Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
A LERDOCELER já ultrapassou a meia centena de livros lidos. Eis os livros cuja leitura entre nós partilhámos:
A Balada da Praia dos Cães de José Cardoso Pires
A Cidade de Ulisses de Teolinda Gersão
A Língua Posta a Salvo de Elias Canetti
As Intermitências da Morte de José Saramago
As Velas Ardem até ao Fim de Sandor Marai
As Vinhas da Ira de John Steinbeck
Astronomia de Mário Cláudio
Conversa na Catedral de Mario Vargas Llosa
Danúbio de Claudio Magris
Deixem passar o homem invisível de Rui Cardoso Martins
Errata de George Steiner
Levantado do Chão de José Saramago
Lolita de Vladimir Nabokov
Myra de Maria Velho da Costa
Natália de Helder Macedo
Némesis de Philip Roth
No Castelo do Barba Azul de George Steiner
Num País Livre de V. S. Naipaul
O Caçador de Tesouros de Le Clezio
O Cemitério de Pianos de José luís Peixoto
O Cemitério de Praga de Umberto Eco
O Coração das Trevas de Joseph Conrad
O Esplendor de Portugal de António Lobo Antunes
O Falcão de Malta de Dashiell Hammett
O Fim do Homem Soviético de Svetlana Alexsevitch
O Homem em Queda de Don DeLillo
O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa
O Livreiro de Cabul de Asne Seierstad
O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa-Bernardo Soares
O Mundo de Ontem de Stefan Zweig
O Retorno de Dulce Maria Cardoso
O Sentido do Fim de Julian Barnes
O Sonho do Celta de Mario Vargas Llosa
O Sonho Mais Doce de Doris Lessing
O Talentoso Mr. Ripley de Patricia Highsmith
O Túnel dos Pombos de John le Carré
O Vendedor de Passados de José Eduardo Agualusa
Os Teclados de Teolinda Gersão
Outrora Agora de Augusto Abelaira
Partes de África de Helder Macedo
Poemas de Luís Quintais
Por Ti de Ian McEwan
Portugal Amordaçado de Mário Soares
Portugal, Hoje – O medo de Existir de José Gil
Se Isto é um Homem de Primo Levi
Se Numa Tarde de Inverno um Viajante de Italo Calvino
Sinais de Fogo de Jorge de Sena
Sôbolos rios que vão de António Lobo Antunes
Um traidor dos nossos de John Le Carré
Uma História de Amor e Trevas de Amos Oz
Uma Viagem à Índia de Gonçalo M. Tavares
Viagem a Portugal de José Saramago
Viagem ao Fim da Noite de Louis-Ferdinand Céline
Ler memórias, biografias, depoimentos, histórias de vida, é ler a ‘verdade’ ou o que, da verdade, conveio a um certo momento de escrita? A «memória é uma armadilha» ou como diz Banville:
«Imagens do passado longínquo amontoam-se na minha cabeça e, metade do tempo, mal distingo as memórias das invenções. Não que haja grande diferença entre elas — se é que há realmente alguma diferença. Há quem diga que, sem nos darmos conta, inventamos tudo à medida que avançamos, que estamos sempre a enfeitar e a embelezar, e eu sinto-me inclinado a concordar, pois a Senhora Dona Memória é uma grande e subtil fingidora.»
In Luz Antiga de John Banville
Talvez por isso mesmo, por causa dessa ambiguidade, ler memórias, biografias, depoimentos, histórias de vida, é tão interessante, sobretudo quando vêm adstritos a personalidades e/ou épocas interessantes, notáveis.
No próximo ciclo de leituras, na LERDOCELER, vamos ler e debater uma autobiografia (encoberta?), memórias, depoimentos, que nos trazem tempos e vivências importantes que, de uma maneira ou outra, partilhámos e informações que complementam as nossas vivências e conhecimentos. Neste jogo de luzes e sombras terá um lugar reflexivo uma ‘pura’ ficção (haverá puras ficções?) de John Banville, Luz Antiga. A luz da memória? Mas a primeira leitura será a de
Ficcionar é escolher e compor.
«Facebook», eis a grande ficção! A ficção fácil.
As ‘massas’ conquistaram o seu lugar ‘literário’, onde tanto escrevem como leem, esperam ser lidos como esperam ser escritos; onde jogam real e invenção; onde a palavra é súbdita da imagem; onde marca, fuga e espera são entretenimento e emoção; onde a seriedade, tímida, desce as pálpebras no salão animado de danças e contradanças.
Brincar de escritor, como diria alguém do Brasil, prova ser um grande jogo social.
A primeira coisa que se lê é o título. A primeira coisa que fica da leitura é o título. No caso particular deste livro, ficamos a saber, desde o título, que aqui há «falcão» e que a referida ave é de Malta. Poderemos, até, se pertencermos a uma certa estirpe de leitores, fazer alguma pesquisa (enciclopédia? google? conforme o lugar e o tempo em que estivermos a ler) a propósito da relação entre esta ave e a ilha de Malta, antes de começarmos a leitura e ficarmos a saber o significado histórico desta conjugação de palavras através do liame prepositivo de. E poderemos, até, pôr-nos a pensar: — Por que razão desenterrar este episódio histórico/cultural/mítico, num policial? E poderemos, até, pôr-nos a pôr hipóteses (ler é pôr hipóteses sucessivas e articuladas) sobre a época da ação do romance que nos preparamos para ler. Se assim for, ficará, então, o leitor, desde o título, na posse de alguns elementos relacionados com o cerne da história que vai ler.
Seja como for, o que ficará, para além de dúvidas e certezas, é a indicação titular de que, aqui, haverá falcão. E saberemos disso muito antes do detetive que, esse, apesar da sua função e do seu estatuto, só o saberá lá para a página 154 de um total de 274. Até lá, mexe-se sem saber bem o que procura. Ora, mas a verdade é que é característica interessante deste detetive a capacidade de se enredar numa teia que, de facto, só deslinda totalmente nas últimas páginas. Porque não há de ele, então, só saber da existência do falcão a páginas 154? A diferença é que, tirante o caso do título, o detective guia as nossas antecipações, vai à frente, é ele que semeia as pedrinhas que virtuosamente nos orientam para o caminho do desfecho. No caso do título, porém, estamos ironicamente em vantagem: Sam Spade nunca leu este livro.
Interessante jogo! Gesto tático? Estraga-leituras? Talvez ardil, porque, afinal, o ouro era chumbo, o falcão não era o FALCÃO. Em qualquer dos casos, não será de desprezar a suposição de que o leitor vá sendo atormentado por uma pergunta: — Mas quando, raio, aparecerá o tal falcão? Tantas páginas lidas, e nada de falcão? Mesmo sabendo que, nisto de policiais, durante a leitura prognósticos, muitos, mas revelações, revelações, só mesmo no fim. O policial ou é um círculo perfeito ou não é policial.
A notoriedade do Falcão de Malta faz dele uma quase-citação, um quase-dito tradicional. Donde lhe adveio esta notoriedade? Do poder da memória visual de cenas de filmes, de atores, de grafismos e imagens que se lhe colou? Da reiterada edição em formatos de leitura popular, descartável, em coleções de fácil digestão, em que os livros são números que aceleradamente se atropelam numa renomada série, cujo renome alimenta os títulos singulares e, reciprocamente, se alimenta da fama sobretudo de alguns deles? Do efeito psicológico do livro-episódio de uma coleção-série (Li a Vampiro toda. Li mais um da Vampiro. É fantástico, é da Vampiro.) A notoriedade repousa sobretudo no que mantém o livro à tona do tempo: a leitura real, popular, de um livro aceito, numa coleção aceita.
E como se ascende da notoriedade presente na fala comum, ao lugar único e venerado que é condição de um clássico? Que razões fazem um livro erguer-se e raiar como paradigma, acima do horizonte sintagmático de uma classe de leitura?
O Falcão de Malta é um arquétipo da literatura policial, porque é um genuíno espécime de que brotaram inúmeros avatares. É uma fonte. Um primeiro. O Falcão de Malta retrata um imaginário nostalgicamente perdido. O Falcão de Malta é um expoente de mestria narrativa. O Falcão de Malta conta uma história fértil em comportamentos, situações, personagens humanamente significativos. Tem a simplicidade, a limpidez, o antibarroquismo, próprios das gemas indiscutíveis. Metaforicamente, tornou-se num falcão de malta da leitura cujos rasto e fama todos procuram, no fito de se tornarem mais ‘ricos’ se o tiverem, se o lerem. Adentro das perdas do tempo, é um vencedor, um objeto de culto. A sua imagem mental/memória transmite-se-nos numa geometria de referências inapagáveis: Hammett, Vampiro, Bogart...
A condição de clássico de um livro é forjada pelo saudade da sua leitura, pela projeção da sua leitura na vida, no desejo, no discurso. Um clássico não é, quase nunca é, uma leitura muito comum; porém, é uma referência comum, um reconhecimento. Pode até limitar-se a ser o dizer de um título sem leitura por trás, mas é certamente, mesmo se vã, uma pertença.
O ritmo narrativo certo, sem perdas, sem atrasos, sem desleixos. A pureza narrativa impulsionada pela ação das personagens que os acontecimentos movem no tabuleiro do seu jogo. A pureza e a inteligência do xadrez. Entre a voz de comando inicial «Manda-a entrar!» e a voz de comando final «Bem, manda-a entrar!», há uma aritmética certa. O acrescento deste «Bem,» é a soma, um tanto cansada, de todas as parcelas de uma intriga que foi solucionada. A conta, o contar, o conto, estão certíssimos!
A complexa máquina de personagens, ações, reações, acontecimentos, leva, ao volante, Sam Spade, o detetive. Criação genuína e ímpar, Sam Spade. Sem uma fenda, uma arranhadela, uma imperfeição de fabrico. Avesso ao sentimentalismo explícito, durão, entrincheirado na sua ética de detective privado, fiel ao cliente, perdão, ao dinheiro do cliente, sempre em tensão com o institucionalismo e a legalismo da ética policial, à procura de uma eficácia em que os fins justificam os meios, sarcástico, cínico, sedutor, de físico apetecivelmente enquadrado pela elegância dos adereços, misógino plantado no corte radical entre masculino e feminino, paternalista com as mulheres, superior por preconceito e antecipação de vitórias, implacável protetor desapiedado, um bom traste, numa palavra, perdão, em duas: Sam Spade.
A arte exímia de representar a tensão recíproca gerada entre os elementos de um grupo num ambiente fechado e ameaçado: a grande cena de conjunto entre Spade, Gutman, Wilmer, Cairo, O’Shaughnessy é — através da interpretação/leitura mútua dos olhares e expressões que antecipam ações que irão ter consequências — obra de mestre, em qualquer género literário.
O gosto e a perícia do visual, do pormenor (vd. a descrição do enrolar do cigarro na pág. 18), agarra o leitor pelos olhos e leva-o atrás de cenas e cenas descritas graficamente, desenhadas.
A divina simplicidade dos capítulos curtos, da notação do essencial para o prosseguimento da história, respeitando a capacidade de atenção, observação, interpretação, inferência, indução/dedução do leitor.
O princípio é o fim. O fim é o princípio. O círculo perfeito do romance policial desenhado com perfeita economia do discurso. Assunto encerrado: FIM! Todas as palavras gastas têm uma finalidade. A linguagem dos movimentos, dos gestos, dos olhares, é inteligentemente explorada com mestria, bem como a sinalização das pontas emergentes de uma intriga oculta, que nos vai sendo desvelada e que nos seduz para o mergulho — não para o naufrágio — no espantoso fundo dos comportamentos humanos.
O romance estava pronto. E era um bom romance. Demorara bastante tempo a fazer. Não tantos anos como esses que, miticamente, se diz, ou dizem os seus autores, que demoraram alguns romances. Mas, sim, fora obra de anos. Por ciclos. Houve o ciclo em que o romance parecia um monte de pedras, mas, depois de um faz-e-desmancha arreliador, ele, o autor, lá conseguiu transformar as pedras num muro consistente. Um romance é sempre um muro. Para quem o escreve. Um muro com uma porta para a vida. Escrevê-lo é um constante abrir e fechar dessa porta, um entrar e sair do romance para a vida e vice-versa. Serve aqui a metáfora do camponês arcaico que, todos os dias, tira do bolso a chave, a faz girar na fechadura e vai ao seu campo tratar, por exemplo das suas couves. Entra no seu campo e esquece ou não esquece a rua de alcatrão, as casas umas a seguir às outras, as pessoas que passam e cumprimentam, os carros que às vezes chapinham outras empoeiram, e põe-se a tratar, por exemplo, das suas couves: um dia, sacha remexendo os torrões; outro dia, arranca as ervas daninhas; outro dia, rega; outro dia, fica só a admirar o milagre das couves nascentes, etc. etc.
Ele, o autor, andou durante muito tempo a remexer no romance sentindo que ele se esboroava como terra seca ou a catar frases daninhas ou a dar seiva à secura, à marcescência, à quase-morte de algumas palavras ou simplesmente a contemplar e achar que o seu romance era uma bela couve. A música dos seus dias era, então, aquele ranger constante da porta entre a rotina da sua vida e o sentar-se ao computador à procura de encontrar soluções para o imperativo da história que era a vida daquele seu romance. Até que um dia reparou que já não havia porta a interromper o muro. O muro estava inteiro e era belo. Estava fechada aquela história. Se a quisesse abrir, só mudando a sua relação com ela e, logo, daí, o nome dessa relação. Só sendo seu leitor, a abriria de novo para si. Então, como o tal camponês arcaico deliciado com a frescura e a ternura das suas couves, o autor sentou-se à mesa e comeu, perdão, leu o seu romance. Era um bom romance. Contava uma boa história. Escrita com boas palavras.
Ora, nenhum camponês arcaico que se preze cria couves só para si. Morreria se comesse todas as suas couves. Que fazer, então? Encher com elas um belo cabaz e ir pousá-las no chão da praça à espera de que lhas comprem, de que lhas comam, de que lhas gabem, de que voltem à procura de mais. Assim, um dia, o autor, meteu o seu romance num cabaz, perdão, num envelope, e atirou-o ao mundo, perdão, deixou-o numa estação dos correios endereçado a coisas semelhantes às praças onde se vendem couves mas para romances e pôs-se a esperar. Esperou, esperou, esperou... E nada.
De nenhuma dessas metafóricas praças saiu um som, uma palavra, um grunhido, nem um miado de gato desses que andam de roda da beleza total de um peixe-livro pousado nas bancas. Nada. Ninguém iria ler, perdão, comer, o seu romance, perdão, o seu peixe, perdão, as suas couves. E o que faz um camponês, ainda que arcaico, triste? Melancoliza. E um escritor também. O autor melancolizou, o que quer dizer enegreceu, esquecido ou fazendo por esquecer-se das tenras folhas do seu romance amarelecendo em caixotes de lixo. E, no entanto, o seu romance era bom. Muito bom. Que sabe alguém de uma couve que não provou? O mundo inteiro ignorava aquele seu romance consistente como um muro, tenro e gostoso como uma couve bem cultivada.
O autor abandonou o campo, seguindo o êxodo de que já em tempos falara Gil Vicente, 'todos do paço/ todos do paço'. Limitou-se a viver um bocadinho mais temperado pela amargura. Azedume. Destilando sempre um excessivo vinagre sobre o mundo em que nasciam livros em tudo diferentes das couves do seu velho amigo camponês arcaico. Escrever é que nunca mais escreveu. Abandonou o campo em que as palavras, como uma praga, tentavam assaltá-lo e dedicou-se a ocupar os seus dias com a rotina da casa, da rua, dos amigos. Coisa muito mais leve. Já lá dizia o seu avô que a lavoura era muito custosa e não dava nada. Que vida bela a de quem se levanta, procura o vestido ou as calças, lava o corpo, desenrola o cabelo e parte para o dia em que toma cafés, cumprimenta, tagarela de pé de orelha ou ao telefone, põe umas coisas no facebook e responde a outras, grelha um bife ou trinca uma maçã, calça e descalça os pés, limpa aqui, suja ali, sabe de lugares aonde ir, de coisas inteligentes para ouvir, de casos que alguém esteve a contar. E, depois, o dia fecha-se e, amanhã, há outro. Que vida bela é a do marinheiro que anda com as marés e vai e vem como uma boia. Boiemos, então, resolveu o autor com o romance fechado no computador e na gaveta.
Mas ele, o romance, apesar de amordaçado, estava vivo. E latejava. Era bom, muito bom, o romance.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.