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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Domingo, 20.11.16

O GENE DA LEITURA

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      Existirá? Haverá um gene da leitura? Será o gosto da leitura de ordem genética? Estará no nosso corpo o desejo de ler e a satisfação com a leitura? Há leitores analfabetos. Há gente que não sabe ler, mas tem em si o gosto de ler. O Amor de Perdição era nacionalmente conhecido e querido num país cuja taxa de analfabetismo rondava os 90%. Não possuíam a técnica, mas como tinham o gosto, pediam-no emprestado a quem o tinha e tornavam-se leitores pelos ouvidos. Hoje ainda há gente que tem todo o perfil do bom leitor, mas, como não sabe ou mal sabe ler, não pode ler. Será a leitura uma aquisição meramente social, cultural? O que é um leitor? Pode ter-se adquirido a técnica da leitura, que é oficialmente obrigatória, e não se ser leitor. Os números das estatísticas estão à vista e comprovam-no. Pode, por outro lado, não se ter essa técnica e ser-se um leitor impotente…Como é ser-se leitor? É gostar de se achegar ao aconchego de uma boa história generosamente dada pela faculdade das palavras; é gostar de gastar os olhos nas letrinhas do jornal, molhar os dedos para lhes soltar as folhas; estreitar a vista coluna acima, coluna abaixo, perder-se na busca da continuação.

   Ser leitor é: gostar de estar sossegado e só esforçar os olhos e a cabeça para ficar a saber coisas que, magicamente, sem pincéis nem tinta, têm cor e forma e, sem projector, têm movimento; é ser-se curioso, e gostar de seguir roteiros e de encontrar respostas; é ser infantil na abertura à fantasia e adulto no jogo dos sonhos escondidos; é o gosto da intriga, do enredo, da novidade e da descoberta; é o gosto dos nomes, das referências, das frases bem-dizentes; o gosto das palavras bem-soantes; o gosto da fuga, de ultrapassar o real pela fuga e lhe fazer uma espera mais à frente, já ficticiamente senhor das suas estratégias.
   Ideal é que o ensino da técnica garanta a realização do desejo. Mas o desejo, esse, não se ensina. Provoca-se. Desperta-se. Pro­voca-se a curiosidade, proporciona-se o agrado com o efeito de surpresa. Faz-se com que ler seja acontecer. A escola pode ser um lugar onde, enquanto se ensina o ler, se desperta a fantasia. O tempo e o modo de ler podem ser vividos na escola como quem aviva um desejo, um fogo que velaremos ao abrigo das coisas da vida que tendem a apagá-lo, fazendo dos livros um espaço pessoal de liberdade, aprendendo que ninguém está no espaço incolor em que as histórias que lemos se tornam reais, senão nós. Só se quisermos e quando quisermos o partilhamos.
   A escola pode ensi­nar que ler é uma porta que se abre, um acesso, uma entrada; que, quando alguém abre um livro e se põe a ler, como que fica intocável. Mas não só a escola. Desejável é que aqueles que parecem geneticamente mais dados à leitura contrariem a tendência social para ler pouco, peguem ostensivamente em livros, jun­tem dinheiro para comprar livros, a prestações, se for preciso, como fazem com outros bens; em segredo primeiro, se tiverem vergonha, e, depois, à vista de todos, causem o escândalo da leitura, numa sociedade que não lê, e, depois, talvez, o respeito.
   Se não há um gene da leitura reconhecível num exame médico, que se garanta, pelo menos, meios de transmissão social: a escola, e todos os que gostam de ler. Que ninguém diga: quem não quer ler que não leia, colocando no mesmo leque de opções coisas ontologicamente distintas. Pasmoso é o esforço insano que fazem as escolas para desenvolverem práticas, às vezes espantosas, e espantoso é que ninguém se lembre da hipótese de haver nelas coisas como, por exemplo, a Leitura ao Fim da Tarde.
   Ler já foi uma arma da adolescência. Esta perdeu-a, mas deve re­cuperá-la. A leitura já foi um espaço de mudez-surdez, tão caro aos adolescentes, habitado por sonhos e ousadias; era um espaço de imobilidade pesada, atirada contra a presteza e prontidão dos adultos; era um espaço de atraso e de demora, de desculpa, de teimosia, de ultrapassagem subterrânea dos legítimos superiores.
   Hoje, o adolescente não suspeita de quão estrategicamente útil lhe poderia ser a leitura, e foge a desgastar-se noutras andanças. Há um vazio imenso a fingir que é movimento e alta voz. Ler não é uma actividade essencialmente grupal, mas garante ao grupo a existência do indivíduo. Um grupo não é só uma coincidência de gente na mesma escola, na mesma rua, na mesma praia, na mesma discoteca. Não é apenas uma simultaneidade.
   No equilíbrio das forças que sustentam um grupo tem de haver um lugar para a distância, para a pertença a si próprio. A lei­tura é um elo que nos solda a alguma coisa de sólido que vai havendo em nós, enquanto a diversidade nos interpela, ao som de uma voz pública que nos pretende ditar, como se fôssemos só uma folha branca onde nos vão inscrevendo. Porque ler é também rejeitar, revelar, identificar, abrir, descobrir.
   É muito provável que não haja o gene da leitura, mas tem de haver a educação para a leitura, como imperativo de uma cultura humanista.

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por Maria Almira Soares às 13:40

Quinta-feira, 03.11.16

CRICRI, A CANETA QUE TINHA MEDO DE ESCREVER

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   Enquanto a Mãe trabalhava escrevendo, que era esse o trabalho da Mãe, a Catarina dizia:

— Qué’o escvê! Qué’o escvê!

Claro que a Catarina ainda não sabia escrever, mas também não sabia que não sabia. Julgava que os riscos e rabiscos, que fazia nos papéis que a Mãe lhe dava, eram escrever. Fazia riscos, olhava para a Mãe e dizia:

— A Cataína é quitora!

Os livros da Cataína quitora eram folhas cheias de riscos.

Um dia em que a Catarina pediu uma caneta à Mãe, a Mãe disse:

— Olha, pega lá esta que é nova.

E passou-lhe para as mãos aquela bela canetinha vermelha que, no dia anterior, tinham comprado na papelaria da D. Adelina.

Nesse dia, estava calor e a Mãe abriu a porta envidraçada da sala para o terraço e foi trabalhar para o ar livre. O chão do terraço é de pedra. A Catarina está estendida no chão, de rabo para o ar, e agarra com força na caneta que a Mãe lhe deu. Começa a fazer riscos na folha de papel à sua frente. Faz um risco e ouve-se um ruído fininho, áspero e arrepiante: crrriiiiiiiiii... Faz outro risco e ouve-se outro ruído fino, áspero e arrepiante: crrriiiiiiii... É o bico da caneta a romper o papel e a arranhar a pedra do chão. E, na próxima vez em que a Catarina pediu uma caneta, a Mãe, a rir-se, disse:

— Queres a Cricri?

 A bela canetinha vermelha passou a ser a Cricri. Bela, era ela, mas quanto a servir para alguma coisa... Olha, nesse tempo, acho que foi só nesse dia, no terraço, a única vez em que ela escreveu alguma coisa. Depois disso...

Começámos todos a desconfiar. Alguma coisa não estava bem com a Cricri. Era assim: sempre que alguém tentava escrever qualquer coisa com ela, acontecia... O quê? Ou caía-nos da mão. Ou rolava para debaixo de um móvel qualquer e, só passado muito tempo, é que a encontrávamos. Ou, quando fazíamos uma pausa na escrita e a pousávamos, metia-se por entre as pilhas de papéis e livros, desaparecia... — Mas onde é que se meteu a danada da caneta? — Ainda agora aqui estava e... — Parece feitiço! Sempre que precisamos dela, puf... Parece de propósito! Volta e meia, meia volta, lá andávamos nós a espreitar para debaixo dos móveis, a levantar as pontas dos tapetes, a remexer nas coisas em cima da mesa, à procura da Cricri. Só aparecia, quando a Mãe já tinha desistido e pegara numa outra caneta. Era isso. Aquela caneta arranjava maneira de estar sempre perdida. E, como todos estavam também sempre cheios de pressa e sem paciência para perder muito tempo a procurá-la, o facto é que a Cricri não escrevia nada ou quase nada. Tirando os resmungos de cada vez que isso acontecia, ninguém dava muita importância aos frequentes e estratégicos desaparecimentos da Cricri. Coincidências! Mas, a certa altura, começámos a desconfiar... E a Mãe disse: — Até parece que tem medo de escrever! Catarina, parece que comprámos uma caneta que tem medo de escrever, ah, ah, ah! A Mãe tem muita imaginação. Mas foi o Pai da Catarina que resolveu o problema.

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por Maria Almira Soares às 21:36

Quinta-feira, 03.11.16

O ILIMITADO PODER METAMÓRFICO DAS PALAVRAS

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       Ler é um processo em que o concreto e o abstracto simultaneamente se mobilizam, uma experiência durante a qual processamos imaginárias materializações operando com mecanismos abstractos. A palavra que usamos para nomear esta experiência, ler, mantém, no seu significado de uso, uma reveladora fidelidade à matriz constitutiva do significado da sua raiz: ler é legere e legere é colher. Esta entrada do livro no leitor é criadora de sentidos em que alguma coisa mais do que aquilo que o autor lá semeou germina à luz do que o leitor de si projecta. É assim que o leitor se colhe, novo, saído de si, projectado nas palavras escritas do autor. É isto a leitura. Há, neste processo, uma fortíssima inter-subjectividade intermediada pelo ilimitado poder metamórfico das palavras. Ler é uma coisa íntima e pessoal e, por isso, lemos, continuamos a ler. A leitura é uma forma de darmos continuidade a dimensões imaginariamente projectadas da nossa intimidade.

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por Maria Almira Soares às 20:40


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