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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sábado, 02.04.16

NÃO HÁ TANTOS HOMENS RICOS COMO MULHERES BONITAS QUE OS MEREÇAM (Breve nota de leitura)

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Pode a leitura ser um romance?

Pode fechar-se o arco leitura-escrita, escrevendo um romance que é uma leitura? Uma leitura que é um romance? Podem as histórias e as personagens lidas erguerem-se da lisura do papel, trocando lugares nos jogos de uma nova escrita?

Se os nomes desta recomposição forem Jane Austen e Helena Vasconcelos, está provado que sim.

Vejamos:

Estava, austenianamente, dito que «Não há tantos homens ricos como mulheres bonitas que os mereçam»; Helena Vasconcelos mantém os homens e as mulheres e rediz a dicotomia riqueza/boniteza, refundida, agora, no caldeirão de valores e de interesses híbridos, ambíguos, voláteis, que habitam “gente” com nome de Ana Teresa, Tiago, Rebeca, Mark, José, Paula, Marianne, Eduardo...

É, a ousadia desta ideia-criativa, a mola que me dispara para a leitura e me mantém na tensão adequada à manutenção da leitura.

Por estes dias, extensos dias, o tema que mais me interessa e mais me ocupa é o do tempo. Ocupada pelo tempo, servirá este facto de desculpa para que tenha lido o romance de Helena Vasconcelos como um romance sobre o tempo, sobre a vertigem do tempo, a vertigem tremenda de atravessar um rio enquanto se vai construindo a ponte. Cada passo, cada pé colocado, é uma pedra da ponte que não há, que não havia. O velho, o velhíssimo, o novo, rio do tempo, já se vê. A sabedoria de que o tempo não é uma coleção de sepulturas, literárias ou não; não é uma coleção de livros mortos.

O romance de Helena Vasconcelos ergue-se sobre uma suave, risonha-e-triste, pedra de ironia que, desde logo, o título desenterra: trazer Jane Austen para os palcos literários do século XXI. O tempo, a suprema ironia.

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por Maria Almira Soares às 16:39

Sábado, 02.04.16

NO DIA DO LIVRO INFANTIL, UM PEDAÇO DE ROMANCE COM CRIANÇA E LIVROS DENTRO

 

biblioteca-din-Alexandria-acervo.jpg

 

   

 

   José de Sousa Vicente via o neto muito pouco. E, de cada vez, primeiro vinha um sentimento estranho de pudor ou retração e, depois, vencida a barreira, o encontro com aquela belíssima e vivíssima criança deixava-lhe um rasto de como que responsabilidade pela existência do tempo que mata. Que cria, que faz renascer, enquanto mata. Absurdamente, sentia que se tivesse ficado parado num ponto recuado da sua vida, aquela criança não existiria. Nos gestos, nos modos, o Nuno não era nada parecido com ele, mas, transpondo todas essas diferenças, ao observá-lo, reconhecia-se na alma irrequieta que o habitava.

       Como previra, encontrou o Mendes no café e combinaram que, à tarde, apareceria lá por casa com o Nuno. Entretanto, iria afadigar-se com pequenos e variados afazeres que tinha atrasados, porque era esse um modo eficaz de bloquear a ansiedade, um conhecido e praticado modo de artificioso esquecimento que lhe permitiria surpreender-se com a chegada do neto, como de facto aconteceu.

 

— Já?

— Já!? Tínhamos combinado a esta hora, avô.

— Pois foi. Eu é que me tinha distraído. Estás grande!

— …

E, depois de um tempo de perguntas talvez supérfluas e respostas a condizer:

— Vou mostrar-te o Mendes, vais gostar do Mendes.

O Nuno estranhava sempre Portugal e aquele: «mostrar o Mendes»: Seria cão? Seria gato?

O filósofo riu-se:

— Vamos a casa do Mendes, um amigo meu…

— Ah!

— … e, depois, se calhar, vamos até ao café, conversar. Gostas de conversar?

— Gosto. E gosto de ouvir conversar.

— Ótimo.

   Segundo rezava a filha, o Nuno era inteligentíssimo e, às vezes, saía ao avô.

— Ó avô, tu és fi-ló-so-fo?

Articulava muito bem e vagarosamente as palavras difíceis. As outras, dizia-as a correr.

— Sou.

— E o Mendes?

— O Mendes é linguista.

— Lin-gu-is-ta!?

— Sim, gosta de estudar as palavras.

— E tu gostas de estudar o quê?

José Vicente não estava mesmo nada descontente com este diálogo. Iam a pé a casa do Mendes que não morava muito longe e o avô do Nuno agarrava-se à ideia de que ele haveria de ser bom a entretê-lo. Parece que as crianças gostam de se rir… A verdade é que lhe estava a parecer que aquela criança se tornara um menino muito sério. Iam andando e conversando. Falavam de livros. O Nuno, quando chegara, trazia um livro, um desses álbuns de divulgação histórica para crianças sobre a biblioteca de Alexandria.

— Aquele livro que tu trazias…

— O da biblioteca de Alexandria?

— Sim, tu…

— Outro dia, vi na net coisas fantásticas sobre a biblioteca de Alexandria.

— Ah, na net…

— Tu não gostas da internet?

— Sim, gosto, mas…

   Gostaria de lhe contar, com pormenores saborosos que conhecia, a história daquela famosa biblioteca… mas ele já sabia tudo. Tudo talvez não soubesse, não sabia com certeza, mas aquelas coisas mais apetecíveis: nomes, números, factos empolgantes, sabia-os e parecia ter gosto em conhecê-los.

— … Então, tu não sabes o que é um filósofo?

— Pois não.

— É alguém que gosta muito de saber. E está-me a parecer que tu…

— Que eu também sou filósofo? Ó avô, há mais filósofos como tu?

— Há, claro que há, e já há muito, muito tempo. Olha, no tempo da biblioteca de Alexandria, já havia filósofos. E muito antes, até.

— Não sei o nome de nenhum filósofo, sem ser o teu.

— Sabes nomes de quê?

— De pintores, de atores, de jogadores de futebol, de cientistas, de músicos… Vá lá, diz lá o nome de um filósofo.

— Olha, por exemplo, Platão.

— Platão! Que nome tão esquisito!

— Era grego.

— Grego?!

— Sim e, na verdade, este nem era bem o nome dele.

— Então?

— Era uma alcunha.

— Alcunha!?

— Tu sabes uma coisa, Nuno, quando eu era novo, um pouco mais velho do que tu, puseram-me a alcunha de Platão.

— Ah, nickname.

— Isso. Esse filósofo grego chamava-se Arístocles, mas como tinha os ombros largos, puseram-lhe a alcunha de Platão. E, a mim, quando eu andava no liceu, os meus amigos achavam que eu sabia muito de Filosofia e puseram-me a alcunha de Platão.

— O que é liceu?

— Liceu é escola, mas já não se usa.

— Mas, ó avô, tu não tens os ombros largos…

— Pois não. A palavra era a mesma, mas já não queria dizer a mesma coisa.

— Então, não era a mesma.

   Tinham chegado a casa do Mendes. Entraram. O Nuno olhava o Mendes com toda a curiosidade do mundo. Os adultos lá foram dizendo um ao outro o que tinham a dizer, enquanto os olhos da criança faziam o reconhecimento do lugar.

— Ó Mendes, tu não tens computador?

— Tenho, até tenho dois.

— Tantos livros! Parece a biblioteca de Alexandria. — e riu-se.

Lá deixaram andar o Nuno por ali a circular no mistério de uma casa nova, desconhecida. Na casa do Mendes, a paisagem era aparentemente muito monótona: livros, livros, livros.

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por Maria Almira Soares às 14:43


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