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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 12.09.16

O FALCÃO DE MALTA

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  1. O título.

   A primeira coisa que se lê é o título. A primeira coisa que fica da leitura é o título. No caso particular deste livro, ficamos a saber, desde o título, que aqui há «falcão» e que a referida ave é de Malta. Poderemos, até, se pertencermos a uma certa estirpe de leitores, fazer alguma pesquisa (enciclopédia? google? conforme o lugar e o tempo em que estivermos a ler) a propósito da relação entre esta ave e a ilha de Malta, antes de começarmos a leitura e ficarmos a saber o significado histórico desta conjugação de palavras através do liame prepositivo de. E poderemos, até, pôr-nos a pensar: — Por que razão desenterrar este episódio histórico/cultural/mítico, num policial? E poderemos, até, pôr-nos a pôr hipóteses (ler é pôr hipóteses sucessivas e articuladas) sobre a época da ação do romance que nos preparamos para ler. Se assim for, ficará, então, o leitor, desde o título, na posse de alguns elementos relacionados com o cerne da história que vai ler.

   Seja como for, o que ficará, para além de dúvidas e certezas, é a indicação titular de que, aqui, haverá falcão. E saberemos disso muito antes do detetive que, esse, apesar da sua função e do seu estatuto, só o saberá lá para a página 154 de um total de 274. Até lá, mexe-se sem saber bem o que procura. Ora, mas a verdade é que é característica interessante deste detetive a capacidade de se enredar numa teia que, de facto, só deslinda totalmente nas últimas páginas. Porque não há de ele, então, só saber da existência do falcão a páginas 154? A diferença é que, tirante o caso do título, o detective guia as nossas antecipações, vai à frente, é ele que semeia as pedrinhas que virtuosamente nos orientam para o caminho do desfecho. No caso do título, porém, estamos ironicamente em vantagem: Sam Spade nunca leu este livro.

   Interessante jogo! Gesto tático? Estraga-leituras? Talvez ardil, porque, afinal, o ouro era chumbo, o falcão não era o FALCÃO. Em qualquer dos casos, não será de desprezar a suposição de que o leitor vá sendo atormentado por uma pergunta: — Mas quando, raio, aparecerá o tal falcão? Tantas páginas lidas, e nada de falcão? Mesmo sabendo que, nisto de policiais, durante a leitura prognósticos, muitos, mas revelações, revelações, só mesmo no fim. O policial ou é um círculo perfeito ou não é policial.

  1. Da notoriedade à condição de clássico.

   A notoriedade do Falcão de Malta faz dele uma quase-citação, um quase-dito tradicional. Donde lhe adveio esta notoriedade? Do poder da memória visual de cenas de filmes, de atores, de grafismos e imagens que se lhe colou? Da reiterada edição em formatos de leitura popular, descartável, em coleções de fácil digestão, em que os livros são números que aceleradamente se atropelam numa renomada série, cujo renome alimenta os títulos singulares e, reciprocamente, se alimenta da fama sobretudo de alguns deles? Do efeito psicológico do livro-episódio de uma coleção-série (Li a Vampiro toda. Li mais um da Vampiro. É fantástico, é da Vampiro.) A notoriedade repousa sobretudo no que mantém o livro à tona do tempo: a leitura real, popular, de um livro aceito, numa coleção aceita.

    E como se ascende da notoriedade presente na fala comum, ao lugar único e venerado que é condição de um clássico? Que razões fazem um livro erguer-se e raiar como paradigma, acima do horizonte sintagmático de uma classe de leitura?

   O Falcão de Malta é um arquétipo da literatura policial, porque é um genuíno espécime de que brotaram inúmeros avatares. É uma fonte. Um primeiro. O Falcão de Malta retrata um imaginário nostalgicamente perdido. O Falcão de Malta é um expoente de mestria narrativa. O Falcão de Malta conta uma história fértil em comportamentos, situações, personagens humanamente significativos. Tem a simplicidade, a limpidez, o antibarroquismo, próprios das gemas indiscutíveis. Metaforicamente, tornou-se num falcão de malta da leitura cujos rasto e fama todos procuram, no fito de se tornarem mais ‘ricos’ se o tiverem, se o lerem. Adentro das perdas do tempo, é um vencedor, um objeto de culto. A sua imagem mental/memória transmite-se-nos numa geometria de referências inapagáveis: Hammett, Vampiro, Bogart...

   A condição de clássico de um livro é forjada pelo saudade da sua leitura, pela projeção da sua leitura na vida, no desejo, no discurso. Um clássico não é, quase nunca é, uma leitura muito comum; porém, é uma referência comum, um reconhecimento. Pode até limitar-se a ser o dizer de um título sem leitura por trás, mas é certamente, mesmo se vã, uma pertença.

  1.  Clássico ou não, há neste livro coisas muitíssimo interessantes, admiráveis.

   O ritmo narrativo certo, sem perdas, sem atrasos, sem desleixos. A pureza narrativa impulsionada pela ação das personagens que os acontecimentos movem no tabuleiro do seu jogo. A pureza e a inteligência do xadrez. Entre a voz de comando inicial «Manda-a entrar!» e a voz de comando final «Bem, manda-a entrar!», há uma aritmética certa. O acrescento deste «Bem,» é a soma, um tanto cansada, de todas as parcelas de uma intriga que foi solucionada. A conta, o contar, o conto, estão certíssimos!

   A complexa máquina de personagens, ações, reações, acontecimentos, leva, ao volante, Sam Spade, o detetive. Criação genuína e ímpar, Sam Spade. Sem uma fenda, uma arranhadela, uma imperfeição de fabrico. Avesso ao sentimentalismo explícito, durão, entrincheirado na sua ética de detective privado, fiel ao cliente, perdão, ao dinheiro do cliente, sempre em tensão com o institucionalismo e a legalismo da ética policial, à procura de uma eficácia em que os fins justificam os meios, sarcástico, cínico, sedutor, de físico apetecivelmente enquadrado pela elegância dos adereços, misógino plantado no corte radical entre masculino e feminino, paternalista com as mulheres, superior por preconceito e antecipação de vitórias, implacável protetor desapiedado, um bom traste, numa palavra, perdão, em duas: Sam Spade. 

   A arte exímia de representar a tensão recíproca gerada entre os elementos de um grupo num ambiente fechado e ameaçado: a grande cena de conjunto entre Spade, Gutman, Wilmer, Cairo, O’Shaughnessy é — através da interpretação/leitura mútua dos olhares e expressões que antecipam ações que irão ter consequências — obra de mestre, em qualquer género literário.

   O gosto e a perícia do visual, do pormenor (vd. a descrição do enrolar do cigarro na pág. 18), agarra o leitor pelos olhos e leva-o atrás de cenas e cenas descritas graficamente, desenhadas.

   A divina simplicidade dos capítulos curtos, da notação do essencial para o prosseguimento da história, respeitando a capacidade de atenção, observação, interpretação, inferência, indução/dedução do leitor.

   O princípio é o fim. O fim é o princípio. O círculo perfeito do romance policial desenhado com perfeita economia do discurso. Assunto encerrado: FIM! Todas as palavras gastas têm uma finalidade. A linguagem dos movimentos, dos gestos, dos olhares, é inteligentemente explorada com mestria, bem como a sinalização das pontas emergentes de uma intriga oculta, que nos vai sendo desvelada e que nos seduz para o mergulho — não para o naufrágio — no espantoso fundo dos comportamentos humanos.

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por Maria Almira Soares às 14:37


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