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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Domingo, 04.09.16

HISTÓRIA DE UM ROMANCE

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   O romance estava pronto. E era um bom romance. Demorara bastante tempo a fazer. Não tantos anos como esses que, miticamente, se diz, ou dizem os seus autores, que demoraram alguns romances. Mas, sim, fora obra de anos. Por ciclos. Houve o ciclo em que o romance parecia um monte de pedras, mas, depois de um faz-e-desmancha arreliador, ele, o autor, lá conseguiu transformar as pedras num muro consistente. Um romance é sempre um muro. Para quem o escreve. Um muro com uma porta para a vida. Escrevê-lo é um constante abrir e fechar dessa porta, um entrar e sair do romance para a vida e vice-versa. Serve aqui a metáfora do camponês arcaico que, todos os dias, tira do bolso a chave, a faz girar na fechadura e vai ao seu campo tratar, por exemplo das suas couves. Entra no seu campo e esquece ou não esquece a rua de alcatrão, as casas umas a seguir às outras, as pessoas que passam e cumprimentam, os carros que às vezes chapinham outras empoeiram, e põe-se a tratar, por exemplo, das suas couves: um dia, sacha remexendo os torrões; outro dia, arranca as ervas daninhas; outro dia, rega; outro dia, fica só a admirar o milagre das couves nascentes, etc. etc.

   Ele, o autor, andou durante muito tempo a remexer no romance sentindo que ele se esboroava como terra seca ou a catar frases daninhas ou a dar seiva à secura, à marcescência, à quase-morte de algumas palavras ou simplesmente a contemplar e achar que o seu romance era uma bela couve. A música dos seus dias era, então, aquele ranger constante da porta entre a rotina da sua vida e o sentar-se ao computador à procura de encontrar soluções para o imperativo da história que era a vida daquele seu romance. Até que um dia reparou que já não havia porta a interromper o muro. O muro estava inteiro e era belo. Estava fechada aquela história. Se a quisesse abrir, só mudando a sua relação com ela e, logo, daí, o nome dessa relação. Só sendo seu leitor, a abriria de novo para si. Então, como o tal camponês arcaico deliciado com a frescura e a ternura das suas couves, o autor sentou-se à mesa e comeu, perdão, leu o seu romance. Era um bom romance. Contava uma boa história. Escrita com boas palavras.

   Ora, nenhum camponês arcaico que se preze cria couves só para si. Morreria se comesse todas as suas couves. Que fazer, então? Encher com elas um belo cabaz e ir pousá-las no chão da praça à espera de que lhas comprem, de que lhas comam, de que lhas gabem, de que voltem à procura de mais. Assim, um dia, o autor, meteu o seu romance num cabaz, perdão, num envelope, e atirou-o ao mundo, perdão, deixou-o numa estação dos correios endereçado a coisas semelhantes às praças onde se vendem couves mas para romances e pôs-se a esperar. Esperou, esperou, esperou... E nada.

   De nenhuma dessas metafóricas praças saiu um som, uma palavra, um grunhido, nem um miado de gato desses que andam de roda da beleza total de um peixe-livro pousado nas bancas. Nada. Ninguém iria ler, perdão, comer, o seu romance, perdão, o seu peixe, perdão, as suas couves. E o que faz um camponês, ainda que arcaico, triste? Melancoliza. E um escritor também. O autor melancolizou, o que quer dizer enegreceu, esquecido ou fazendo por esquecer-se das tenras folhas do seu romance amarelecendo em caixotes de lixo. E, no entanto, o seu romance era bom. Muito bom. Que sabe alguém de uma couve que não provou? O mundo inteiro ignorava aquele seu romance consistente como um muro, tenro e gostoso como uma couve bem cultivada.

   O autor abandonou o campo, seguindo o êxodo de que já em tempos falara Gil Vicente, 'todos do paço/ todos do paço'. Limitou-se a viver um bocadinho mais temperado pela amargura. Azedume. Destilando sempre um excessivo vinagre sobre o mundo em que nasciam livros em tudo diferentes das couves do seu velho amigo camponês arcaico. Escrever é que nunca mais escreveu. Abandonou o campo em que as palavras, como uma praga, tentavam assaltá-lo e dedicou-se a ocupar os seus dias com a rotina da casa, da rua, dos amigos. Coisa muito mais leve. Já lá dizia o seu avô que a lavoura era muito custosa e não dava nada. Que vida bela a de quem se levanta, procura o vestido ou as calças, lava o corpo, desenrola o cabelo e parte para o dia em que toma cafés, cumprimenta, tagarela de pé de orelha ou ao telefone, põe umas coisas no facebook e responde a outras, grelha um bife ou trinca uma maçã, calça e descalça os pés, limpa aqui, suja ali, sabe de lugares aonde ir, de coisas inteligentes para ouvir, de casos que alguém esteve a contar. E, depois, o dia fecha-se e, amanhã, há outro. Que vida bela é a do marinheiro que anda com as marés e vai e vem como uma boia. Boiemos, então, resolveu o autor com o romance fechado no computador e na gaveta.

   Mas ele, o romance, apesar de amordaçado, estava vivo. E latejava. Era bom, muito bom, o romance.

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por Maria Almira Soares às 17:10


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