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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
STEFAN ZWEIG, O MUNDO DE ONTEM
A História é o nosso ontem. ONTEM, palavra letal, para quem, ignorando-o, dele vive irremediavelmente separado. Porém, a prevenção contra esse veneno, que é a ignorância da História, não se faz, se nos limitarmos a conhecê-la dentro de uma sintaxe grosseira e apressada de sujeitos e objetos, ondes e quandos e alguns porquês e para quês.
Inseparáveis, palavra e pensamento dispõem, ambos, de modelos sintáticos diferenciados, com os quais podemos ler, com os quais podemos escrever. Desta escolha, decorrem poderosas consequências. Veja-se, por exemplo, como a sintaxe acelerada em que hoje vivemos é coisa estiolante que estrangula a complexidade da significação. Saber de sintaxe, saber dos meandros, das esquinas, dos desdobramentos que um ou outro uso da sintaxe possibilitam ao nosso olhar-pensamento, é importante e útil. A realidade e o pensamento manifestam-se e interrogam-se nas dobras dos textos.
O livro de Stefan Zweig desvenda-nos um ONTEM dito numa sintaxe demorada e longa, plena de rumos, encontros, desencontros: adversativa, concessiva, consecutiva, disjuntiva, explicativa, condicional... Nesta sua teia de conexões, que aprofunda e ultrapassa o quem fez o quê, quando e onde, porquê e para quê, ele, o autor, é o sujeito cuja permanência e densidade — luz/sombra — se nos oferece como ponte sobre o nosso ONTEM. A sua vida, o seu percurso, é a ponte que ele nos dá, para que atravessemos o nosso ONTEM feito da sucessão dos seus hojes.
O benefício cognitivo da leitura deste livro não é apenas um semântico acréscimo de conhecimento histórico, mas redunda também no acesso a uma rede sintática de leitura da História. Lê-lo não é apenas ser emotivamente submerso pelo dramatismo morfológico da substância narrada e respetiva qualificação. Lê-lo não é apenas saber da guerra, das guerras; é saber com que ímpeto adversativo a escuridão corta a luz, o atropelo corta o movimento, a guerra corta a paz, a queda corta a ascensão. Lê-lo não é apenas saber do curso dos dias no ontem de Viena ou no ontem de Paris; é saber do inesperado contacto em que a corrente dos dias se disjunta e um fio de energia nova começa a fluir. Lê-lo não é apenas saber desse buraco-negro de desumanização que industrializou a perseguição, a absoluta rejeição e a morte, como se o ser humano fosse mera matéria-prima de lucros morais, ideológicos, políticos, económicos; é ver esse buraco-negro como brusco e consecutivo desnível sísmico no pensar e no agir até aí rotineiros. Lê-lo não é só saber de entusiasmos, de triunfos, de renúncias, de amarguras, de tragédias, de desânimos; é conceder, à candura e à mansidão de um aparente modo de ser, os picos e os abismos de uma vida pessoal, cultural, pública. Lê-lo não é apenas assistir ao nascimento de uma era de indiferença, de volatilidade, de dispersão, de desorganização do tempo, de indecisão, de alisamento, de niilismo, de fragmentação, de pulverização; é ver esse dilaceramento explicado no contraluz da gravidade, da durabilidade, da hierarquização, da crença. Lê-lo não é apenas assestar um óculo certeiro por onde se vê o ONTEM; é ficar a saber que o recorte de um olhar se faz sob a condição de existência de uma multiplicidade de níveis de observação.
Da sua amada e perdida coleção de significativos documentos e objetos culturais, a única peça que o dolorosamente apátrida Stefan Zweig conservou foi um desenho, «King John» de William Blake, o desenho dos «olhos alucinados» do rei. Talvez estes olhos alucinados sejam a imagem e o símbolo de uma negação interior, muda e impotente, perante prometidas vagas de caos... Talvez o conhecimento da História, do nosso ONTEM, seja um meio de desalucinar a consciência...
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