E não se trata de uma coincidência. Eu, é que, quando te preparei esta viagem, cuidei bem de todos os pormenores. — Ministro?! Olá! O teu faro de detective põe-se imediatamente em alerta: — Que se passará com os ministros aqui, na Roma Antiga, para que o Cícero fale deles com uma voz tão inflamada? E é precisamente quando estás a debater-te com a tua insaciável curiosidade que começas a sentir uma coisa estranhíssima: o pedacinho de papel, que te dei à partida e tu guardaste no bolso, está a mexer-se sozinho. Não pára de estremecer. Como um ovo quando está quase a partir-se para que nasça um passarinho. Tira-lo do bolso. Mas não… não é um passarinho a nascer! São letras! Magicamente, no espaço que, durante a viagem, tinha ficado em branco, estão agora novas palavras, as palavras de Cícero, que tu tentas ler. Primeiro, lês mal e sem nada perceberes do que lá está escrito em latim. Mas, logo a seguir, os meus poderes de Génio da Língua mudam o texto para português:
Espantas-te: — O quê?! Com a tua prática de decifrador de códigos secretos, mesmo sem saber latim, tu percebes que, na passagem para português, em vez de ministrum, ficou escrito escravo. E continuas a espantar-te: — O quê?! Mas que grande bronca! Os ministros, no tempo dos Romanos, eram pessoas de classe inferior, escravos?!
Eu tinha-te avisado de que a surpresa iria ser grande. Aposto que nenhum dos teus amigos sabe disto! Estás tão contente com a posse deste segredo, que nem pensas em mais nada. De repente, tudo o resto deixa de ter interesse. Depois de rapidamente fazeres regressar a folha mágica ao seu lugar no bolso, ainda lanças um último olhar a Cícero e, discretamente, encaminhas-te para o local onde deixaste a cápsula do tempo escondida no meio de uns arbustos. Verificas se está tudo em ordem. Entras e, num instante, lá estás tu de novo às cambalhotas, agora em sentido contrário: tralabum, tralabum, tralabum, tralabum … Zás, já está!
Cá estás tu outra vez. Portugal, século xxi! E cheio de entusiasmo com a grande descoberta que trazes no bolso! De facto, o teu entusiasmo é grande, mas… não dura muito tempo. Depois de sacudires o corpo para repores o equilíbrio, a tua mão procura rapidamente a folhinha mágica e… Deve ter sido por causa da trepidação da máquina que não deste conta, mas certamente que, durante o regresso, o papel deve ter estremecido de novo, porque… olhas, olhas, e nada… — Onde estão aquelas latinices que o Cícero escreveu lá no século i a. C. e a sua tradução para português? Para teu espanto, o que de novo vês escrito no papel é o significado do teu dicionário de rapaz do século xxi. Bah! Perdida a prova, ninguém acreditará em ti! Missão falhada! Que desgosto!
— Alto aí, que tu não és rapaz para desanimar! — Bem o sabemos. Por enquanto, ainda estás um pouco azoado, tomado pela lembrança da aventura extraordinária que viveste. Vês-te, ainda, lá em casa de Cícero, ouvindo-o a ler alto o que acabara de escrever. Tens bom ouvido. E boa memória. E é, então, que um pedacinho de frase, como um verso de cantiga, te vem à cabeça e, depois, à boca: … sed ministrum et praebitorem… Repetes para fixares: … sed ministrum et praebitorem… Alô! É uma pista! Que fazer com ela? Que fazer com ela, se na tua terra já quase ninguém sabe latim? Que desespero! Um bom detective nunca desespera. De repente, tens uma ideia. Ou antes, és atacado por uma pergunta: — Ainda haverá dicionários de latim?
Resolves guardar a pergunta para a mesa do pequeno-almoço. Decisão acertada! Enquanto bebes o leite e comes o pão, vais perguntando pela existência de dicionários de latim e pondo as tuas dúvidas sobre a estranha mudança de significado da palavra ministro. E é o teu pai quem acaba por te elucidar muito, mas muito mais do que poderias imaginar. Às vezes, nem calculamos que coisas os pais são capazes de saber. Pois não é que o teu pai, palavra-puxa-palavra, desatou a falar, a falar, e nunca mais se calava. Até deixou arrefecer o café!
— Ah! Não sabias? Pois claro que não sabias…
Estava tão entusiasmado a explicar, que nem se lembrou de se espantar com o estranho caso de te ouvir a citar Cícero. Cícero!!!! E explicou, explicou que… — Na origem, a palavra ministro estava relacionada com minus que era menos em latim. E, por isso, ficava bem aos que, naquela sociedade, tinham menos importância: os escravos.
E até acrescentou que… — Ao contrário de ministro, mestre vinha de uma palavra relacionada com mais, que em latim era magis. Em latim o mestre era o magister.
E terminou, dizendo: — As palavras dão muitas voltas, meu menino. No século xiv, a palavra ministro ainda significava, em português, servidor, mas aplicava-se a quem servia os deuses, o sacerdote. Ora, como, nesse tempo, os sacerdotes eram poderosos, foi aí que se deu a mudança: hoje, o ministro é o que tem poder de decisão! De escravo a senhor, já viste?!
Tu, enquanto ouves a confirmação da tua secreta descoberta, vais pensando: — É sempre assim. Fico sempre espantado com as coisas que, afinal, os mais velhos já sabiam. E ainda pensas mais: — Tanta cambalhota dentro da cápsula do tempo e, afinal, a resposta estava mesmo aqui ao lado! Mas não estás nada arrependido, pois não? Foi tão giro, tão giro, andar lá por Roma, entrar na casa do Cícero…
— Ó rapaz, tu estás a ouvir-me ou não?
— ‘Tou, ‘tou.
O teu pai é professor. Gosta muito de explicar e de que o ouçam atentamente.
Mas tu… continuas muito desiludido por causa da prova se ter evaporado ao atravessar a barreira do tempo… Talvez… talvez… Talvez que naquele livro mágico que tantas curiosidades já te satisfez… O dicionário!
— Ó pai, há algum dicionário em que venha isso que estás a dizer?
— Claro!
— Claro? — E lá estás tu, de novo, a remoer contigo mesmo como a vida é fácil para os adultos, que parecem já saber tudo…
— Deixas-me ver um?
— Ah, queres ver, não acreditas…
— Acredito, acredito, mas…
— Se não acreditas… Olha, agora não tenho tempo, que já estou atrasado, mas logo vou-te mostrar.
Boa! Está feito! Já envolveste o teu pai na tua investigação. É que tu, esse dicionário esquisito que explica a história das palavras (o teu pai chamou-lhe qualquer coisa terminada em mológico), tu não sabes… ainda não sabes consultar.
O dia lá foi passando com alguma ansiedade à mistura. E, ao fim da tarde, depois do teu pai chegar…
— Ora, cá está um dicionário etimológico… (Ah, é isso mesmo!) … que explica de onde vêm as palavras e como se vão elas transformando.
Abriu-o. Leu. Explicou. E tu fixaste com força o número da página em que vinha a palavra MINISTRO e o lugar na estante onde ficava o dicionário. Um detective tem de ter boa memória. Guardar na mente os dados necessários às suas investigações.
Daqui para a frente tudo foi fácil. Não demorou muito para que tu tivesses copiado do Dicionário a prova de que MINISTRO já foi escravo. Até custa a crer! É esse o melhor sabor da tua descoberta: o espanto dos teus amigos.
E, quando eles se recusam a acreditar, é só meter a mão ao bolso e: — Queres ver a prova?
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